Acordei com a trilha sonora do apocalipse: “Paradise City”, do Guns N’ Roses, tocando no último volume.
Rolei na cama, tateando o celular como se isso fosse silenciar o caos. Mas o som não vinha do meu despertador — vinha da sala. Pulei da cama com os cabelos emaranhados, vesti o primeiro moletom que achei e desci as escadas ainda meio cega de sono. Caio estava deitado no sofá, com uma tigela de cereal equilibrada no abdômen e o pé apoiado na mesinha de centro. De cueca. E só. — Tá maluco? — gritei, cobrindo os olhos com a mão. — Que tipo de psicopata coloca rock pesado às sete e meia da manhã? — O tipo que acorda feliz. Bom dia, flor do dia. — Me chama de flor mais uma vez e eu taco esse cereal na sua cara. Ele deu um sorriso, mastigando como se estivesse assistindo a um episódio de comédia. — Você é sempre assim de manhã? Temperamental? Dramática? Sexy? — Sexy? — arregalei os olhos. — Você tá me tirando? — Um pouquinho só. Revirei os olhos e marchei até o controle remoto, abaixando o volume como quem desarma uma bomba. — Isso aqui é um lar, não uma balada de motoqueiro — murmurei, indo até a cozinha preparar um café preto forte como meu ódio por ele. — Tá nervosa porque sonhou comigo? Pode contar, não julgo. Respirei fundo. Contar até dez. Ou até cem. — Não. Tô nervosa porque, em menos de 24 horas, você conseguiu transformar esse loft em um episódio de tortura psicológica. Parabéns, Caio. Medalha de ouro. Ele riu, sem um pingo de arrependimento, e se levantou. Era injusto alguém parecer tão relaxado e atraente antes das oito da manhã. Droga, até o andar dele era irritantemente bonito. E por que ele tinha aquele tanquinho? Ninguém precisa de abdômen definido pra morar num loft de aluguel dividido. — A propósito — ele disse, pegando o celular no balcão —, deixei seu nome na conta de luz. O síndico precisa de uma cópia do seu RG. E você ronca. — O quê? — Isso mesmo. Ronca. Alto. Tipo motor de lancha. — Você tava me ouvindo dormir? — Você acha que essas paredes são grossas? Lara, querida, eu ouvi até o barulho da sua escova de dente caindo na pia. Enfiei duas fatias de pão na torradeira, fingindo que não estava vermelha até a raiz do cabelo. — Ótimo. Agora, além de dormir mal, tenho que saber que você tá catalogando meus hábitos noturnos. — Só tô observando. Cientificamente. Fico impressionado com a quantidade de palavrão que você diz dormindo. — EU NÃO— A torrada pulou e eu quase dei um grito, interrompendo meu surto. Ele gargalhou. Um som rouco, espontâneo. E, pra meu desgosto, contagiante. Eu não ria. Não mesmo. Só curvei os lábios num trejeito que parecia ódio. Mas talvez fosse alguma coisa além. Nos sentamos em silêncio por um minuto. Só o som do café sendo servido e da chuva fina contra a janela da sala. — Então... vai procurar emprego hoje? — ele perguntou, como quem testava terreno. — Vou. Tem uma entrevista à tarde. Pequena agência, zona sul. Não é ideal, mas é algo. — Publicidade? Assenti. — E você? Ainda no mundo das startups? — Mais ou menos. Tô lançando um app novo com uns amigos. Aquele esquema: longas horas, pouco sono, café intravenoso. — Você sempre foi workaholic — comentei, sem pensar. Ele ergueu uma sobrancelha. — Você lembra disso? Merda. — Lembro de tudo que me irritava em você. Como você mordia a tampa da caneta antes das provas. E como você fazia questão de discordar de mim em todas as discussões em sala. — Talvez eu só quisesse a sua atenção — ele disse, num tom leve demais para ser totalmente brincadeira. Parei. Meu coração deu uma batida estranha. Mas sacudi a cabeça, fingindo desdém. — Parabéns. Conseguiu minha raiva. Ele sorriu de novo. Com aquele brilho no olhar que fazia parecer que ele sabia mais do que deixava transparecer. Terminei meu café e subi de volta pro quarto. Precisava me arrumar para a entrevista. Precisava colocar meu cérebro em modo profissional. Precisava esquecer que Caio Moreno estava sem camisa na cozinha, ouvindo rock, tomando cereal e me deixando... perturbada. Mas quando me olhei no espelho, não consegui ignorar o arrepio que ainda sentia na nuca. Viver sob o mesmo teto com o inquilino dos infernos prometia ser mais do que um desafio. Prometia ser um inferno de tentação. E eu não tinha ideia de como ia sobreviver.