O quarto de Apolo era um santuário de luxo sombrio e opulência. Móveis antigos, madeiras escuras, e uma cama gigantesca que parecia um trono. Natali sentiu-se ainda menor ali.
Ela começou a limpar, movendo-se com a lentidão de quem tem medo de pisar no chão. O cheiro de tabaco e carvalho, forte e masculino, pairava no ar. A cada objeto tocado, ela sentia a presença fria e cruel do seu marido. No meio da limpeza, seu olhar caiu sobre uma pequena moldura de prata na mesa de cabeceira. Era a foto de uma mulher. Uma mulher jovem, linda, de cabelos escuros e olhos vibrantes. Ela sorria com uma alegria genuína. Natali, movida por uma curiosidade incontrolável e um instante de alívio por encontrar algo que não fosse pura escuridão, estendeu a mão para tocar o retrato. Talvez houvesse um pedaço de humanidade guardado naquele homem. Nesse exato momento, a porta se abriu com um estrondo. Apolo estava parado ali, envolto em um roupão de seda escura, a máscara de ferro cintilando sob a luz fraca. Ele a olhou, e o que havia em seus olhos era mais do que raiva; era dor pura, transformada em fúria. -- O que você pensa que está fazendo? A voz dele era um trovão. Natali recuou, tropeçando. -- Eu... eu estava apenas... --- Não toque nisso -- ele rosnou, avançando sobre ela em dois passos largos. Ele arrancou a moldura de sua mão com uma violência surpreendente, examinando-a como se ela tivesse sido profanada. -- Você ousou tocar nela? Apolo a encarou, o ódio visível em cada músculo de seu corpo. -- Você, a vergonha de seu pai, a substituta suja, ousa tocar no que me resta de pureza? Ele jogou a foto de volta na mesa, o som do metal contra a madeira assustando Natali. Ele se inclinou, suas mãos apertando os braços da cadeira onde estava sentado momentos antes. -- Esta mulher, -- ele disse, a voz baixa e tremendo de emoção reprimida, -- foi a única luz da minha vida. E ela se foi. E eu a perderei de novo se você ousar sujar a memória dela com o seu toque. Nunca mais entre neste quarto sem a minha permissão, e nunca mais toque em algo que me é valioso. Você é uma sombra, Natali. Apenas isso. E as sombras ficam onde eu as coloco. Ele se endireitou, a fúria em seus olhos se transformando em um desprezo gélido. -- Mas senhor -- Natali começou, o olhar de Apolo a devorando como uma fera sob sua presa. -- Seu segurança me trouxe pra cá. Não tive culpa. Natali continuou se enchendo de força, afinal, ela não tinha nada a perder. -- Como ousa me encarar, serva ? Vá para a cozinha. Lucinha vai te dar um avental e uma lista de tarefas. E lembre-se: a partir de hoje, você não é mais Natali. Você é a Escrava de Apolo Dias. Ela não era a única com feridas profundas. Apolo também tinha a sua. E Natali agora estava presa no meio dessa dor e do desejo de vingança dele. Ela se perguntou quem era a mulher na foto, e se ela era a razão por trás da máscara de ferro e da crueldade sem limites de Apolo. O sol alto da manhã se infiltrava pela janela empoeirada da cozinha, mas não trazia calor para Natali. O avental de algodão grosso parecia um uniforme de prisão. Lucinha, com a testa franzida de preocupação, estendeu a ela uma lista de afazeres tão longa que parecia um pergaminho. -- Não dê ouvidos ao que ele diz, minha querida -- Lucinha murmurou, seus olhos azuis cheios de simpatia. -- Ele fala por feridas que não cicatrizam. Mas você... você não é uma escrava. É a esposa dele. -- Uma esposa que ele odeia, Natali corrigiu amargamente, pegando a lista. -- E que agora terá que esfregar o chão onde ele pisa. -- É melhor assim, acredite. Mantê-la ocupada a manterá fora da vista dele, e da mente, talvez. Por um tempo, a governanta suspirou, virando-se para o fogão. -- Comece pelo Salão de Baile. Está fechado há anos. Quer que eu a ajude a subir com os baldes? -- Não, obrigada. Eu consigo, Natali respondeu, sua voz determinada. A perspectiva de trabalho pesado, de cansaço físico, era quase um alívio. Era algo tangível, mensurável, diferente da névoa de medo e desespero que a envolvia. O Salão de Baile era gigantesco, um mausoléu de mármore e seda coberto por lençóis brancos. O ar era denso, carregado com o cheiro de mofo e tristeza. Enquanto Natali movia os móveis pesados e tirava o pó de anos, sua mente vagava para a foto. A mulher sorridente. A única luz na vida de Apolo. Quem era ela? Uma esposa? Uma noiva que se foi? O rosto de Apolo, a parte visível, era esculpido e frio, mas a fúria que ele demonstrou ao ver Natali tocar o retrato era a prova de que ele sentia. E a máscara de ferro... Natali parou, o pano de limpeza na mão. Ela se aproximou de uma janela e tentou forçar a abrir o pesado batente. Com um gemido de metal enferrujado, a janela cedeu um pouco, deixando entrar uma lufada de ar fresco. A luz da manhã banhou a sala, revelando a teia de aranha que cobria uma estátua de mármore no centro. A estátua era de uma mulher dançando. E a semelhança com a mulher da foto era inegável. Natali sentiu um arrepio. Apolo não estava apenas de luto, ele estava obcecado. A estátua, o quarto intocado, a raiva ao ter o retrato tocado... Enquanto limpava, Natali encontrou uma caixa de madeira escura e entalhada escondida atrás de uma cortina pesada. A curiosidade mais uma vez a dominou. Cuidadosamente, ela abriu a caixa. Dentro, não havia joias ou dinheiro. Havia cartas e um pequeno diário de capa de veludo vermelho, desbotado pelo tempo. Natali hesitou. Era uma invasão de privacidade, um ato que Apolo consideraria imperdoável. Mas a necessidade de entender a escuridão que a engolia era mais forte que o medo. Ela pegou o diário. A letra era elegante e feminina. Natali começou a ler, o coração batendo forte. 7 de Março. O baile de máscaras foi um desastre. Apolo é tão bom, tão generoso, mas o peso da máscara o está consumindo. Ele me diz que é uma lembrança de um acidente, uma cicatriz, mas eu sei que é mais do que isso. É a sua armadura, e temo que um dia ele não saiba mais viver sem ela. Ele insiste que nunca tirará, nem mesmo para mim, sua noiva. 20 de Abril. Falei com ele sobre o casamento. Ele quer casar o mais rápido possível. Eu amo Apolo, mas sinto que estou me casando com um mistério, um fragmento de um homem. A única vez que ele sorri de verdade é quando falamos da nossa futura casa. Ele sonha com um jardim, rosas brancas, diz que elas são a antítese do ferro frio que ele usa. Eu me pergunto, se um dia, ele me mostrará a outra metade do seu rosto. Meu coração sangra só de pensar na dor que ele esconde. 10 de Maio. O médico foi claro. Meu coração não aguentará o parto. Apolo não sabe. Não posso dizer a ele. Ele precisa de esperança, de uma família. Meu maior medo é deixá-lo sozinho. Ele me disse hoje: 'Você é a única que consegue ver além do meu rosto. Se você se for, não restará nada.' O diário parou abruptamente. Natali fechou-o, as lágrimas embaçando sua visão. A mulher não era apenas a luz de Apolo. Ela era sua noiva, a única que amou o homem por trás da máscara, e ela havia morrido. Apolo não estava apenas de luto; ele estava preso na dor. E a máscara de ferro, Natali percebeu, não era apenas para esconder uma deformidade. Era o túmulo de sua alma, o símbolo de sua perda e da sua incapacidade de se reabrir para o mundo. Apolo havia querido Melina, a bela, talvez como uma tentativa inconsciente de substituir a beleza perdida, a pureza que ele idealizava. Mas Melina o rejeitou, e Afonso o traiu, colocando Natali, a "aberração", no lugar da noiva prometida. Para Apolo, isso não era apenas uma traição; era a confirmação de que ele era um monstro, indigno de ser amado ou desejado. Natali era o espelho de sua dor. A mercadoria danificada que ele usaria para se punir e vingar. O som de passos fortes no mármore a fez sobressaltar. Ela escondeu a caixa e o diário debaixo de um lençol rapidamente, o coração batendo na garganta.