Alícia Ferraiz era uma recém-chegada à cidade de Stalin, ainda tentando se adaptar ao ritmo acelerado e à frieza elegante daquele lugar.
Mudara-se com um propósito claro: recomeçar. Deixar para trás a dor, a vergonha e, principalmente, sua família.
Os Frosteer sobrenome que agora pesava em sua memória eram tão gélidos quanto o nome sugeria. Após descobrir sua gravidez, seus pais a haviam expulsado de casa, como se ela fosse uma decepção que precisava ser apagada.
E o pai da criança? Lucca Maurício, o canalha que sumiu assim que ela lhe contou a novidade. Não houve drama. Nem desculpas. Apenas silêncio.
"Nem sempre a vida é justa, né?"
pensava Alícia, enquanto caminhava pela calçada larga em direção ao prédio espelhado da Star Produções, uma das maiores empresas da indústria televisiva. Ela havia sido chamada para uma entrevista de elenco, e aquela poderia ser a chance que tanto precisava.
Ajustou o vestido simples, mas elegante. Passou o batom nude nos lábios com um espelhinho de bolso e respirou fundo.
Mesmo grávida, mesmo ferida, ela não era fraca.
Sobreviveu a uma família tóxica. Enfrentou o abandono. Trabalhou em mil empregos. Sempre sozinha. Sempre firme.
Entrou no saguão da produtora com um sorriso suave, tentando esconder a ansiedade. A recepção era tão sofisticada quanto se esperava: mármore claro, obras de arte nas paredes e um perfume delicado no ar.
Atrás do balcão, uma mulher ruiva, impecável, encarava o computador com expressão entediada. Trajava um conjunto caro, cabelo perfeitamente hidratado, maquiagem sutil. A própria definição de controle e luxo.
Por um instante, Alícia sentiu uma pontada de inveja misturada com admiração. Queria passar aquela mesma imagem e talvez, um dia, até conseguiria.
O olhar da ruiva percorreu sua silhueta de cima a baixo, como se a julgasse em silêncio. Mas sua resposta foi educada, ainda que distante.
— Bom dia. Posso ajudar? — perguntou, sem sorrir.
Alícia manteve o tom calmo, mas firme.
— Bom dia. Vim para a entrevista. — respondeu com o melhor sorriso que conseguiu, passando a imagem de alguém equilibrada. Mesmo que, por dentro, carregasse um turbilhão.
A recepcionista, por sua vez, sorriu com educação forçada e se apressou em digitar algumas informações no sistema. Estava claro: queria se livrar dela o mais rápido possível.
— Siga até a porta à direita, meu bem — disse, indicando com um gesto quase impaciente.
Antes mesmo que Alícia desse o primeiro passo, sentiu o olhar da mulher queimando em suas costas. E jurava, com todas as forças, que a ruiva revirou os olhos no momento em que ela se afastou.
Poderia xingá-la mentalmente, pensou. Mas o foco era um só: passar na bendita entrevista. E, se necessário, invocar até as forças do além.
Ao entrar no salão principal, foi como levar um soco visual.
Uma fila enorme se estendia até o corredor, cheia de mulheres e rapazes de todas as idades, estilos e maquiagens possíveis. Alícia ficou pálida. Sem exagero, chegou a prender a respiração por uns cinco segundos.
— Uou... — murmurou para si mesma.
Algumas candidatas saíam animadas, sorrindo de orelha a orelha. Outras, xingavam em espanhol com tanta raiva que nem mentalmente Alícia ousaria repetir. A cada instante, uma pessoa era chamada para o teste, enquanto os demais suavam esperando sua vez.
Por sorte ou milagre Alícia foi chamada um pouco antes de outras garotas, por ordem de agendamento. A cena que precisava interpretar era simples... pelo menos no papel.
Uma mulher grávida, lidando com emoções à flor da pele.
Coisas que ela conhecia bem demais.
Não precisou fingir. Bastou respirar, lembrar das lágrimas escondidas no travesseiro, da solidão no banheiro da clínica quando viu o teste de farmácia, e pronto. Incorporou a dor real com um toque de teatro. Suas expressões convenceram o diretor. E, pela primeira vez em muito tempo, ela viu respeito no olhar de alguém.
Após o teste, entregou o currículo. O diretor agradeceu, elogiou sua entrega e prometeu entrar em contato.
Ela saiu dali sem grandes esperanças. Mas com um certo alívio.
Ia arranjar uns bicos aqui e ali. Sobreviver. Como sempre.
O caminho até a saída foi tranquilo. Estava distraída, com os pensamentos em modo automático, quando... esbarrou.
Mas não em qualquer um.
Ela bateu direto numa muralha de músculos, envolta num terno de alfaiataria impecável. Aquele tipo de roupa feita sob medida, que grita riqueza sem ostentar. Atrás dele, dois seguranças o acompanhavam com atenção extrema — como se estivessem escoltando alguém importante.
Alícia recuou rápido, o susto travando o corpo por reflexo.
— M-me desculpa, senhor — balbuciou, com um sorriso nervoso.
O homem a olhou por um segundo. O suficiente pra ela perceber que ele não era qualquer um.
E então, contrariando a postura rígida, ele respondeu com calma. A voz era grave, mas suave. E… gentil?
— Me desculpe você. Sinto muito pelo meu erro.
Ela franziu a testa.
Como assim? Ele pedindo desculpa? Esse homem parecia saído de um filme de máfia… e estava se desculpando?
Talvez fosse só educação. Ou talvez, ela pensou com um arrepio estranho, fosse algo mais.
Por um segundo, o olhar dele pareceu atravessá-la. Não era hostil, mas havia algo ali... analisador demais, intenso demais.
Alícia engoliu seco. Talvez estivesse só imaginando coisas. Talvez fosse o cansaço. Ou talvez, aquele homem tivesse mesmo o dom de fazer qualquer um se sentir menor, só com a presença dele.
Não sabia explicar, mas sentiu como se o simples ato de ter esbarrado nele fosse uma falha, um erro grotesco. A maneira como ele a olhou educado, sim, mas quase superior reforçava isso.
Mas ela estava acostumada a engolir esse tipo de sensação.
Apenas sorriu de leve, agradeceu com um aceno e seguiu seu caminho.
Tinha coisas mais importantes em que pensar. Precisava de um emprego temporário mais um. A vida em Stalin não era fácil, especialmente para alguém como ela: sem família, sem apoio, sem garantias. Estava ali há quatro anos, e mesmo assim, ainda sentia que não pertencia de verdade àquele lugar.
Conhecia algumas rotas, alguns rostos, algumas dicas de onde conseguir bicos. Não era muito, mas era o suficiente pra sobreviver. Por enquanto.
O que ela não sabia, ao se afastar com passos firmes e o coração acelerado,
era que aquele esbarrão tinha acabado de mudar o curso da sua vida para sempre.