Helena narrando…
O corredor parecia não acabar nunca. Minhas pernas bambas quase não obedeciam, e o som dos meus sapatos baratos contra o piso de mármore ecoava mais alto do que deveria. Parecia que cada passo era uma denúncia, um alarme soando: olha a incompetente passando. O cheiro do café ainda impregnava no meu nariz, misturado com o perfume caro dele. A imagem não saía da minha cabeça: a mancha no terno impecável, os olhos dele em cima de mim como lâminas afiadas. Frio, calculado, como se estivesse decidido se valia a pena me destruir ali mesmo, no meio do corredor. Eu me apoiei na parede por um instante, respirando fundo. Não podia chorar. Não ali. Não naquele andar onde até as paredes parecem te julgar. Limpei o rosto com as costas da mão e continuei, segurando o pano sujo que ainda estava comigo. Quase ri de nervoso. Eu, com aquele trapo ridículo na mão, tentando parecer invisível depois de ter derrubado café em cima do homem mais temido da empresa. O nome dele todo mundo sabe. Lorenzo Vasconcellos. O lobo vestido de CEO. O tipo de homem que não precisa levantar a voz pra destruir a vida de alguém — basta olhar. E ele olhou pra mim. Um olhar que me atravessou inteira. Eu senti. Quando finalmente cheguei no banheiro de serviço, lavei as mãos e joguei água no rosto. Me encarei no espelho, vendo o coque desmanchado, a pele pálida, os olhos arregalados demais. — Parabéns, Helena… — murmurei pra mim mesma. — Primeiro mês e você já arruma um motivo pra ser demitida. Mas não dava. Não dava pra ser demitida. Eu não podia. A imagem da minha mãe veio na hora. Ela, na cama, pálida, respirando fundo, com a tosse insistente que não a deixava em paz. Cada comprimido era um pedaço do meu salário. Cada consulta médica, um pedaço maior ainda. Se eu perdesse esse emprego, a gente perdia tudo. Segurei firme na pia, respirei fundo outra vez e ajeitei o uniforme. Não tinha escolha: tinha que continuar. Tinha que varrer, limpar, passar pano como se nada tivesse acontecido. Como se eu não tivesse tropeçado no destino e esbarrado direto no homem que mais devia ser evitado. O resto do dia foi um borrão. Mãos mecânicas esfregando, olhos desviando sempre que alguém passava. Alguns funcionários cochichavam quando eu aparecia. Eu sentia. Talvez fosse paranoia, mas parecia que todo mundo já sabia do café. E o pior, ele sabe meu nome, se for rancoroso, não vai esquecer tão fácil. E isso, de algum jeito, era pior do que se tivesse mandado me demitir na hora. Porque agora ele sabia quem eu era. [...] O relógio bateu seis da tarde e finalmente consegui sair. No ponto de ônibus, o corpo inteiro pesava. Eu queria desaparecer dentro do casaco surrado, fugir dos olhares e dos pensamentos. O ônibus veio cheio, como sempre. Gente cansada, gente que parecia carregar o mundo nas costas, igual eu. Me sentei no fundo, encostei a cabeça no vidro e fechei os olhos por alguns segundos. A cena se repetiu mais uma vez: o café, o olhar dele, a voz fria dizendo que eu tinha trinta segundos. Eu nunca vou esquecer aquele tom. Não foi só uma ordem. Foi uma sentença. Quando o ônibus dobrou na rua do bairro, já estava escuro. As luzes fracas dos postes mal iluminavam o caminho esburacado. Desci, segurei firme a bolsa e atravessei rápido até chegar em casa. O portão rangeu como sempre, a ferrugem denunciando minha chegada. Entrei em casa rapidinho, ansiosa pra chegar no quarto dela e assim eu fiz. Abri a porta devagar e lá estava minha mãe, deitada, encostada nos travesseiros, o rádio ligado baixinho com uma música antiga. — Filha… — ela sorriu fraco quando me viu. Eu sorri também, mas foi automático. Me aproximei e sentei na ponta da cama, larguei a bolsa no chão e respirei fundo. — Mãe… você não vai acreditar no que aconteceu hoje. E contei. Do jeito que consegui. Do café, da porta abrindo, da mancha no terno, dos olhos dele em cima de mim como se eu fosse uma falha imperdoável no sistema dele. Ela ouviu em silêncio, passando a mão devagar no meu cabelo, como sempre fazia quando eu era criança. — Minha filha… você tem que ser forte. Esse tipo de gente… eles se alimentam do medo que a gente sente. Não deixe isso acontecer com você... — Pode deixar mãezinha, só espero que eles não me demitam Apertei os olhos, sentindo a lágrima escorrer. Deitei a cabeça no peito dela, ouvindo o coração batendo lento, firme, apesar de tudo. Por um momento, só um momento, deixei o mundo lá fora. Fechei os olhos e respirei. Mas no fundo, bem no fundo, eu sabia: aquele homem não ia sair da minha vida tão fácil. Aquele olhar não era o tipo de coisa que se esquece. Contínua...