Mundo ficciónIniciar sesión
A xícara de café já tinha criado aquela película grossa e oleosa na superfície, sinal de que estava ali esquecida há pelo menos meia hora. Arianna nem percebia mais o cheiro. Só virava as páginas do jornal dobrado ao meio, marcando com a unha os anúncios que pareciam promissores e riscando, logo em seguida, os que pediam “experiência comprovada” ou “disponibilidade total, inclusive feriados”.
Dois meses. Dois meses sem salário entrando, só saindo. A geladeira quase vazia, luz com aviso de corte na próxima fatura, aluguel atrasado em quinze dias. Ela contava as moedas do pote de biscoito toda noite, como quem conta os dias que ainda restam. Foi quando viu, lá no canto da página 17, entre um anúncio de curso de manicure e outro de venda de sofá usado: ANGEL HANDS CARE INSTITUTE Procura-se babás para início imediato – 2026 Salário compatível + benefícios Entrevista presencial – levar currículo impresso Rua das Acácias, 184 – Centro Arianna leu três vezes, como se as letras pudessem sumir. Babá. Ela já tinha sido, anos atrás, quando ainda morava com a mãe e precisava de dinheiro pra faculdade. Sabia trocar fralda dormindo, fazer mingau na temperatura certa, acalmar choro de cólica às três da manhã. Talvez ainda soubesse. — Achou alguma coisa que preste ou vai continuar torturando esse jornal? — Zoe apareceu do nada, como sempre, com o avental manchado de café e o coque frouxo caindo no ombro. Sem esperar resposta, pegou a xícara fria da frente de Arianna e, num gesto rápido, trocou por outra que acabara de sair da máquina, fumegante, cheirando a esperança barata de R$ 4,50. Arianna nem agradeceu logo de cara. Só levou a xícara à boca, ansiosa, e queimou a língua na hora. — Ai, caralho! — sussurrou, fazendo careta, abanando a boca com a mão. Zoe deu risada, aquele riso rouco de quem fuma escondido no banheiro do café. — Desculpa, amor. Esse aí tá pelando mesmo. Fica por minha conta, tá? Hoje você não paga nada. — Ela limpou a mão úmida no avental e apoiou a bandeja no quadril. — Então? Vai me contar ou vai ficar aí sofrendo em silêncio que nem sempre? Arianna empurrou o jornal pra frente, apontando o anúncio com o dedo trêmulo. — Aqui. Babá. Entrevista presencial. Acho que vou. Zoe leu rápido, com a sobrancelha arqueada. — Instituto chique, hein. Angel Hands… já ouvi falar. Pagam bem, mas exigem muito. Você tem currículo impresso? — Não… mas tenho em casa. Posso imprimir na lan house da esquina. — Então vai logo, minha filha. Esse tipo de vaga some em duas horas. — Zoe deu um tapinha carinhoso no ombro dela, mas o olhar era sério. — E Ari… — Hm? — Boa sorte. De verdade. Você merece coisa boa, tá ouvindo? Arianna sentiu um nó na garganta que não esperava. Fechou o jornal, dobrou com cuidado como se fosse um documento precioso, e se levantou. As pernas meio moles, o coração batendo descompassado. — Se eu passar, te pago um café da manhã decente. Com pão na chapa e tudo — disse, tentando brincar. Zoe sorriu, mas os olhos estavam marejados. — Passando ou não, você vem aqui amanhã e me conta tudo. Combinado? Arianna assentiu. Guardou o jornal na bolsa surrada, respirou fundo o cheiro de café moído, bolo queimado e desespero misturado com amizade que só quem já precisou muito sabe reconhecer. E saiu correndo pra rua, o vento frio de manhã batendo no rosto, o que ia escrever no currículo ainda quente na mente, como se já estivesse impresso, como se já fosse dela a vaga, como se, pela primeira vez em meses, pudesse acreditar que sim, talvez as coisas fossem dar certo.






