GABRIEL CLARK NARRANDO:
O calor do terno era insuportável. Não sei se era o tecido ou a ansiedade, mas eu suava como se estivesse prestes a encarar um campo de batalha. E, de certa forma, estava. O salão da recepção brilhava. Lustres de cristal refletiam a luz dourada que vinha das paredes forradas com rosas brancas. Tudo milimetricamente organizado. Tudo perfeito. Meu pai apertou meu ombro quando eu desci do carro. — É hoje que você vira homem de verdade. — ele disse, com aquele sorriso contido típico dos Clark. Minha mãe chorava desde cedo, emocionada com o casamento do filho mais novo. Todos pareciam tão certos de que aquele era o dia mais feliz da minha vida. E eu acreditei. O altar estava montado no jardim do hotel mais caro de Toronto. Havia pétalas de rosas por toda parte, uma música suave tocando ao fundo, e todos os olhares estavam sobre mim. Amigos, sócios, investidores, até políticos todos vieram ver Gabriel Clark, o prodígio do império Clark, dizer sim. Mas ela não veio. Angelina não entrou pela porta. Não teve marcha nupcial. Não teve vestido branco. Não teve desculpas. Ela simplesmente… desapareceu. Na primeira hora, disseram que era atraso no cabeleireiro. Na segunda, falaram em imprevisto. Na terceira, não havia mais desculpas ,só o silêncio brutal do abandono. Fiquei de pé no altar. Por mais tempo do que qualquer ser humano deveria ficar. Vi a expectativa nos rostos se transformando em constrangimento. Ouvi os cochichos. Vi o olhar do meu pai endurecendo. O da minha mãe se partindo. Mas o pior foi o que senti dentro de mim. Um vazio seco, cortante. Uma mistura de ódio, vergonha e uma dor que não dava pra nomear. Angelina não deixou carta. Não mandou mensagem. Não teve coragem nem de dizer que não me queria mais. Me deixou sozinho diante de tudo e de todos. Naquela noite, não chorei. Não quebrei nada. Não bebi. Fiz uma única coisa: jurei pra mim mesmo que nunca mais ninguém teria esse poder sobre mim. Seis anos depois, aqui estou eu. De volta a Nova York. A cidade onde nasci, onde fui criado, onde meu sobrenome significa mais do que palavras podem explicar. Mas agora, voltei por mim. Depois daquele desastre, peguei o pouco de dignidade que me restava e fui embora pro Canadá. Lá, comecei do zero. Usei cada migalha da dor que ela me deixou pra construir meu império. Fundar a Visionar Tech foi minha forma de dizer ao mundo, e a mim mesmo, que eu não precisava de ninguém. Hoje sou CEO de uma das empresas de segurança digital mais promissoras da América do Norte. Fecho contratos bilionários, dou palestras em conferências internacionais, janto com ministros, CEOs e acionistas. Eu comando. Eu lidero. Eu venço. E não sinto nada. Mulheres? Passam. Paixões? Não mais. Amor? Essa palavra morreu no altar, junto com qualquer esperança que eu já tenha tido. Eu me tornei o homem que Angelina nunca conheceria. E isso me dá certo prazer amargo. Agora estou de volta. Nova York é um mercado estratégico, e a Visionar vai abrir sua filial principal aqui. Já aluguei o andar inteiro de um arranha-céu em Manhattan, mandei importar meu mobiliário pessoal. Mas eu gosto de estar presente. Quero olhar nos olhos de quem vai trabalhar pra mim. Ver quem resiste à pressão, quem vacila, quem mente. E acima de tudo, quem merece estar ao meu lado. Porque hoje, eu não sou mais o noivo abandonado no altar. Hoje, eu sou o pesadelo de qualquer um que ache que pode brincar com a minha confiança. Só que o mundo tem um senso de humor cruel. E logo, muito antes do que eu imaginava, ele vai me mostrar que ainda não terminou de brincar comigo. A luz da manhã atravessa a janela oval do meu jatinho particular quando o piloto anuncia o pouso. Nova York está cinza, encoberta por uma névoa fina que mistura fumaça, umidade e o cheiro inconfundível de concreto molhado. Perfeito. A cidade parece saber que eu voltei. E, mesmo que ninguém diga em voz alta, todo mundo aqui vai sentir a minha presença. Porque agora eu não sou mais o herdeiro mimado dos Clark. Agora, sou Gabriel Clark, CEO da Visionar Tech, o homem que fez fortuna longe da sombra da família, longe do passado e longe de Angelina. O jato desacelera na pista e estaciona em posição privada. Meu assistente já espera na pista, do lado do carro. Mas eu não me apresso. A aeromoça abre a porta da cabine e uma rajada de vento frio me acerta o rosto. Eu gosto disso. Do contraste. Do incômodo. Me lembra que estou vivo, mas do meu jeito. Levanto, pego meu sobretudo Armani no cabide ao lado do assento, visto com precisão, puxo os botões com calma e coloco os óculos escuros. Me aproximo da porta e encaro a escada externa. Nova York está ali. Toda arrogante, barulhenta e frenética. Como sempre foi. Mas agora… eu estou acima disso. Desço os degraus com calma, um de cada vez. A cada passo, sinto a cidade pulsar sob meus pés. Respondo mentalmente, com um sorriso torto no canto da boca: Eu sou o homem que vocês não viram chegar. Mas agora que eu voltei… vão ter que engolir meu nome. Tiro os óculos devagar, só pra sentir o vento gelado bater direto nos olhos. O cheiro da cidade entra fundo no peito. É o cheiro de café, gasolina, metal úmido e ambição. Nova York pode tentar me engolir de novo. Pode me jogar aos lobos, como fez antes. Mas desta vez… sou eu quem lidera a alcateia. Meu assistente, Lucas, se aproxima com o celular na mão. Ele é eficiente, calado, e sabe exatamente quando deve abrir a boca e quando não deve. — Sr. Clark, tudo pronto no escritório. Seu motorista já está no carro. O prédio foi fechado para a montagem do mobiliário e a segurança já está posicionada no andar da Visionar. — Boa noite de sono? — pergunto, apenas por educação. — Dormi o suficiente, senhor. — Ele sorri de leve, mas sabe que eu não me importo com a resposta. — Ótimo. Quero que minha sala esteja com o vidro à prova de som e as paredes internas reforçadas. Não quero ouvir passos, vozes, ou suspiros. E me avise quando a equipe de RH terminar as pré-entrevistas. Eu quero ver os finalistas pessoalmente. — Sim, senhor. Entro na SUV preta que me espera. O carro tem cheiro de couro novo, e a playlist instrumental baixa no som me ajuda a organizar os pensamentos. A caminho da empresa, observo os prédios surgindo no horizonte. Tudo parece menor agora. Familiar, mas sem impacto. Essa cidade não me assusta mais. A memória do altar vazio ainda visita meus pensamentos às vezes. Não porque dói isso, eu matei. Mas porque me ensinou a lição mais valiosa da minha vida: nunca confie em ninguém que te prometa o para sempre com os olhos brilhando. Promessas são mentiras bem maquiadas. E agora, eu sou imune a elas. O carro dobra a esquina da Quinta Avenida. A torre onde a Visionar vai abrir a filial em Nova York é um espelho de vidro imponente, moderno e luxuoso, do jeito que eu gosto. O andar todo é meu. Minha fortaleza. Meu império de concreto e fibra ótica.