Se vestir para uma entrevista de emprego deveria ser uma tarefa simples. Mas não quando você acorda atrasada, toma banho com água fria porque o “inquilino dos infernos” usou toda a água quente, e ainda por cima descobre que seu único blazer decente está manchado com alguma coisa que parece café... ou sangue. Prefiro não investigar.
Lutei com o ferro de passar por dez minutos até decidir que a blusa branca meio amarrotada dava um ar despojado. “Criativa e autêntica”, eu repetia mentalmente enquanto passava corretivo nas olheiras e torcia para parecer alguém funcional. — Tá bonita. Tá indo pra onde? — Caio perguntou da cozinha, onde agora fazia panquecas. O cheiro me provocava mais do que eu gostaria de admitir. — Entrevista — respondi, pegando minha bolsa. — E não precisa soar tão surpreso. — Não tô surpreso. Tô impressionado. Eu achei que você ia viver de brigar comigo até o fim do contrato. — Ainda é meu plano B. Ele riu e me jogou uma banana. — Pra energia. Você tá com cara de quem vai desmaiar no metrô. Suspirei. Peguei a fruta, mesmo que odiando a gentileza. — Obrigada. E... valeu por deixar a água quente toda pra você, tá? — Lara, isso é guerra. Você começou com o controle da TV. Agora, cada um por si. Dei um passo até a porta, já bufando. — Você é impossível. — E você ainda vai se apaixonar por mim. Revirei os olhos, mas senti o rosto queimar. De novo. Saí do loft antes que ele visse meu meio sorriso traidor. Cheguei na agência com cinco minutos de atraso e um cabelo que nem o coque improvisado salvava. O prédio era moderno, com uma fachada de vidro e plantas decorativas demais. Estava claramente acima do que eu achava que conseguiria nesse momento da minha vida. Na recepção, uma moça de rabo de cavalo e cara de quem tomava água com clorofila me lançou um sorriso mecânico. — Você é a Lara Mendes? — Sim. Entrevista para redatora. — Pode subir. Sala 3. O diretor vai te receber. Peguei o elevador respirando fundo, ensaiando respostas clichês e tentando parecer profissional. Mas o universo não estava do meu lado hoje. Assim que a porta da Sala 3 se abriu, dei de cara com ele. — Renato? Meu ex. Sim. Aquele ex. O do término humilhante. O que me trocou por uma estagiária de 20 anos com voz de desenho animado. Ele me olhou, pasmo. Depois riu. — Lara? Você tá aqui pra entrevista? O sangue sumiu do meu rosto. Ou talvez tivesse subido tão rápido que eu parecia uma pimenta malagueta em carne viva. — Você trabalha aqui? — perguntei, torcendo para aquilo ser uma pegadinha do destino. Ou câmera escondida. — Sou diretor criativo agora. A vaga é na minha equipe. Sorri. Um sorriso falso tão grande que doeu. — Que coincidência maravilhosa. — Achei que você tinha ido pra agência de branding. Aquela em Pinheiros? — Fui. Mas... reestruturação. E você sabe como é o mercado. — Claro. Tá difícil mesmo. Ele disse isso com um tom quase paternal, como se estivesse falando com uma criança que perdeu a lancheira. Durante a entrevista, ele fez questão de destacar tudo o que eu não sabia. Perguntou sobre campanhas específicas que ele sabia que eu nunca tinha tocado. Comentou que a nova geração vinha com “energia mais fresca”. E, por fim, me ofereceu uma vaga como freelancer remota, sem benefícios e com salário que mal pagava o aluguel. — Você é boa, Lara. Só precisa se atualizar — ele disse, estendendo a mão. — Fica de olho. Quem sabe no futuro... Saí da sala sem apertar a mão dele. No metrô, sentei no banco duro, entre uma senhora com cheiro de naftalina e um adolescente jogando Candy Crush no volume máximo. Quis chorar. Gritar. Comprar uma passagem só de ida pro Acre. Mas me contive. Fiz o que sempre faço quando o mundo parece estar me empurrando pra baixo: respirei fundo, coloquei um fone de ouvido e imaginei um futuro onde eu estaria rindo disso tudo, com um emprego incrível, rímel caro e alguém me servindo panquecas — alguém que não fosse o Caio. Mas, claro, meu dia não tinha acabado. Cheguei em casa, tirei os sapatos e fui direto pra cozinha, pronta pra devorar qualquer coisa que não fosse humilhação. — E aí? Como foi? Caio estava deitado no sofá, agora com camiseta, lendo algo no notebook. — Prefere a versão curta ou a versão com palavrões? — Gosto das duas. Pode começar com a censurada. — Foi um desastre. A vaga era com o Renato. Ele ergueu o olhar, confuso. — Renato... o Renato? — O Renato ex. O Renato “te troco por uma estagiária e ainda sorrio”. — Caramba. — Pois é. Ele me ofereceu uma vaga de frila com salário de estágio. E ainda teve a audácia de dizer que eu preciso me “atualizar”. Caio fechou o notebook. — Idiota. Ele nunca soube o que tinha nas mãos. O silêncio entre nós foi tão repentino que parecia mais alto que qualquer música que ele tivesse tocado de manhã. — Obrigada — murmurei. Ele deu de ombros. — Só falei a verdade. Mas se quiser, posso mandar um motoboy deixar um saco de cocô em chamas na porta da agência. Discreto. Eficiente. Ri pela primeira vez naquele dia. Riso de verdade. — Você tem ideias assustadoramente boas às vezes. — Eu sei. Por isso sou irresistível. — Você é um alívio cômico com cara de modelo. Só isso. — Isso foi um elogio? — Não se acostuma. Mas, por dentro, eu estava rindo. Rindo mesmo tendo sido rejeitada, mesmo querendo sumir. Porque, por mais insuportável que fosse, Caio tinha conseguido me fazer esquecer o desastre — mesmo que por alguns minutos. E, no fim do dia, talvez isso fosse mais valioso que qualquer emprego.