Lorenzo Narrando
Já na empresa, o relógio da minha sala marca 10h04. Segundo atraso da manhã. O fornecedor de componentes da Malásia perdeu o horário da videoconferência e ainda teve a audácia de mandar mensagem pedindo “compreensão”. Compreensão? Um caralhø. Não é essa a palavra que se usa comigo. Comigo, ou você cumpre, ou você desaparece da cadeia de negócios mais rápido do que um arquivo deletado do sistema principal da V-Tech. E eu nem preciso levantar da cadeira pra isso. Meia ligação, um comando, e a sua empresa some. — Gabriel, troca esse fornecedor. Agora. — Falo olhando na sua direção. — Já estou em contato com os sul-coreanos. Estão pedindo 20% a mais na primeira remessa. — Fala com os olhos grudados na tela. — Paga. E depois pressiona. Quando estiverem dentro do nosso sistema, a gente encontra a brecha. Sempre tem uma. Gabriel sabe o jogo. Além de ser meu melhor amigo, ele também trabalha comigo há anos. Sabe que aqui, poder é uma equação simples, dinheiro, dados e intimidação. Volto a analisar os gráficos de desempenho do trimestre. A linha azul, da V-Tech, sobe como deveria. A laranja, da concorrência, tenta acompanhar, mas tropeça. Eles ainda sonham em nos alcançar. É quase fofo. Batem na porta, me tirando do transe. — Entra. — digo, sem tirar os olhos da tela. — Senhor Vasconcellos… desculpa a interrupção, mas… houve um erro na comunicação com os suíços. Eles estão em reunião com os japoneses da YoruTech. Se a parceria sair... — minha secretária fala com a voz firme. Fecho o notebook com força. Me levanto, e vou até a parede de vidro que me dá visão da cidade. — Eu disse a eles que a reunião era às onze. Eles sabiam. Eles aceitaram. — Sim, senhor, mas a assessoria de comunicação não reforçou o horário. — Então demita a assessoria. Hoje. Ela gagueja. — T-Todos? — Não. Só os incompetentes. Começa por quem agendou a chamada e vai subindo. Alguém tem que pagar pela falta de competência, Marta. E não sou eu. Ela engole seco, assente e sai. Gabriel me lança um olhar breve. — A ministra chega em menos de uma hora. Quer que eu fique junto durante o almoço? Porque se não, eu vou para o setor jurídico. — Pode ir pra lá. Eu me resolvo com a ministra. — E o que você quer dela, além do contrato? — pergunta e eu puxo um sorriso de canto. — Quero ter acesso à empresa do marido dela. Tenho motivos pra acreditar que ele tá envolvido com desvio de verba em contratos públicos. Se ela assinar, eu guardo a informação. Se ela recusar, O Estado Unidos inteiro vai ler a respeito disso no jornal. Gabriel balança a cabeça. Não porque discorda, mas porque entende. Ele sabe que eu sou um animal cercado por cifras e cercas elétricas. Um lobo em terno sob medida, cercado por ovelhas que acham que podem comigo. Termino minhas pendências, e 11h21, sigo para o restaurante privativo da cobertura. Piso de mármore branco, luz natural entrando pelas vidraças gigantescas, garçons em silêncio, mesa posta para dois, eu me acomodo e fico no aguardo. Gosto de poder em silêncio. De fazer alguém se sentir pequeno só pelo ambiente. Ela chega com o assessor. Cabelos loiros, blazer azul claro, sorriso de política — um falso “estou feliz em te ver” preso no rosto. — Ministra. — estendo a mão, firme, firme demais. — Sr. Vasconcellos, uma honra estar aqui. Mentira. Ela está apavorada. E deveria estar. Ela senta. Conversa vai, conversa vem. Ela tenta ser formal. Tenta bancar a diplomata. Mas eu conduzo como um maestro. Toco no ponto exato onde ela fraqueja: contratos, riscos, futuro dos filhos. — O que você decidir hoje pode garantir que seu filho entre na faculdade dos sonhos sem escândalo no sobrenome... — falo firme, mão no queixo e olhar fixo nela. Ela hesita. Mais meia hora e a assinatura está no papel. — Foi bom fazer negócios com o Sr. — fala e eu somente concordo. Ela se levanta, e sai, pisando duro. E eu? eu puxo um sorriso de lado, vitorioso como sempre. Levanto, e decido ir até o setor jurídico. Gabriel ficou por lá com a equipe. Eu ando com pressa, passos longos, mão no bolso, celular na outra. Um funcionário passa, se encolhe. Outro finge estar ocupado. Mas então... algo acontece. Algo que não devia acontecer. No meio do corredor, a porta do almoxarifado se abre abruptamente. — Ai, meu Deus! — uma voz feminina exclama. Em câmera lenta, eu vejo. O copo de café, o braço tremendo, o líquido voando... direto no meu terno. Ela congela. Uma mulher de uniforme simples, rosto surpreso, olhos arregalados como se tivesse matado o presidente da república. E talvez, por um segundo, fosse até pior. Ela é jovem. Pele clara, cabelo preso em um coque frouxo, mãos trêmulas. Segura o pano que deveria estar usando pra limpar uma sala qualquer — e agora está ali, me olhando como se eu fosse um monstro. Talvez eu seja mesmo. — O senhor... eu... me desculpa, eu não vi... — ela engasga. Eu olho pra mancha e olho para ela. Ela ainda está parada, esperando alguma reação da minha parte. Apenas encaro. Ela engole seco. Dá um passo pra trás. E aí eu falo. — Qual é o seu nome? Ela empalidece. — H-Helena… senhor… Respiro fundo. A raiva vem quente, mas a voz sai fria. — Você tem trinta segundos pra desaparecer da minha frente. E melhor que não tenha deixado mais nada pelo caminho. Ela sai correndo, quase tropeçando. Armando, um dos advogados, surge do nada, encarando a cena. — O que foi isso? — Nada demais. Vamos. Olho pra mancha no peito. Helena. Gravo o nome. Não por acaso. Mas porque ninguém me marca impunemente. Nem com café. Nem com toque. Nem com nome. Contínua...