Capítulo 4

Apolo entrou no salão, a luz fraca da tarde destacando o brilho frio da máscara de ferro. Ele inspecionou o trabalho, o olhar de desprezo fixo em Natali.

-- O que você estava fazendo perto da janela? ele perguntou, a voz baixa e ameaçadora. -- Achei que tivesse dado ordens para limpar, não para ficar olhando para o céu.

-- Eu... eu estava tentando abrir a janela para arejar o salão, Senhor, ela gaguejou, o cheiro de mofo e o medo se misturando em sua boca.

Apolo se aproximou, o hálito de tabaco atingindo seu rosto.

-- Você não está aqui para pensar, garota. Está aqui para obedecer. A luz é desnecessária. A escuridão combina melhor com este lugar e com a minha memória.

Ele virou-se para sair, mas parou. -- Amanhã, você vai começar a limpar o jardim da frente. É um labirinto de ervas daninhas. Quero que ele seja arrancado até o chão. Nenhum vestígio de vida.

-- Mas, Senhor, Natali ousou protestar, a imagem das rosas brancas do diário piscando em sua mente. -- Os jardineiros podem fazer isso. Tenho medo que possa destruir as flores.

-- Os jardineiros plantam. Você destrói. Não quero nenhuma flor naquele jardim. É o seu trabalho agora, ele respondeu, sem emoção. -- E se eu encontrar um único broto, você vai se arrepender de ter nascido.

Ele saiu, a porta batendo com um estrondo que ecoou pelo salão.

Natali desabou no chão, a força a deixando. Ela não era mais apenas uma vítima. Ela era o objeto de uma vingança complexa, que ia muito além da dívida de seu pai. Ela era o instrumento da dor de Apolo, a sombra que ele usaria para apagar a luz que um dia existiu.

Mas, em suas mãos, o diário sob o lençol era uma arma. Ela tinha uma parte da história dele. E talvez, apenas talvez, se ela conseguisse entender o monstro, ela encontraria uma maneira de sobreviver.

No entanto, a ordem de destruir o jardim era um soco no estômago. O jardim que a noiva de Apolo queria, as rosas brancas... Era um ato de autodestruição, um desejo de enterrar a última esperança de felicidade.

Natali não destruiria o jardim. Ela não seria o que Apolo queria que ela fosse: uma destrutora de esperanças. Ela seria a sombra que, discretamente, tentaria encontrar a luz.

Ela levantou-se, limpou as lágrimas, e voltou ao trabalho. O Salão de Baile não podia esperar. Apolo a queria na escuridão, mas Natali estava determinada a levar um pouco de luz para o único lugar onde a memória de um amor perdido ainda residia.

E ela se perguntou, enquanto esfregava o mármore frio: O que aconteceria se Apolo soubesse que ela não estava destruindo, mas sim, tentando salvar a memória que ele tanto prezava? Seria essa a sua libertação, ou a sua ruína final?

O Salão de Baile era um fardo colossal de luto e poeira, mas Natali o enfrentou com uma determinação fria. Ela passou o resto do dia ali, movendo-se como um fantasma entre os lençóis brancos que cobriam as mobílias. O silêncio da casa era interrompido apenas pelo clique-clique da água sendo espremida do pano ou pelo raspar de suas solas no mármore. O trabalho era brutal. Seus braços doíam e suas costas protestavam a cada movimento de esfregar. Ela limpou os painéis de madeira, removeu as teias de aranha dos lustres pendentes e poliu o chão até que o reflexo da estátua de dançarina – o monumento de Apolo ao seu amor perdido – brilhasse palidamente.

O diário estava seguro, escondido sob o lençol da banqueta. Ele era um calor secreto contra o frio opressor daquela casa. Enquanto trabalhava, ela pensava na noiva de Apolo e em como a beleza e a esperança tinham sido tragicamente ceifadas. A máscara de ferro, o desprezo, a crueldade... eram todas as manifestações de uma dor que Natali agora podia nomear. Não a justificava, mas a tornava compreensível. Apolo a estava punindo pela traição do pai, mas, no fundo, ele estava se punindo por não ter podido salvar a única pessoa que o amava.

Quando Lucinha veio chamá-la para o jantar, já era tarde da noite. A governanta olhou para o salão transformado, seus olhos mostrando um misto de surpresa e preocupação.

-- Você fez um trabalho milagroso, minha querida. O Salão de Baile não via luz há anos.

Natali assentiu, exausta. Ela mal podia sentir os dedos.

-- O Sr. Apolo viu?

Lucinha balançou a cabeça. -- Não. Ele se tranca no escritório onde trabalha. Só vai a empresa somente duas vezes por semana.. Agora.. Venha, você precisa descansar. Amanhã será um dia difícil.

Na manhã seguinte, o sol parecia mais cruel ao cair sobre o jardim frontal. Era, de fato, um labirinto, mas não de ervas daninhas. Sob a desordem, Natali podia distinguir o contorno de um projeto antigo: canteiros de rosas que lutavam para sobreviver, arbustos de jasmim que tentavam se agarrar às paredes, e até mesmo um pequeno arco de ferro que devia ter sustentado trepadeiras floridas. Era uma selva, mas uma selva que um dia abrigou o sonho de um jardim.

A ordem de Apolo, repetida pelo segurança de rosto duro, era clara: arrancar tudo.

Natali apanhou as ferramentas que lhe haviam sido dadas: um ancinho, uma pá, e um par de luvas de jardinagem velhas. Ela começou a trabalhar perto da entrada, mas em vez de arrancar as raízes, ela começou a podar e a limpar.

Se Apolo quisesse a destruição total, ele a teria feito com um trator. Ele a havia enviado, a “destrutora de esperanças”, para fazer o trabalho à mão. Mas Natali não faria isso.

Com as mãos firmes, ela removeu os galhos secos e mortos, deu forma aos arbustos de jasmim e, mais importante, desenterrou cuidadosamente as mudas de rosas que haviam caído sob as ervas daninhas. Ela não estava plantando, nem estava colhendo. Ela estava salvando. Ela estava seguindo a voz suave no diário de veludo vermelho: ele sonha com um jardim, rosas brancas, diz que elas são a antítese do ferro frio que ele usa.

Ela se moveu metodicamente pelo jardim, o sol batendo forte em suas costas. Horas se passaram. O suor escorria em sua testa, sujando-a de terra, mas ela sentia uma satisfação estranha e secreta. O jardim começou a respirar. Os arbustos podados revelaram sua estrutura, e as rosas, embora ainda não florescidas, pareciam mais fortes. Natali trabalhou com a urgência de quem está em uma missão secreta, sabendo que a qualquer momento sua rebeldia silenciosa poderia ser descoberta.

E foi.

Um silêncio repentino pairou sobre o jardim. O barulho distante do tráfego parecia cessar. Natali sentiu o ar ficar frio, mesmo sob o sol. Ela não precisou se virar para saber quem estava ali. O cheiro de carvalho e tabaco, agora mesclado ao perfume da terra molhada, a alcançou.

Ela continuou podando um arbusto de rosas particularmente resiliente, fingindo não ter notado a presença.

-- O que você está fazendo?

A voz de Apolo não era um grito, era um som baixo e perigoso, como o ranger de uma corrente de ferro. Natali largou a tesoura de poda no chão, virando-se lentamente.

Apolo estava parado no topo da escada de mármore da entrada, imponente e escuro. A máscara de ferro parecia absorver toda a luz do dia, e seus olhos de obsidiana estavam fixos nela, ardendo com uma fúria que Natali já conhecia.

-- Estou limpando o jardim, Senhor, ela respondeu, a voz surpreendentemente firme.

Ele desceu os degraus lentamente, a cada passo se tornando mais ameaçador. Ele parou a poucos metros dela e olhou para o jardim.

-- Eu ordenei que você destruísse. Que arrancasse cada vestígio de vida. E o que você fez? Você está podando. Você está cuidando desta desgraça.

Ele chutou um pedaço de galho podado com o pé. Natali sabia que tinha que ser sincera, mas com um toque de inocência.

-- As ervas daninhas já foram retiradas, Senhor. E estas não são ervas daninhas. São rosas e jasmins.

-- E daí? Eu quero o jardim nu. Uma extensão de terra morta. Para que as lembranças não tenham onde se agarrar. Você me desobedeceu.

A raiva dele era quase palpável, mais destrutiva do que qualquer tesoura de poda. Ele se aproximou ainda mais, Natali sentiu que ele iria levantar a voz, mas ele não o fez.

-- O que a faz pensar que pode desafiar uma ordem minha? Você é minha propriedade. O que te deu o direito de tomar uma decisão, Natali?

Natali olhou para ele, respirando fundo, o cheiro de terra e suor em seu corpo. Ela não podia mencionar o diário.

-- Os arbustos estavam apenas doentes, Senhor. Não mortos. Se eu os tivesse arrancado, a terra seria apenas um buraco vazio, um atestado de destruição. O jardim está limpo agora, não está? Eu apenas economizei seu dinheiro com o replantio. E... e era um desperdício.

Apolo soltou uma risada curta e sem humor, um som seco. Ele estava furioso, mas havia algo mais em seus olhos, um relance de algo que Natali não conseguia decifrar.

-- Desperdício? O que você sabe sobre valor, Natali? Você, que é a mercadoria mais inútil que já tive em mãos?

Ele gesticulou para as rosas podadas. -- Não me interessa a vida. Me interessa a obediência. E você falhou. Falhou em ser a sombra que eu pedi, falhou em ser a destruidora que eu ordenei.

Ele estava a centímetros dela agora, a máscara de ferro refletindo o sol.

-- Sua punição será proporcional à sua insolência. Não quero você na cozinha. Não quero você na sala de estar. Você vai ficar aqui, neste jardim, dia e noite, até que ele esteja como eu o quero: sem vida. E se eu encontrar uma única rosa branca florescida, você vai pagar.

Ele virou-se abruptamente, subindo os degraus da escadaria. Apolo parou no topo, virando a cabeça o suficiente para que sua voz ecoasse, fria e final:

-- Você terá o que seu pai tentou lhe tirar: a solidão. A partir de hoje, você dormirá neste jardim.

Natali ficou parada, sentindo o peso da condenação. Dormir no jardim. Sob as estrelas frias, ao lado das rosas que ela tinha acabado de salvar. Era uma punição severa, mas estranhamente, não a mais temida.

Ela se ajoelhou, o corpo exausto, e olhou para as plantas. Em vez de terra morta, havia vida. Ela a havia salvado. .

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