Mundo ficciónIniciar sesiónO cheiro de hospital entrou pelas narinas de David como uma facada. Álcool, desinfetante, morte lenta. David sentiu o estômago embrulhar. A última vez que pisara num corredor assim fora para ver o pai morrer de infarto, quinze anos atrás. Agora voltava para conhecer a filha e se despedir de uma mulher que mal lembrava o rosto.
Quarto 412. A porta entreaberta deixava escapar uma música infantil baixinho, daquelas de canal de YouTube que nunca acaba. Ele empurrou devagar. Rafaela estava deitada, magra a ponto de assustar, a pele quase transparente, um lenço azul cobrindo a cabeça careca. Nos braços dela, uma bebê de macacão rosa brincava com os dedos da mãe, rindo alto cada vez que Rafaela fazia careta. Quando os olhos das duas se encontraram com os dele, o quarto inteiro pareceu perder o ar. Rafaela chorou sem som. Uma lágrima grossa escorreu até o canto da boca. — Pode deixar a gente, por favor — pediu à assistente social, com a voz rouca de remédio e tristeza. A mulher pegou a bebê no colo com cuidado profissional. David olhou para a filha pela primeira vez de perto: cabelinho castanho fino, bochechas gordas, olhos verdes iguais aos dele. Ela o encarou curiosa, depois enfiou o dedinho na boca e voltou a atenção para o pingente do colar da assistente. David sentiu o peito afundar. A porta se fechou e restou apenas silêncio. Ele se aproximou da cama, puxou a cadeira de plástico com ruído e sentou, olhando para aquela mulher que havia lhe escondido um grande segredo. — Por que não me contou antes, Rafaela? — perguntou baixo, sem acusação, só cansaço. Ela respirou fundo, o peito subindo com dificuldade. — Descobri o câncer dois dias depois de descobrir que estava grávida. O oncologista disse que o tratamento ia matar o bebê. E que, se eu esperasse, talvez não houvesse mais tratamento pra mim. David fechou os olhos um segundo. — E você escolheu ela. — Escolhi ela — confirmou, com a voz falhando. — Eu já tinha perdido meus pais, não tinha mais ninguém. Achei que nunca ia conseguir engravidar… e aí veio a Ava. Como um presente que eu não merecia, mas que não podia devolver. Ele engoliu o nó que crescia na garganta. — Eu teria ajudado. Pagado tudo. Qualquer clínica do mundo. — Eu sei — ela sorriu triste. — Mas aí ela seria “a filha do David Martel” desde o primeiro dia. Eu queria que fosse só minha… pelo menos um pouquinho. Desculpa. David abaixou a cabeça. As mãos tremiam de leve. — Eu não sei fazer isso, Rafaela. Não sei trocar fralda, não sei dar mamadeira, não sei… nada. — Você aprende — ela disse, firme apesar de tudo. — Aprende rápido quando ama. E você vai amar, David. Só de olhar pra ela você já tá quase lá. Ele ergueu o rosto. Os olhos dos dois se encontraram de novo, e pela primeira vez ele viu medo de verdade nela. — Promete uma coisa só para mim — pediu Rafaela. — Qualquer coisa. — Não deixa ela me esquecer. Conta que a mãe dela brigou com a morte o quanto pôde pra ficar mais um dia, mais uma hora com ela. Conta que eu amei tanto que doeu. David não conseguiu falar. Apenas assentiu, com a vista embaçada. Rafaela fez sinal para a assistente voltar. Pegou Ava uma última vez, beijou cada pedacinho do rosto dela, respirando fundo aquele cheirinho de bebê que estava prestes a perder para sempre. — Mamãe te ama mais que tudo, meu amor. Seja boazinha com o papai, tá? Ava deu aquela risada molhada, despreocupada, que parte o coração de qualquer adulto. Então Rafaela estendeu os braços trêmulos. David se levantou, hesitante. A assistente colocou a bebê no colo dele com cuidado. O corpinho quente pesou de um jeito que ele nunca imaginou. Ava olhou pra ele, curiosa, depois esfregou o rostinho no peito do paletó caro e soltou um suspiro satisfeito. — Oi, Ava — ele conseguiu dizer, com a voz embargada. — Eu… eu sou seu pai. Vou tentar fazer isso direito. Rafaela sorriu pela última vez, um sorriso pequeno e inteiro ao mesmo tempo. — Você já começou — sussurrou. David apertou a filha contra o peito, sentindo o coraçãozinho dela bater rápido contra o seu, e percebeu que, pela primeira vez na vida, estava segurando algo mais valioso que qualquer contrato, qualquer empresa ou conta bancária. Estava segurando sua filha.






