A música pulsava alto no salão.
O vai e vem dos clientes era constante, copos tilintando, risos e tropeços por todos os lados. Bebidas iam, histórias afundavam.Atrás do balcão, Alícia se mantinha firme.
Pelo menos, ninguém tinha tentado dar em cima dela até aquele momento. E, com o volume das músicas, até os flertes ficavam meio surdos.Observava tudo com um misto de cansaço e sarcasmo.
Em alguns momentos, não conseguia evitar uma risadinha contida quando via algum cliente despencando da cadeira ou derrubando a própria bebida."— Trágica e espontânea. — sua mãe diria."
Aquelas palavras vinham à mente com a mesma facilidade de quem já estava acostumada a levar sermão até de lembrança."— Rir da desgraça alheia, Alícia? Onde já se viu?"
— Ai, mãe... — pensou, contendo outra risada. — Mesmo sendo chata, você me faz rir. Socorro.O pensamento foi interrompido por algo que a tirou momentaneamente da realidade.
Um homem se aproximou do balcão.
Bonito. Ridiculamente bonito.
Perfume caro. Voz grave. Presença marcante.— Uma bebida, por gentileza. A mais forte possível — disse ele, com um tom tão firme quanto sedutor.
Alícia piscou.
Engoliu em seco e se apressou. Catou a garrafa correta, serviu no copo, e empurrou com elegância profissional. Ao receber a nota de valor alto, soube na hora: cinco doses pagas de uma vez.“Tá enterrando o quê hoje, moço? A dignidade? Um trauma? Um amor?” pensou.
Mas não era da conta dela.Sem comentários, sem perguntas.
Ela apenas voltou ao trabalho, mantendo o olhar atento, mas não o suficiente pra ignorar aquela leve sensação de calor que a presença dele causava.Ela permanecia atrás do balcão, atenta, servindo drinks, observando o cenário e agradecendo, mentalmente, por ainda não ter sido obrigada a lidar com bêbados caindo em cima dela.
Mas isso não queria dizer que a noite estava tranquila.
Alguns já vinham cambaleando, copo vazio na mão, exigindo mais uma dose com a firmeza de um pinguim bêbado.
Ela não podia sair de seu posto para ajudá-los, e seu colega de trabalho igualmente sobrecarregado tampouco podia fazer algo.
Restava assistir ao show e manter o balcão limpo.
Logo, alguns homens se sentaram ali, ocupando os bancos altos de frente pra ela.
Começaram com pedidos simples.
E então vieram os desabafos.
— Minha mulher me largou com três filhos...
— Fui traído com o entregador de água.
— Eu durava dois minutos e meio, segundo ela...
Alícia mantinha o profissionalismo no rosto.
Por dentro?
Estava deitada em posição fetal, gargalhando.
"Que culpa eu tenho? " pensou.
Ela só servia bebidas.
Não era psicóloga, padre ou terapeuta de traumas sexuais.
Imaginava cada relato como um pequeno curta animado passando na cabeça.
Cenários absurdos. Chifres com neon. Roteiros dignos de comédia pastelão.
“— Alguém cala a boca desses homens, por favor. - pedia em silêncio."
Mas não podia dizer nada.
Só sorrir, servir mais uma dose e rezar para que ninguém começasse a chorar em cima do balcão.
Já passava das dez.
Alícia olhou de relance para o relógio no canto da parede e soltou um suspiro discreto.
Três horas de atendimento direto, três doses de dor nas costas e um milhão de histórias que ela nunca quis saber.
Os caras do balcão, os que estavam transformando a noite num talk show bêbado de lamentações finalmente foram embora.
Ela agradeceu mentalmente. Talvez algum santo protetor dos bartenders tivesse ouvido suas preces silenciosas.
Voltou à sua rotina anterior.
O vai e vem normal de copos, uma ou outra piscadela torta de algum bêbado inofensivo, e o barulho constante da música abafando o cansaço.
Por um breve momento, tudo parecia... controlado.
Até que não mais.
Um grito abafado cortou o ambiente.
Um dos clientes que ela reconheceu apenas por já ter visto os seguranças à distância quase caiu e bateu feio com a cabeça num canto da mesa.
O bar inteiro ficou em silêncio por dois segundos.
Alícia congelou.
Não era qualquer um.
Ela não sabia o nome, mas sabia reconhecer postura, perfume e presença.
Aquele tipo de cliente que não podia sair machucado dali. Nunca.
E, naquele instante, ela soube: a noite ia dar ruim.
O susto já tinha feito o bar inteiro prender a respiração.
Mas foi quando Alícia olhou com atenção o rosto do homem, ainda meio desequilibrado no canto, que o frio percorreu sua espinha como um raio.
Ela o conhecia.
Não pessoalmente, claro.
Mas aquele rosto aparecia em comerciais políticos, jornais e... escândalos abafados.
Um figurão da política.
Com as costas tão quentes que se encostasse num poste, o ferro derretia.
Alguém cochichou o nome dele e foi o suficiente pra ela sentir o estômago virar.
—Droga ele pode mandar fechar o lugar só porque tropeçou no tapete.
O gerente surgiu do nada, com um sorriso desesperado.
Dois seguranças do político se aproximaram, olhar varrendo o ambiente como se quisessem um culpado.
O bar, que segundos antes estava pulsando, agora parecia respirar por aparelhos.
E Alícia?
Ficou ali, parada atrás do balcão, tentando parecer invisível.
Mas o coração batia alto demais no peito, como se pudesse ser ouvido entre os graves da música.