Se alguém me dissesse que em menos de doze horas eu estaria desempregada, solteira e implorando por um sofá emprestado, eu teria rido. Rido alto. Daqueles risos que doem a barriga e espantam qualquer previsão catastrófica.
Mas não era piada. E a barriga doía mesmo assim — só que de ansiedade. — Lara, a gente precisa conversar — disse meu chefe, às nove da manhã, com aquela voz de quem já enterrou o próprio cachorro. O resto você pode imaginar: “reestruturação”, “infelizmente”, “não é pessoal”. Saí da sala com um envelope de rescisão e um bolinho de parabéns que sobrou da copa. Um bolinho! De abacaxi com coco, pra piorar. Voltei pra casa com a alma em frangalhos e encontrei meu namorado — ex-namorado — com a cueca do lado avesso e o perfume de outra grudado no pescoço. O mais cômico? Ele ainda tentou dizer que “não era o que parecia”. Ah, claro. Porque claramente ele tropeçou e caiu com a calça aberta no colo da vizinha do andar de cima. Tchau, emprego. Tchau, relacionamento. Tchau, dignidade. Nos dias seguintes, fiz o que qualquer mulher emocionalmente estável faria: comi brigadeiro de panela, xinguei o universo e mergulhei no fundo do poço imobiliário da cidade de São Paulo. Spoiler: o fundo do poço era um estúdio de sete metros quadrados por três mil reais. — Me diz que isso aqui é pegadinha — murmurei, olhando o site de aluguel com descrença. Nada. Absolutamente nada cabia no meu bolso. E o tempo jogava contra mim: eu tinha uma semana até a renovação do contrato vencer. Ou encontrava um lugar novo, ou voltava pra casa da minha mãe em Campinas, onde seria obrigada a ouvir “Eu te avisei” em looping eterno. Foi quando eu vi o anúncio. “Loft em Pinheiros, valor abaixo do mercado. Divisão de aluguel com um morador. Ambiente moderno e bem localizado.” Parecia bom demais. Provavelmente era. Mas cliquei mesmo assim. Marquei a visita por mensagem. O locador respondeu com poucas palavras, direto ao ponto. Nome não identificado. Nenhuma foto. Devia ser um senhorzinho simpático, pensei. Talvez um designer introspectivo. Um professor aposentado. Um... sei lá, alguém que não ronque alto e não tente conversar comigo às seis da manhã. No dia da visita, vesti minha melhor blusa da sorte — que claramente não funcionava mais — e fui até o endereço. A fachada do prédio era bonita, limpa, com uma portaria discreta. Subi de elevador, tentando controlar o nervosismo. Quando a porta do loft se abriu, fui recebida por um par de olhos castanhos intensos e um sorriso de canto de boca que eu reconheceria até no escuro. — Você? — eu disparei, sem conseguir esconder o desgosto na voz. — Ah, não. — ele respondeu, cruzando os braços. — Me diz que você não é a “Lara M.” do W******p. — Sou. E você é o “C. Moreno”? Ele deu de ombros, com aquele ar relaxado que me dava vontade de socar uma parede. — Caio Moreno. Em pessoa. Sim, o destino tem um senso de humor bem desgraçado. Caio Moreno. Ex-colega de faculdade. Arrogante. Irritante. Com um ego do tamanho da Avenida Paulista e um rosto digno de campanha de perfume francês. O tipo de cara que sabia que era bonito — e fazia questão de jogar isso na sua cara a cada cinco minutos. A gente não se suportava desde o primeiro período. Foram anos de farpas, discussões em sala de aula, indiretas em trabalhos em grupo, e um episódio vergonhoso em que ele colou um post-it na minha mochila escrito “Rainha do Drama”. — Que coincidência maravilhosa — ele disse, com um sorriso falso. — Vai querer conhecer o loft ou já desistiu? — Isso aqui é pegadinha? — retruquei, olhando em volta. Claro que o lugar era lindo. Pé-direito alto, janelas enormes, decoração clean, cozinha americana. Um sofá enorme no centro da sala. E uma escada de metal que levava ao mezanino com duas portas — provavelmente os quartos. Mas ainda era Caio. O Caio. — O contrato é dividido — ele disse, pegando uma garrafa de água na geladeira, como se a minha presença não o afetasse nem um pouco. — Cada um no seu canto, sem drama. Eu trabalho o dia inteiro. Não vou te incomodar. — E as suas... amigas? — provoquei, arqueando uma sobrancelha. Ele riu. — Sente ciúmes, Lara? Depois de todos esses anos? — Nem um pouco. Só quero saber se vou precisar dormir com tampões de ouvido. Ele me olhou com aquele olhar de desafio que me fazia lembrar por que eu queria estrangular esse homem em 2018. Mas eu não tinha opção. Repito: nenhuma. Peguei a caneta da bolsa e assinei o contrato em cima do balcão, com o coração pesado e um gosto amargo na boca. — Que comece o inferno — murmurei. Caio sorriu. — Bem-vinda ao lar, colega. Eu já sabia: ia dar merda.. O sorriso debochado dele ficou na minha mente enquanto eu subia as escadas com a mochila jogada nas costas e um travesseiro embaixo do braço. Nada como começar uma nova fase da vida com um ex-rival de faculdade como companheiro de casa. A cereja no meu bolo de desgraça. O quarto do mezanino era simples, mas espaçoso. Uma cama de casal, um armário embutido e uma escrivaninha. A janela dava para a rua, onde os sons de São Paulo faziam questão de lembrar que eu não estava em um retiro espiritual. Mas comparado com os cubículos mofados que eu visitei naquela semana, aquilo era o paraíso — se não fosse pelo demônio que morava no cômodo ao lado. Abri minha mala em cima da cama e comecei a guardar as roupas. Parte de mim ainda tentava entender como cheguei àquele ponto. Seis anos de faculdade, dois anos ralando numa empresa que me explorava e, no fim, tudo que eu tinha era um contrato de aluguel com um homem que me chamava de “Rainha do Drama” em frente ao professor de economia. Caio. Não era só a aparência dele que irritava — embora fosse impossível ignorar. Ele tinha aquele tipo de beleza que parecia ter saído de um comercial: cabelo castanho escuro levemente bagunçado, pele bronzeada, maxilar bem definido, e olhos que alternavam entre sarcasmo e mistério. Tinha um metro e oitenta e alguma coisa de pura implicância e autoconfiança. O tipo de cara que passava na rua e arrancava olhares — e sabia disso. Na faculdade, ele era conhecido por três coisas: suas respostas ácidas, suas notas altas e sua fama com as mulheres. Eu era o oposto: perfeccionista, competitiva, e com um talento especial pra odiar pessoas que achavam graça de tudo. Nosso embate mais memorável foi na apresentação final do último semestre. Ele me contradisse na frente da banca com um argumento tão bom quanto arrogante. E ainda soltou um: — Com todo respeito, Lara, seu ponto tem buracos maiores que as crateras de Marte. O professor riu. Eu quis matar. Desci pra cozinha mais tarde, já de pijama, com o cabelo preso de qualquer jeito e o rosto limpo. Caio estava encostado na bancada, tomando uma cerveja gelada, de camiseta preta colada ao corpo e uma expressão tranquila demais pro caos que era a minha existência. — Vai beber? — ele perguntou, estendendo outra garrafa na minha direção. — Não bebo com o inimigo — respondi, abrindo o armário em busca de miojo. — Então vamos fingir que somos só... colegas de teto. — Isso só piora. Ele deu uma risada baixa, daquelas que você não quer achar sexy, mas acha. — Relaxa, Lara. Não vou morder — disse, abrindo a geladeira com um movimento descomplicado. — Que pena. Ia ser menos irritante do que ouvir sua voz — rebati automaticamente. Silêncio. Então ele se virou e me encarou, de braços cruzados, com aquele meio sorriso de quem adorava um desafio. — Sabe que eu quase senti sua falta depois da faculdade? — Jura? — É. Ninguém me xingava com tanta criatividade quanto você. — Não foi falta de aviso. Eu disse que ia sumir da sua vida. — E cá estamos, dividindo um teto. O universo tem um senso de humor irônico. Fiquei em silêncio por um instante, encarando o fogão como se a água do miojo fosse responder por mim. Mas por dentro, minha cabeça já fervia — e não era só por raiva. Caio era insuportável, claro. Mas também era... outra coisa. Uma presença magnética que eu odiava admitir. E agora ele estava a poucos metros de mim, de camiseta justa, com a cozinha semi-iluminada pelas luzes amareladas do loft. — Só pra constar — eu disse, servindo o miojo num prato fundo — não estou aqui pra amizade, nem pra troca de confidências. Quero paz, silêncio, e o meu canto. — Perfeito. Eu só quero que você não deixe roupa molhada em cima do sofá e que não tente me matar com sarcasmo antes das oito da manhã. — Combinado. Nos encaramos por um instante. Uma trégua silenciosa. Mas enquanto subia de volta pro quarto, com o prato na mão e os chinelos arrastando, soube de uma coisa: Essa história de “só colegas de teto” não ia durar muito tempo. Principalmente porque, mesmo que eu negasse até o fim... uma parte muito teimosa de mim ainda lembrava como era brigar com Caio Moreno. E pior: como era olhar pra ele quando ninguém estava olhando. E agora, a gente ia se ver. Todos os dias. Sob o mesmo teto.