O convite para a festa veio de surpresa. Sinn apareceu no quarto de Bela sem bater, empurrando a porta com o ombro e um sorriso malicioso nos lábios. Nas mãos, segurava duas camisetas customizadas com glitter, recortes ousados e frases escritas em tailandês que Bela não conseguia entender.
— Hoje tem festa de boas-vindas pros intercambistas. É meio que... não-oficial — disse, agitando uma das blusas como se fosse um troféu. — Vai ser no terraço de um prédio velho perto do rio Chao Phraya. A vista é linda e os problemas são garantidos.
Bela arqueou uma sobrancelha. Estava sentada na cama, cercada de livros e anotações, tentando se convencer de que ficar em casa era o melhor caminho para se adaptar. Mas a proposta parecia arrancá-la exatamente do que ela mais temia: a inércia.
— Não sei se quero confusão… — disse, com um tom mais defensivo do que pretendia.
Sinn revirou os olhos e jogou uma das camisetas no colo dela.
— É por isso mesmo que você tem que ir — rebateu. — Você veio pra Bangkok pra viver, não pra se esconder. E, com sorte, o Pravat nem vai aparecer.
Essas últimas palavras foram como combustível. O nome dele soou como uma fagulha que acendeu algo que Bella não queria admitir. Então ele frequentava festas assim? Talvez esse fosse o tipo de lugar onde a verdade sobre ele aparecesse — longe dos corredores da universidade, longe das histórias e boatos.
O simples pensamento fez sua pele arrepiar.
Duas horas depois, Bela subia as escadas estreitas e mal-iluminadas de um prédio antigo, com o coração acelerado. A camiseta com recortes que Sinn havia lhe dado agora estava ajustada ao corpo, combinando com um short jeans e botas baixas. Nos ombros, uma mochila pequena com celular, carteira e uma garrafa de chá gelado — porque, por enquanto, ela ainda preferia manter o controle.
— Tá pronta pra quebrar umas regras? — sussurrou Sinn, à frente, rindo enquanto segurava a latinha de energético como se fosse um troféu.
— Uma ou duas. Não prometo mais que isso.
A cada andar, a música crescia. O som vibrava nas paredes de concreto nu, misturado ao cheiro de incenso barato, frituras e perfume doce demais. Quando finalmente chegaram ao terraço, a vista arrancou de Bela um suspiro involuntário.
O rio Chao Phraya serpenteava abaixo, refletindo as luzes da cidade como se fosse feito de prata líquida. Cordões de LED coloridos cruzavam o espaço de uma ponta à outra, pendurados entre vasos com plantas tropicais. Bandeiras tailandesas, lanternas de papel e grafites improvisados criavam uma atmosfera ao mesmo tempo caótica e mágica.
Gente dançava, ria, bebia. Casais se beijavam em cantos escuros. Grupos se formavam e se dissolviam como ondas. A língua predominante era o tailandês, mas Bela ouvia palavras em inglês, espanhol, coreano. Era um mundo sem regras fixas, onde tudo podia acontecer.
Ela se deixou levar.
Dançou um pouco com Sinn e outras meninas. Conheceu estudantes da França, da Coreia do Sul, da Argentina. Riu de histórias malucas sobre motoristas de tuk-tuk, templos onde monges ofereciam conselhos amorosos e sustos com comidas apimentadas demais.
Por alguns minutos, sentiu-se leve. Quase livre.
— Eu disse que ia valer a pena — comentou Sinn, oferecendo um pedaço de pão com algo indefinido dentro, que Bela recusou com uma careta.
— Ainda não confio em comida que brilha — disse, rindo.
— Isso é só pimenta em gel. Viva um pouco.
Ela estava quase começando a considerar quando o ar mudou.
Foi como um sussurro coletivo. Uma mudança imperceptível de energia. Como se o ambiente tivesse percebido a presença de algo — ou de alguém — que não se encaixava no resto.
Ela virou o rosto — e lá estava ele.
Encostado em uma das paredes laterais, meio na sombra, copo na mão, camiseta preta, olhar intenso. O cabelo bagunçado, uma tatuagem visível no antebraço esquerdo. Como se não pertencesse àquele mundo, mas dominasse tudo com um simples movimento de cabeça.
Pravat.
— Ele está te olhando — sussurrou Sinn, aparecendo ao lado dela com uma garrafa de cerveja artesanal. — E quando ele olha assim… é porque vai se aproximar.
— Ótimo — disse Bela, tentando soar indiferente. — Eu vou sair antes.
Mas antes que pudesse dar dois passos, uma voz familiar cortou o ar:
— Achei que sonhadoras não curtissem festas ilegais.
Bela se virou devagar, como se encarar um predador fosse mais seguro do que dar as costas.
Ele estava perto demais. O mesmo meio sorriso de sempre — meio desafio, meio charme. O olhar que parecia atravessar a pele.
— Achei que bad boys tinham algo melhor pra fazer do que perseguir garotas em intercâmbio — respondeu ela, erguendo uma sobrancelha com firmeza.
Ele riu, uma risada baixa, rouca, que parecia vibrar na base do estômago dela.
— Não te persegui. Você apareceu no meu caminho. De novo.
— Talvez seja o universo tentando me avisar — murmurou Bela, cruzando os braços.
— Ou tentando me avisar — rebateu ele, olhando para o horizonte atrás dela. O rio, as luzes, a cidade que nunca dormia.
Silêncio.
Por alguns segundos, o som da música ao fundo parecia distante. Os dois estavam presos naquele instante suspenso, onde nada era seguro, mas tudo parecia possível.
Os olhos dele eram mais escuros do que ela lembrava. Castanhos profundos, quase negros. Havia algo neles que ia além da arrogância — algo quebrado. Um cansaço disfarçado de desdém. Como se ele carregasse o peso de um mundo que ninguém mais via.
Ela desviou o olhar primeiro.
— Não quero encrenca, Pravat — disse, mais pra si mesma do que pra ele.
Ele deu um gole na bebida, largou o copo vazio em uma pilha improvisada de garrafas e respondeu, sem piscar:
— Já é tarde demais pra isso.
E saiu andando, desaparecendo no meio da multidão como se nunca tivesse estado ali.
Bela ficou parada, tentando controlar o próprio coração, que batia em um ritmo desigual. As luzes pareceram mais fracas, o ar mais denso.
Ela não entendia aquele garoto.
Ele não era gentil. Não era doce. Não dizia o que ela queria ouvir.
Mas havia algo ali.
Algo que queimava sob a pele.
Um fogo lento, prestes a explodir.
E o pior de tudo… era o medo que sentia de querer ver as chamas queimarem tudo — inclusive a si mesma.
Na manhã seguinte à festa, Bela acordou com os pés doendo, o rosto ainda aquecido e a cabeça cheia de perguntas.Por que aquele homem a perturbava tanto?Por que aquele olhar parecia carregar mais do que arrogância?E, principalmente: por que ela queria vê-lo de novo?Tentou espantar as perguntas no banho gelado e com goles de chá de jasmim, mas nenhuma das duas coisas foi suficiente. Na aula de Estética Oriental, sentou na primeira fileira, determinada a focar. A professora falava sobre wabi-sabi, a beleza das coisas imperfeitas, incompletas, passageiras. Falava de harmonia, de equilíbrio, de aceitação.Tudo o que Bela não sentia.Sua mente vagava entre lembranças desconexas da noite anterior: o terraço iluminado, o calor da dança, o cheiro de citronela no ar… e o olhar de Pravat, que parecia atravessá-la como uma lâmina afiada.Ao sair da aula, decidiu buscar alívio nos jardins do campus, perto do lago onde flores de lótus flutuavam como promessas de paz. Sentou-se à sombra de uma c
Naquela noite, Bela não conseguia dormir.As imagens da Casa Silken dançavam em sua mente como sombras em seda: os vestidos suspensos como corpos etéreos, o cheiro denso de jasmim que parecia se agarrar aos seus cabelos, os corredores que pareciam mais longos à medida que o silêncio se aprofundava. Mas o que a mantinha acordada era o olhar do pai de Niran — frio como mármore antigo — e, acima de tudo, o toque amargo na voz de Pravat ao falar da mãe.“Isso tudo pode parecer belo por fora, mas está apodrecendo por dentro.”Essas palavras ecoavam como uma oração corrompida, repetindo-se em um ciclo de lembrança e inquietação. Ela se virava na cama, os lençóis embolados ao redor do corpo, tentando afastar aquela sensação sufocante de que havia tocado, sem querer, em uma ferida aberta. Pravat não era só mistério. Ele era dor e raiva cuidadosamente guardadas sob camadas de silêncio.E, paradoxalmente, era isso que mais a atraía nele.Não os olhos escuros ou a postura quase militar. Mas o qu
Bela seguiu sua rotina, como se tudo fosse normal. As aulas, as conversas casuais com amigos, as tardes gastas entre experimentos no laboratório de tingimento, as noites solitárias, e os sorrisos automáticos. Ela estava ali, fisicamente presente, mas sua mente era uma tempestade constante. Cada pensamento parecia girar em torno de uma imagem: Pravat. Seu rosto, seus olhos, sua voz. A maneira como ele olhou para ela naquela noite, como se soubesse algo que ela mesma ainda não conseguia compreender.Mas não era apenas ele. Era tudo o que ele representava. O que ela sentia quando estava perto dele, a tensão no ar, como se o tempo se esticasse e os momentos entre eles se transformassem em algo mais, algo irreversível. E o pior: ela não sabia mais se queria fugir disso.A visita à Casa Silken estava gravada em sua mente, um filme repetido em sua cabeça. O luxo da mansão, os corredores vazios e frios, os segredos que o pai de Niran carregava como se fossem medalhas de honra, mas que, no fun
Bela não dormiu naquela noite.Revivia o beijo em looping. O calor. A tensão. O gosto de urgência. A forma como os dedos de Pravat apertaram sua cintura como se segurassem algo prestes a escapar. Mas, acima de tudo, ela revivia a expressão dele ao se afastar — como se tivesse feito algo imperdoável. Um misto de desejo e arrependimento, como se tivesse quebrado uma promessa que não queria ter feito. Algo que ele não sabia como consertar, mas que já o consumia por dentro.Na manhã seguinte, Bela tentou seguir com a rotina. Aula de composição tradicional, um trabalho em grupo sobre harmonias folclóricas, almoço rápido no campus. Tentou se manter focada. Mas a presença dele rondava tudo — como fumaça que se infiltra pelas frestas. Cada passo, cada palavra dita pelos colegas parecia ser uma sombra distante do que realmente importava. Ela tentava desviar o pensamento, mas era impossível. Pravat estava ali, em cada canto do seu dia, sem estar fisicamente presente.Pravat não apareceu. Nem um
O sol da manhã não era tão quente, mas o peso sobre os ombros de Bela era o mesmo de uma tempestade prestes a cair. Um daqueles temporais que se anunciam em silêncio, mas que você sente no fundo do estômago, como se a pressão do ar fizesse o mundo ao redor se condensar e se tornar mais denso. Ela sabia que algo estava prestes a acontecer, uma mudança que não poderia mais ser evitada, mesmo que tentasse ignorá-la.Ela não sabia o que exatamente a havia levado até aquele ponto. Talvez tivesse sido o beijo. Ou as palavras não ditas logo depois, que se perderam naquelas horas tensas entre eles. Ou talvez fosse o modo como Pravat a fazia sentir — como se estivesse sempre no limite entre o abismo e o voo, com o olhar profundo e a presença avassaladora que ele exalava. Cada vez que ele a tocava, mesmo que fosse com um simples gesto, ela se sentia empurrada para a borda de algo maior, algo arriscado e perigoso.Agora, tudo parecia uma linha tênue entre o que ela queria e o que seria melhor pa
A cidade parecia diferente depois daquele encontro. Os mesmos caminhos que antes pareciam rotineiros agora pulsavam com uma estranha tensão, como se cada pedra do calçamento soubesse de algo que ela ainda não sabia por completo. Cada esquina, cada sombra, cada som — tudo parecia carregar o peso das palavras que ainda ecoavam na cabeça de Bela. As vozes ao seu redor se tornaram sussurros distantes, irrelevantes diante da avalanche de pensamentos que martelavam em sua mente. Ela sabia. Sabia que não podia mais ignorar os riscos, que a linha que separava o cotidiano da tempestade estava cada vez mais tênue.Mas também sabia que, ao lado de Pravat, ela não podia simplesmente se afastar. Não depois de tudo o que tinham vivido, das camadas que haviam se despido um diante do outro, revelando verdades doloridas e desejos irreprimíveis. Algo havia sido despertado — algo que não podia mais ser enterrado sob a desculpa da segurança ou do bom senso. Era mais forte do que ela, mais forte do que o
A semana seguinte foi um turbilhão de emoções e decisões. O que parecia ser uma leve esperança logo se transformava em uma carga de dor, e Bela sentia a pressão crescer a cada dia. As noites tornaram-se longas e insones, e os dias, um misto de expectativa e frustração. Cada segundo parecia carregar o peso de uma decisão não tomada, de palavras que nunca chegavam.Pravat estava diferente, mais distante. Ele tentava manter a fachada, manter a rotina e a compostura, mas o peso de sua família, da história que o aprisionava, parecia finalmente ter vencido qualquer tentativa de se manter próximo a ela. Ele a evitava, sem dizer nada, e Bela sentia um vazio crescente entre eles, uma linha tênue prestes a se romper. O sorriso que antes a fazia esquecer os problemas agora era apenas uma lembrança, e a ausência dele se tornava cada vez mais insuportável.Ela não podia negar que sentia a ausência dele de uma forma quase física. Cada mensagem sem resposta, cada olhar desviado, era como um golpe no
A noite caiu lentamente sobre a cidade, como um manto de veludo escuro que apagava os contornos dos prédios e silenciava o burburinho das ruas. As luzes amareladas dos postes piscavam tímidas, refletindo-se nas poças deixadas por uma garoa recente, como se até o céu estivesse indeciso, preso entre o choro e o alívio. Mas o pensamento de Bela estava em outro lugar — um espaço sombrio, interno, onde as sombras de suas dúvidas e medos se misturavam com os conflitos não ditos de Pravat. Ela tentava não pensar demais, mas era impossível ignorar a angústia crescente que se infiltrava como fumaça por cada brecha de sua alma.Ele estava se afastando. Ela sabia. Sentia. Não fisicamente — ainda —, mas emocionalmente. Como um fio de ligação que se parte em silêncio, um gesto que deixa de acontecer, um olhar que se evita. Como se o amor deles tivesse se tornado um fardo que ele não conseguia mais sustentar, embora ela ainda o segurasse com ambas as mãos, os dedos machucados pela insistência. Cada