Mundo ficciónIniciar sesiónDavid continuava olhando o envelope aberto sobre a mesa de mogno como se, a qualquer momento, as letras fossem se rearrumar e virar uma piada de mau gosto.
99,9999% de compatibilidade. Pai. A palavra ainda não cabia na cabeça dele. — Tem certeza absoluta de que esse exame não pode estar errado? — perguntou pela terceira vez, desviando do papel para o advogado na sua frente. Ele mal se lembrava da última vez que havia visto a mulher que escondeu dele uma gravidez e depois o nascimento daquela criança. Mas se lembrava que durante alguns meses eles se encontravam em uma boate e ficavam juntos todas as noites. Não era nada muito sério, um tipo de namoro momentâneo, aquele que ele gostava de ter. O advogado, um homem de uns cinquenta anos com cara de quem já viu de tudo, apenas balançou a cabeça, cansado com aquele caso. — Fizemos duas contraprovas em laboratórios diferentes, senhor Martel. O resultado é irrefutável — confirmou o encarando com seriedade. Não tinha como se enganar, era filha dele. David passou a mão pelo rosto, sentindo a barba de dois dias arranhar a palma. Até a semana passada sua maior preocupação era decidir se ia para o lançamento do novo jatinho em Dubai ou passar o fim de semana em Trancoso com a modelo de lingerie do momento. Agora tinha uma filha. De seis meses. Com uma mulher que ele mal lembrava o sobrenome. A voz do advogado voltou, mais suave: — A mãe biológica está internada no Hospital São Luiz, ala oncológica, estágio quatro. Ela assinou a guarda provisória total em seu favor ontem à noite. A assistente social pediu que o senhor vá buscar a criança ainda hoje. Não há mais ninguém. David fechou os olhos por um segundo. Imaginou a cena: ele, de terno Tom Ford, entrando num quarto de hospital, recebendo um bebê nos braços como quem recebe um pacote inesperado. Sentiu o estômago revirar. Nunca que aquilo havia passado por sua cabeça. — Eu não sei nem segurar uma criança direito — disse, sem filtro. — Minha mãe está na Itália, minha irmã em Londres. Eu moro sozinho numa cobertura de quatrocentos metros quadrados cheia de vidro. Nem de animais eu gosto. O advogado deu de ombros, solidário mas firme. — Então o senhor começa contratando uma babá vinte e quatro horas e manda adaptar um dos quartos de hóspedes ainda esta semana. A menina se chama Ava. Ela precisa de você agora, doutor. Não amanhã. Ava. O nome bateu no peito dele como um soco silencioso, mas daqueles que machuca fundo e esse havia machucado. David se levantou, abotoando o paletó por puro reflexo. Olhou pela janela panorâmica: a cidade inteira lá embaixo, luzes, trânsito, gente correndo atrás de alguma coisa. Ele sempre se sentiu dono daquele caos. Agora parecia que o caos é que tinha tomado conta dele. — Manda o endereço do hospital e o contato da assistente social para meu celular — disse, a voz já mais firme, quase fria. Ele sabia que não tinha outra solução e agora tinha de encarar a realidade — E liga pra Angel Hands Care Institute. Quero a melhor babá que eles tiverem. Disponibilidade imediata. Dinheiro não é problema. O advogado apenas concordou, se levantou da cadeira macia de couro e se despediu, tinha muito a fazer ainda. David ficou ali parado um minuto inteiro, olhando para o exame de DNA. Depois dobrou o papel com cuidado exagerado, como se fosse algo frágil demais, e guardou no bolso interno do paletó, bem perto do coração que, pela primeira vez em anos, batia descompassado de medo puro. Ele era pai. E, em poucas horas, ia segurar nos braços a prova viva disso.






