Capítulo 03.

JÚLIA MONTENEGRO NARRANDO.

Me olhei no espelho do elevador e quase não me reconheci. O rosto inchado, os olhos vermelhos, as olheiras marcadas como hematomas da alma. Meu cabelo ainda úmido e minha blusa, mesmo trocada, parecia não conseguir esconder o desalinho do que eu me tornei.

Assim que as portas da loja se abriram, eu respirei fundo. Era como atravessar uma barreira invisível. Aqui fora, o caos interno tinha que ser escondido. Aqui fora, eu precisava fingir que estava tudo bem. Ou pelo menos tentar.

— Júlia? — a voz da Kristen veio de forma seca assim que botei os pés dentro do escritório.

Ela me olhou dos pés à cabeça com um misto de nojo e impaciência. Eu não esperava um abraço, mas aquele olhar foi como um tapa.

— Você tá péssima — ela declarou, como se fosse uma constatação objetiva, quase científica.

— O que aconteceu com você?

Engoli seco. Eu podia mentir. Dizer que a gripe piorou, que não dormi direito. Mas algo dentro de mim precisava explodir.

— Peguei meu noivo transando com a minha melhor amiga — falei de uma vez, sem respirar, sem piscar.

Kristen piscou lentamente, como se processasse a informação. Mas não demonstrou nenhuma surpresa ou compaixão.

— Nossa… sinto muito — disse, num tom que contradizia completamente as palavras. — Mas olha… você não tem tempo para sofrer, a empresa precisa de você.

Fiquei parada, imóvel, encarando ela como se ela tivesse me dado mais uma rasteira. Como alguém podia ser tão fria?

— Vai até o banheiro, lava esse rosto, passa uma maquiagem decente. Você tá deplorável. E hoje temos três clientes VIPs vindo ver a nova coleção. Eu preciso de você apresentável, funcionando, viva. Entendeu?

Só consegui assentir. Não tinha forças pra discutir. Nem dignidade pra reagir. Caminhei até o banheiro da loja como se arrastasse o próprio corpo. Quando fechei a porta, o silêncio ali me engoliu de novo.

Me olhei no espelho.

Você tá deplorável.

As palavras da Kristen ecoavam na minha cabeça. Eu mesma pensava isso. E era verdade.

Abri a torneira e joguei água gelada no rosto. Depois comecei a secar com cuidado, tentando ao máximo não borrar ainda mais a bagunça que eu já era. Peguei o nécessaire que deixava no armário da loja e, com mãos trêmulas, passei base, corretivo, rímel, blush. Tentei trazer cor pro rosto morto.

Na última passada de batom, forcei um sorriso no espelho.

Ficou horrível.

Mas era o melhor que eu podia fazer.

Voltei pra loja. Meus colegas me lançaram olhares curiosos, mas ninguém teve coragem de perguntar. Ou talvez todos já soubessem. O tipo de traição que eu sofri se espalha rápido feito praga. Nova York podia ser uma cidade imensa, mas a língua do povo é rápida.

Tentei focar no trabalho. Organizei prateleiras, conversei com duas clientes, mostrei a nova coleção de sapatos italianos que tinham chegado. Falei de saltos como se eles tivessem alguma importância. Sorri mecanicamente. Dei risadas forçadas. Atendi o telefone com uma voz doce que não condizia com o buraco que estava dentro de mim.

Mas entre um atendimento e outro, o celular vibrava.

— Carolina: Júlia, por favor, me escuta…

Bloqueei a tela. Ignorei.

Minutos depois:

— Carolina: Me deixa te explicar, não foi assim…

Meus dedos coçavam de raiva. Joguei o celular dentro da gaveta e tentei respirar fundo.

Eu sabia que ela ia tentar. Ela sempre tentava. Carolina era do tipo que fazia merda e depois vinha com a voz doce pedir desculpa, como se tudo se resolvesse com uma justificativa. Mas não existia justificativa pro que ela fez. Não existia desculpa pra roubar o noivo da sua melhor amiga.

No meio da tarde, enquanto eu arrumava uma vitrine, senti o celular vibrar de novo. Dessa vez, a raiva veio primeiro. Peguei com força e li:

— Carolina: Eu não queria que fosse assim. Aconteceu. Eu ainda te amo como amiga, por favor…

Joguei o celular na bancada com força. Quase quebrei a tela.

Respirei fundo. Duas vezes. Três.

Kristen, do outro lado da loja, levantou uma sobrancelha.

— Tudo certo aí, Júlia?

— Tudo sim — respondi, tentando controlar a voz.

Mas não tava. Não tava nada certo.

Na minha cabeça, tudo era um looping. As imagens da noite anterior voltavam o tempo todo. Eu via Fernando e Carolina na cama. Via os dois nus. A mão dele nas costas dela. Os gemidos. A música. O cheiro.

E lembrava do quanto eu confiei nela. Do quanto ela sabia tudo sobre mim. Cada detalhe do meu relacionamento. Cada insegurança. Cada medo. Ela era a pessoa com quem eu dividia meus sonhos.

E ela destruiu tudo.

No final do expediente, depois de atender uma cliente rica que não conseguia decidir entre dois vestidos e me fez passar uma hora inteira sendo paciente, finalmente me permiti sentar no estoque por dois minutos.

Desabei de novo.

As lágrimas vieram silenciosas, discretas. Deslizaram pelo rosto como se escorressem direto da alma. Encostei a cabeça na parede fria e respirei fundo.

Ninguém podia me ver fraca. Não ali. Não agora.

Kristen passou pela porta entreaberta, me viu naquele estado e disse:

— Não me leve a mal, Júlia. Mas a vida é assim. As pessoas decepcionam. Cabe a você decidir se vai desmoronar ou levantar. Eu escolhi levantar. Sempre.

Fechei os olhos. Aquilo era o máximo de empatia que ela podia me oferecer. E talvez… fosse o que eu precisava ouvir naquele instante.

Levantei. Enxuguei o rosto com o lenço de papel que tinha no bolso. Peguei meu celular e silenciei as notificações. Mais dez mensagens da Carolina. Uma ligação perdida do Fernando.

Ignorei tudo.

Tranquei a dor num canto do coração e voltei pra loja.

E continuei fingindo que ainda existia alguma coisa inteira dentro de mim.

O relógio bateu seis da tarde. Finalmente. A loja estava vazia, as luzes da vitrine começando a apagar uma a uma, e eu senti o peso de um dia inteiro se acumulando nos meus ombros. Meu corpo doía. Minhas emoções estavam em frangalhos, e tudo que eu queria era chegar em casa, enfiar a cara no travesseiro e fingir que o mundo lá fora não existia.

Peguei minha bolsa no vestiário, desliguei o celular de vez, e fui em direção à saída com passos pesados, exausta de mim, dos outros, de tudo.

Mas assim que empurrei a porta de vidro da loja e pisei na calçada fria de Nova York, o vento cortando o rosto… eu vi.

Ela estava lá.

Encostada no carro na esquina da loja. O cabelo preso de qualquer jeito, o rosto sem maquiagem, e uma expressão de desespero estampada como se fosse tatuagem.

— Júlia! — Carolina veio correndo na minha direção.

Meu coração disparou. O estômago revirou.

— Não. — Falei baixo, levantando a mão como um escudo.

— Não, Carolina. Vai embora.

— Por favor, eu preciso falar com você! — ela insistiu, a voz embargada.

— Você precisa me escutar, eu tô desesperada…

— Vai embora! — gritei, sem me importar com os olhares em volta.

— Aconteceu, Júlia… aconteceu! — ela se aproximou mais, com lágrimas escorrendo.

— A gente não planejou, juro por Deus. Eu nunca quis te magoar. Mas eu e o Fernando… a gente se ama. A gente percebeu isso, e foi mais forte do que a gente…

Foi como levar outro soco no peito.

Eu ri. Uma risada amarga, cheia de ódio.

— Se amam? — cuspi a frase com nojo.

— Você tá falando isso pra mim? Pra mim, Carolina? Depois de tudo? Depois de todos os anos em que eu te defendi, te apoiei, te levei pra dentro da minha casa, pro meu relacionamento? Depois de tudo que eu te contei, tudo que eu confiei em você?

Ela estendeu a mão, como se fosse me tocar.

— Foi uma fraqueza, Jú… eu me arrependo de ter sido assim, eu juro! Mas…

— Mas nada. — avancei um passo, o sangue fervendo nas veias.

— Você teve muitas chances de sair daquela cama antes de tirar a minha vida de lá. Mas não, né? Você ficou. Ficou porque você quis. Porque você não é minha amiga, Carolina. Você é uma cobra. Uma traidora. Uma vergonha.

Ela chorava, soluçando agora.

— Eu te amo como irmã, Júlia… eu…

Pá.

O som do tapa ecoou pela calçada. Alto, seco, doído.

Minha mão tremia. O rosto dela virou pro lado, o vermelho da bochecha contrastando com a noite fria.

Algumas pessoas pararam. Eu não me importei. Não senti culpa. Não senti nada além do que ela merecia.

— Nunca mais chega perto de mim. Nunca mais fala comigo. Nunca mais pronuncia meu nome. Eu juro por tudo que existe em mim, Carolina… se eu te ver de novo, não respondo por mim.

Ela levou a mão à bochecha, os olhos arregalados, sem conseguir dizer mais nada.

Virei as costas, com o peito subindo e descendo rápido. As lágrimas voltando. A raiva queimando.

Andei pelas ruas como um furacão. Gente me olhava, buzinas soavam, a cidade seguia viva… mas dentro de mim, tudo tava morto.

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