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Capítulo 3 – A Entrevista e o Desastre

Se vestir para uma entrevista de emprego deveria ser uma tarefa simples. Mas não quando você acorda atrasada, toma banho com água fria porque o “inquilino dos infernos” usou toda a água quente, e ainda por cima descobre que seu único blazer decente está manchado com alguma coisa que parece café... ou sangue. Prefiro não investigar.

Lutei com o ferro de passar por dez minutos até decidir que a blusa branca meio amarrotada dava um ar despojado. “Criativa e autêntica”, eu repetia mentalmente enquanto passava corretivo nas olheiras e torcia para parecer alguém funcional.

— Tá bonita. Tá indo pra onde? — Caio perguntou da cozinha, onde agora fazia panquecas. O cheiro me provocava mais do que eu gostaria de admitir.

— Entrevista — respondi, pegando minha bolsa. — E não precisa soar tão surpreso.

— Não tô surpreso. Tô impressionado. Eu achei que você ia viver de brigar comigo até o fim do contrato.

— Ainda é meu plano B.

Ele riu e me jogou uma banana.

— Pra energia. Você tá com cara de quem vai desmaiar no metrô.

Suspirei. Peguei a fruta, mesmo que odiando a gentileza.

— Obrigada. E... valeu por deixar a água quente toda pra você, tá?

— Lara, isso é guerra. Você começou com o controle da TV. Agora, cada um por si.

Dei um passo até a porta, já bufando.

— Você é impossível.

— E você ainda vai se apaixonar por mim.

Revirei os olhos, mas senti o rosto queimar. De novo.

Saí do loft antes que ele visse meu meio sorriso traidor.

Cheguei na agência com cinco minutos de atraso e um cabelo que nem o coque improvisado salvava. O prédio era moderno, com uma fachada de vidro e plantas decorativas demais. Estava claramente acima do que eu achava que conseguiria nesse momento da minha vida.

Na recepção, uma moça de rabo de cavalo e cara de quem tomava água com clorofila me lançou um sorriso mecânico.

— Você é a Lara Mendes?

— Sim. Entrevista para redatora.

— Pode subir. Sala 3. O diretor vai te receber.

Peguei o elevador respirando fundo, ensaiando respostas clichês e tentando parecer profissional.

Mas o universo não estava do meu lado hoje.

Assim que a porta da Sala 3 se abriu, dei de cara com ele.

— Renato?

Meu ex.

Sim. Aquele ex. O do término humilhante. O que me trocou por uma estagiária de 20 anos com voz de desenho animado.

Ele me olhou, pasmo. Depois riu.

— Lara? Você tá aqui pra entrevista?

O sangue sumiu do meu rosto. Ou talvez tivesse subido tão rápido que eu parecia uma pimenta malagueta em carne viva.

— Você trabalha aqui? — perguntei, torcendo para aquilo ser uma pegadinha do destino. Ou câmera escondida.

— Sou diretor criativo agora. A vaga é na minha equipe.

Sorri. Um sorriso falso tão grande que doeu.

— Que coincidência maravilhosa.

— Achei que você tinha ido pra agência de branding. Aquela em Pinheiros?

— Fui. Mas... reestruturação. E você sabe como é o mercado.

— Claro. Tá difícil mesmo.

Ele disse isso com um tom quase paternal, como se estivesse falando com uma criança que perdeu a lancheira.

Durante a entrevista, ele fez questão de destacar tudo o que eu não sabia. Perguntou sobre campanhas específicas que ele sabia que eu nunca tinha tocado. Comentou que a nova geração vinha com “energia mais fresca”. E, por fim, me ofereceu uma vaga como freelancer remota, sem benefícios e com salário que mal pagava o aluguel.

— Você é boa, Lara. Só precisa se atualizar — ele disse, estendendo a mão. — Fica de olho. Quem sabe no futuro...

Saí da sala sem apertar a mão dele.

No metrô, sentei no banco duro, entre uma senhora com cheiro de naftalina e um adolescente jogando Candy Crush no volume máximo. Quis chorar. Gritar. Comprar uma passagem só de ida pro Acre.

Mas me contive.

Fiz o que sempre faço quando o mundo parece estar me empurrando pra baixo: respirei fundo, coloquei um fone de ouvido e imaginei um futuro onde eu estaria rindo disso tudo, com um emprego incrível, rímel caro e alguém me servindo panquecas — alguém que não fosse o Caio.

Mas, claro, meu dia não tinha acabado.

Cheguei em casa, tirei os sapatos e fui direto pra cozinha, pronta pra devorar qualquer coisa que não fosse humilhação.

— E aí? Como foi?

Caio estava deitado no sofá, agora com camiseta, lendo algo no notebook.

— Prefere a versão curta ou a versão com palavrões?

— Gosto das duas. Pode começar com a censurada.

— Foi um desastre. A vaga era com o Renato.

Ele ergueu o olhar, confuso.

— Renato... o Renato?

— O Renato ex. O Renato “te troco por uma estagiária e ainda sorrio”.

— Caramba.

— Pois é. Ele me ofereceu uma vaga de frila com salário de estágio. E ainda teve a audácia de dizer que eu preciso me “atualizar”.

Caio fechou o notebook.

— Idiota. Ele nunca soube o que tinha nas mãos.

O silêncio entre nós foi tão repentino que parecia mais alto que qualquer música que ele tivesse tocado de manhã.

— Obrigada — murmurei.

Ele deu de ombros.

— Só falei a verdade. Mas se quiser, posso mandar um motoboy deixar um saco de cocô em chamas na porta da agência. Discreto. Eficiente.

Ri pela primeira vez naquele dia. Riso de verdade.

— Você tem ideias assustadoramente boas às vezes.

— Eu sei. Por isso sou irresistível.

— Você é um alívio cômico com cara de modelo. Só isso.

— Isso foi um elogio?

— Não se acostuma.

Mas, por dentro, eu estava rindo. Rindo mesmo tendo sido rejeitada, mesmo querendo sumir.

Porque, por mais insuportável que fosse, Caio tinha conseguido me fazer esquecer o desastre — mesmo que por alguns minutos.

E, no fim do dia, talvez isso fosse mais valioso que qualquer emprego.

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