Na manhã seguinte à festa, Bela acordou com os pés doendo, o rosto ainda aquecido e a cabeça cheia de perguntas.
Por que aquele homem a perturbava tanto?
Por que aquele olhar parecia carregar mais do que arrogância?
E, principalmente: por que ela queria vê-lo de novo?
Tentou espantar as perguntas no banho gelado e com goles de chá de jasmim, mas nenhuma das duas coisas foi suficiente. Na aula de Estética Oriental, sentou na primeira fileira, determinada a focar. A professora falava sobre wabi-sabi, a beleza das coisas imperfeitas, incompletas, passageiras. Falava de harmonia, de equilíbrio, de aceitação.
Tudo o que Bela não sentia.
Sua mente vagava entre lembranças desconexas da noite anterior: o terraço iluminado, o calor da dança, o cheiro de citronela no ar… e o olhar de Pravat, que parecia atravessá-la como uma lâmina afiada.
Ao sair da aula, decidiu buscar alívio nos jardins do campus, perto do lago onde flores de lótus flutuavam como promessas de paz. Sentou-se à sombra de uma cerejeira, tentando respirar, tentando voltar a si. Estava ali quando ouviu, sem querer, duas alunas tailandesas conversando próximo demais para que ela ignorasse.
Falavam em voz baixa, mas rápida — como quem partilha um segredo que ainda arde.
— Ele voltou a frequentar a universidade? — perguntou uma.
— Parece que sim. Mas o pai dele deve estar furioso — respondeu a outra.
— Depois do que aconteceu com a mãe dele, eu teria sumido — disse a primeira, com uma expressão preocupada.
Bela parou de respirar por um instante.
Não queria ouvir, mas não conseguia evitar. Aquilo era sobre ele. Sobre Pravat.
— E aquele escândalo da marca da família? Ele quase destruiu tudo — completou a colega. — Ninguém sabia que ele era tão… instável.
Instável.
A palavra grudou na mente de Bela como uma cicatriz fresca. Era isso que viam nele? Era isso que ele escondia sob o olhar duro e as tatuagens?
Assim que elas se afastaram, Bela se levantou. Sentia o coração batendo mais rápido do que devia. Precisava entender. Precisava saber se o que sentia era apenas atração — ou um pressentimento real. Algo que exigia cuidado.
Passou a tarde inquieta. Tentou estudar, mas os olhos percorriam as linhas dos livros sem absorver nada. Na cafeteria, encarou a xícara de café como se fosse um espelho, tentando encontrar ali uma resposta qualquer. Pensou em mandar uma mensagem para Pravat, mas o que diria? "Oi, ouvi boatos sobre sua mãe desaparecida e decidi investigar sua alma"?
Não. Precisava de algo mais sólido. Precisava entender antes de se entregar à curiosidade.
À noite, quando o campus se acalmou e os corredores ficaram vazios, ela foi até a biblioteca. Sabia que Sinn costumava estudar lá até tarde, escondida em uma das cabines com livros de moda espalhados.
Encontrou a amiga com um coque torto e fones no pescoço, rabiscando algo em um caderno.
— Sinn… posso te perguntar uma coisa?
Ela levantou o olhar, percebendo o tom da voz de Bela.
— Claro. Você parece séria. É sobre o Pravat?
Bela assentiu, sentando-se à frente dela.
— É. O que aconteceu com a mãe dele?
Sinn fechou o livro devagar, como quem prepara o espírito antes de mexer em uma ferida antiga.
— Isso não é exatamente assunto comum, mas… se você pretende continuar cruzando o caminho dele, é melhor saber.
Fez uma pausa antes de continuar.
— A mãe do Pravat era estilista. Famosa, talentosa, muito respeitada aqui. Era o coração da marca da família: uma grife tradicional que usava seda tingida à mão, técnicas ancestrais. Tudo muito refinado, muito valioso.
Bela ouvia em silêncio, sentindo os fios se entrelaçarem.
— Ela e o pai dele eram sócios, mas também viviam em conflito. Há quem diga que ele a pressionava demais, queria modernizar a marca às custas das raízes culturais. Dizem que ela sofria em silêncio há anos. Até que, um dia… ela simplesmente teve um colapso. Parou de ir à sede da marca. Parou de aparecer em eventos. E então… sumiu.
Bela engoliu seco.
— Sumiu?
— Literalmente. Saiu de casa um dia e nunca mais voltou. Deixou tudo pra trás. A polícia investigou, claro, mas nunca encontraram o corpo. A teoria mais aceita é que tenha tirado a própria vida. Mas Pravat… ele nunca acreditou nisso.
Ela se calou por um instante.
— Ele surtou. Discutiu com o pai na frente da imprensa, acusou a própria família de encobrir algo. Disse que a mãe estava sendo destruída por dentro e ninguém fez nada. Depois disso, ele desapareceu por meses. E quando voltou… era outro.
Bela sentia o coração apertado. Tudo fazia mais sentido agora: o olhar sombrio, o desprezo pelas regras, a raiva contida.
— Ninguém fala disso aqui — completou Sinn, mais suave. — Mas todo mundo sabe. E todo mundo julga. Ele virou um fantasma com nome poderoso. Assusta, incomoda, mas ninguém quer se aproximar de verdade.
Bela ficou olhando para a mesa de madeira. Sentia-se entre duas forças: o instinto de se proteger e o desejo de entender mais aquele homem quebrado.
— Você acha que ele é perigoso? — perguntou em voz baixa.
Sinn inclinou a cabeça, pensativa.
— Não acho que ele seja perigoso. Mas… ele carrega uma dor profunda. E às vezes, quem carrega esse tipo de dor… não sabe muito bem como proteger os outros dela.
Aquela frase ecoou como um sussurro profético.
Mais tarde, no quarto, a cidade já estava mergulhada em silêncios e sussurros.
Do lado de fora, o céu escurecia em tons de púrpura. Bela olhava pela janela, com os pensamentos girando. Então, ao longe, viu um brilho conhecido.
Faróis em movimento.
Uma moto preta cruzava a rua estreita entre os prédios residenciais do campus. Devagar. Como uma sombra. Como se soubesse que alguém a observava.
Seu coração deu um salto, mesmo sem saber por quê.
Ela deveria se afastar. Deveria colocar limites.
Mas, no fundo, algo nela já sabia: era tarde demais para voltar atrás.
Pravat não era apenas um garoto rebelde com tatuagens e segredos.
Ele era o tipo de dor que combina com a dela.
E talvez… fosse só o começo.
Ou talvez, o começo do fim.
Naquela noite, Bela não conseguia dormir.As imagens da Casa Silken dançavam em sua mente como sombras em seda: os vestidos suspensos como corpos etéreos, o cheiro denso de jasmim que parecia se agarrar aos seus cabelos, os corredores que pareciam mais longos à medida que o silêncio se aprofundava. Mas o que a mantinha acordada era o olhar do pai de Niran — frio como mármore antigo — e, acima de tudo, o toque amargo na voz de Pravat ao falar da mãe.“Isso tudo pode parecer belo por fora, mas está apodrecendo por dentro.”Essas palavras ecoavam como uma oração corrompida, repetindo-se em um ciclo de lembrança e inquietação. Ela se virava na cama, os lençóis embolados ao redor do corpo, tentando afastar aquela sensação sufocante de que havia tocado, sem querer, em uma ferida aberta. Pravat não era só mistério. Ele era dor e raiva cuidadosamente guardadas sob camadas de silêncio.E, paradoxalmente, era isso que mais a atraía nele.Não os olhos escuros ou a postura quase militar. Mas o qu
Bela seguiu sua rotina, como se tudo fosse normal. As aulas, as conversas casuais com amigos, as tardes gastas entre experimentos no laboratório de tingimento, as noites solitárias, e os sorrisos automáticos. Ela estava ali, fisicamente presente, mas sua mente era uma tempestade constante. Cada pensamento parecia girar em torno de uma imagem: Pravat. Seu rosto, seus olhos, sua voz. A maneira como ele olhou para ela naquela noite, como se soubesse algo que ela mesma ainda não conseguia compreender.Mas não era apenas ele. Era tudo o que ele representava. O que ela sentia quando estava perto dele, a tensão no ar, como se o tempo se esticasse e os momentos entre eles se transformassem em algo mais, algo irreversível. E o pior: ela não sabia mais se queria fugir disso.A visita à Casa Silken estava gravada em sua mente, um filme repetido em sua cabeça. O luxo da mansão, os corredores vazios e frios, os segredos que o pai de Niran carregava como se fossem medalhas de honra, mas que, no fun
Bela não dormiu naquela noite.Revivia o beijo em looping. O calor. A tensão. O gosto de urgência. A forma como os dedos de Pravat apertaram sua cintura como se segurassem algo prestes a escapar. Mas, acima de tudo, ela revivia a expressão dele ao se afastar — como se tivesse feito algo imperdoável. Um misto de desejo e arrependimento, como se tivesse quebrado uma promessa que não queria ter feito. Algo que ele não sabia como consertar, mas que já o consumia por dentro.Na manhã seguinte, Bela tentou seguir com a rotina. Aula de composição tradicional, um trabalho em grupo sobre harmonias folclóricas, almoço rápido no campus. Tentou se manter focada. Mas a presença dele rondava tudo — como fumaça que se infiltra pelas frestas. Cada passo, cada palavra dita pelos colegas parecia ser uma sombra distante do que realmente importava. Ela tentava desviar o pensamento, mas era impossível. Pravat estava ali, em cada canto do seu dia, sem estar fisicamente presente.Pravat não apareceu. Nem um
O sol da manhã não era tão quente, mas o peso sobre os ombros de Bela era o mesmo de uma tempestade prestes a cair. Um daqueles temporais que se anunciam em silêncio, mas que você sente no fundo do estômago, como se a pressão do ar fizesse o mundo ao redor se condensar e se tornar mais denso. Ela sabia que algo estava prestes a acontecer, uma mudança que não poderia mais ser evitada, mesmo que tentasse ignorá-la.Ela não sabia o que exatamente a havia levado até aquele ponto. Talvez tivesse sido o beijo. Ou as palavras não ditas logo depois, que se perderam naquelas horas tensas entre eles. Ou talvez fosse o modo como Pravat a fazia sentir — como se estivesse sempre no limite entre o abismo e o voo, com o olhar profundo e a presença avassaladora que ele exalava. Cada vez que ele a tocava, mesmo que fosse com um simples gesto, ela se sentia empurrada para a borda de algo maior, algo arriscado e perigoso.Agora, tudo parecia uma linha tênue entre o que ela queria e o que seria melhor pa
A cidade parecia diferente depois daquele encontro. Os mesmos caminhos que antes pareciam rotineiros agora pulsavam com uma estranha tensão, como se cada pedra do calçamento soubesse de algo que ela ainda não sabia por completo. Cada esquina, cada sombra, cada som — tudo parecia carregar o peso das palavras que ainda ecoavam na cabeça de Bela. As vozes ao seu redor se tornaram sussurros distantes, irrelevantes diante da avalanche de pensamentos que martelavam em sua mente. Ela sabia. Sabia que não podia mais ignorar os riscos, que a linha que separava o cotidiano da tempestade estava cada vez mais tênue.Mas também sabia que, ao lado de Pravat, ela não podia simplesmente se afastar. Não depois de tudo o que tinham vivido, das camadas que haviam se despido um diante do outro, revelando verdades doloridas e desejos irreprimíveis. Algo havia sido despertado — algo que não podia mais ser enterrado sob a desculpa da segurança ou do bom senso. Era mais forte do que ela, mais forte do que o
A semana seguinte foi um turbilhão de emoções e decisões. O que parecia ser uma leve esperança logo se transformava em uma carga de dor, e Bela sentia a pressão crescer a cada dia. As noites tornaram-se longas e insones, e os dias, um misto de expectativa e frustração. Cada segundo parecia carregar o peso de uma decisão não tomada, de palavras que nunca chegavam.Pravat estava diferente, mais distante. Ele tentava manter a fachada, manter a rotina e a compostura, mas o peso de sua família, da história que o aprisionava, parecia finalmente ter vencido qualquer tentativa de se manter próximo a ela. Ele a evitava, sem dizer nada, e Bela sentia um vazio crescente entre eles, uma linha tênue prestes a se romper. O sorriso que antes a fazia esquecer os problemas agora era apenas uma lembrança, e a ausência dele se tornava cada vez mais insuportável.Ela não podia negar que sentia a ausência dele de uma forma quase física. Cada mensagem sem resposta, cada olhar desviado, era como um golpe no
A noite caiu lentamente sobre a cidade, como um manto de veludo escuro que apagava os contornos dos prédios e silenciava o burburinho das ruas. As luzes amareladas dos postes piscavam tímidas, refletindo-se nas poças deixadas por uma garoa recente, como se até o céu estivesse indeciso, preso entre o choro e o alívio. Mas o pensamento de Bela estava em outro lugar — um espaço sombrio, interno, onde as sombras de suas dúvidas e medos se misturavam com os conflitos não ditos de Pravat. Ela tentava não pensar demais, mas era impossível ignorar a angústia crescente que se infiltrava como fumaça por cada brecha de sua alma.Ele estava se afastando. Ela sabia. Sentia. Não fisicamente — ainda —, mas emocionalmente. Como um fio de ligação que se parte em silêncio, um gesto que deixa de acontecer, um olhar que se evita. Como se o amor deles tivesse se tornado um fardo que ele não conseguia mais sustentar, embora ela ainda o segurasse com ambas as mãos, os dedos machucados pela insistência. Cada
O sol estava se pondo, tingindo o céu de Bangkok com tons alaranjados, vermelhos e dourados, como se o próprio universo estivesse ciente do peso das decisões que estavam por vir. O calor do dia se dissipava lentamente, mas a tensão no ar era palpável — densa, quase visível. As buzinas e o burburinho da cidade pareciam ecoar ao longe, como se o mundo estivesse em segundo plano para o que realmente importava: aquele momento.Pravat e Bela estavam sentados na varanda do apartamento dele, observando o horizonte. As luzes da cidade começavam a se acender uma a uma, refletindo no rio Chao Phraya, que serpenteava com lentidão sob as pontes e prédios antigos. A brisa leve balançava os cabelos dela, e o silêncio entre eles era menos sobre falta de palavras e mais sobre a presença esmagadora da realidade.Eles estavam mais próximos do que nunca — mais conectados em sentimentos, em propósito, em medo. Mas, como ambos sabiam, isso não significava que estivessem a salvo. O tempo parecia conspirar