Por alguns segundos, tudo ficou em silêncio. Um silêncio tão absoluto que até o som do meu coração pareceu desacelerar. A pergunta dele ainda pairava no ar, como fumaça de pólvora depois de um tiro: “Vem comigo, ou fica e espera eles virem de novo?”
Eu sou racional. Sempre fui. Treinada para pensar sob pressão, tomar decisões rápidas em meio ao caos. Mas aquilo… aquilo era diferente. Não era uma escolha clínica entre vida e morte. Era uma ruptura. Um abismo.
E eu pulei.
— Eu vou. — disse, sentindo a própria voz trêmula. — Só preciso de alguns minutos.
Luca assentiu, exausto, e voltou a recostar-se no sofá, enquanto Marco me lançou um olhar breve — de aprovação, talvez, ou de pena. Não sei dizer.
Corri para o meu quarto e puxei a mala que ficava guardada embaixo da cama. Ainda tinha poeira dos tempos em que eu imaginava que viajaria o mundo. Engraçado como a vida vira tudo do avesso num estalar de dedos. Agora, era fuga.
Joguei a mala aberta em cima do colchão e comecei a pegar roupas às pressas. Camisetas, calças, algumas peças íntimas. Um par de tênis. Lembrei do jaleco sujo de sangue e senti um aperto no estômago. Peguei outro, limpo, por instinto. Velhos hábitos.
No banheiro, escovei os dentes como se minha vida dependesse disso. Era um gesto automático, uma tentativa falha de manter alguma normalidade. Joguei uma escova de cabelo, remédios e alguns itens de higiene na nécessaire, que quase não fechava mais.
Minha mão tremeu quando peguei uma foto emoldurada da estante — eu e meu pai, no dia da minha formatura do ensino médio. O último aniversário que passamos juntos antes do aneurisma. Seu sorriso era sereno, mas seus olhos… escondiam tanto mais do que eu imaginava.
“Você é filha de Alejandro Vasquez. Médico do sangue.”
As palavras de Luca ecoavam dentro de mim.
Que diabos aquilo queria dizer?
Fechei a mala com força. Pronta ou não, eu estava indo.
Voltei para a sala carregando meu futuro em rodinhas barulhentas. Os homens de Luca já haviam tirado todos os rastros. O corpo sumiu. O sangue também. A porta, por milagre, parecia intacta — mas a sensação de segurança havia evaporado como fumaça de cigarro.
Luca foi colocado numa cadeira de rodas e empurrado até o carro por Marco. Eles agiam com precisão militar, e mesmo machucado, ele ainda passava a impressão de comando absoluto. Mesmo ferido, ele era o tipo de homem que fazia o mundo girar ao seu redor.
Quando me aproximei do carro, um SUV preto blindado, Marco abriu a porta traseira para mim. Hesitei por um segundo, respirando fundo.
— Alguma chance de eu voltar aqui viva? — perguntei, sem olhar para ele.
— Com o Chefe ao seu lado? — Marco respondeu, enigmático. — Tem mais chance do que se ficar sozinha
Entrei.
O interior do carro era luxuoso e cheirava a couro novo e pólvora. Luca estava ao meu lado, pálido, mas atento. Sua mão estava enfaixada, e uma linha de soro improvisada saía do braço, presa a um suporte amarrado ao banco.
— Você… parece melhor. — murmurei.
Ele riu fraco, um som rouco e surpreendentemente… humano.
— Você devia me ver nos meus piores dias.
— Acho que já vi.
Ele virou o rosto em minha direção, e nossos olhos se cruzaram por alguns instantes longos demais. Por um momento, esqueci onde estávamos. A cidade passava rápido do outro lado do vidro, as luzes da madrugada refletindo no metal preto como estrelas decadentes.
— Por que você confiou em mim? — perguntei, tentando escapar do peso do silêncio.
— Porque você podia ter me deixado morrer… e não deixou. — respondeu. — Isso diz mais sobre você do que qualquer diploma.
— E você podia ter me deixado fora disso. — rebati. — Mas me puxou direto por meio da guerra.
— Porque essa guerra já era sua. Só não sabia ainda.
Virei o rosto para a janela, tentando controlar a náusea. O mundo que eu conhecia tinha acabado. As provas, as aulas, os plantões… tudo parecia distante agora. Como se pertencesse a outra vida. A outra “eu”.
O carro saiu da zona central da cidade e começou a subir uma colina arborizada. Vi portões altos se abrirem à distância e câmeras girando para nos acompanhar. Quando cruzamos a entrada, percebi que não estávamos indo para um “esconderijo”. Era uma fortaleza.
Uma mansão de três andares, com janelas blindadas e cercas elétricas. Guardas armados caminhavam pelo terreno como sombras. Aquilo não era uma casa. Era uma base de guerra.
Fomos recebidos por mais homens. Um deles, um jovem de cabelos platinados e sorriso cínico, abriu a porta para mim.
— Então essa é a doutora que salvou o nosso rei. — disse com um sotaque carregado. — Bem-vinda à casa Moretti. Eu sou Matteo.
— Rei? — repeti, franzindo o cenho
— É só um apelido. — Luca murmurou atrás de mim.
— Que ele nunca corrige. — Matteo piscou.
Fui levada para um quarto no segundo andar. A cama era grande, com lençóis escuros e macios. Havia uma escrivaninha com computador, armário, banheiro privativo e… nenhuma janela visível. Tudo reforçado. Segredo absoluto.
Quando fiquei sozinha, sentei na cama e respirei fundo.
Eu tinha entrado num mundo onde cada passo poderia ser fatal. Um mundo em que homens armados me chamavam de “a doutora”. Em que Luca Moretti, o nome por trás de manchetes e crimes, estava sob o mesmo teto que eu — e confiava em mim.
A ficha ainda não tinha caído por completo.
Mas a queda… já tinha começado.
O quarto parecia mais uma cela de luxo do que um refúgio. Tudo ali era bonito, limpo, sofisticado... e absolutamente impessoal. As paredes tinham tons escuros e neutros, e a mobília era moderna demais para ter qualquer afeto. Como se ninguém tivesse vivido ali, mas tudo estivesse pronto para receber alguém em fuga.Eu.Sentei na beira da cama e soltei o ar que nem sabia que estava prendendo. Ainda estava com a roupa do plantão. O sangue nas mangas já tinha secado.De Luca, do invasor, talvez até meu. Nem sei mais. Cada batida do coração parecia um soco no peito, mas meu corpo ainda se mantinha em modo de alerta.De repente, alguém bateu à porta.— Doutora? — uma voz masculina, grave e educada.Me levantei com cuidado e destranquei a porta.O homem do outro lado era alto, de pele morena e olhos âmbar. Tinha o porte de um soldado, mas o rosto de alguém que já sofreu demais. Carregava uma bandeja com o que parecia ser comida.— Matteo pediu que eu trouxesse algo para você comer. E Luca q
POV LucaA chuva batia contra as enormes janelas da sala como uma mão inquieta, tentando entrar. Um prenúncio. Senti a umidade impregnada no ar, como se o próprio tempo pressentisse o que estava por vir.Abaixei a cabeça, apoiando os cotovelos na mesa pesada de carvalho escuro. Cada movimento fazia minhas costelas reclamarem, mas eu não me permitia demonstrar fraqueza. Não na frente dos meus homens. Não agora.Marco entrou sem bater. Como sempre fazia. Lealdade não precisava de convites formais.— Precisa descansar, chefe. — disse ele, de pé diante de mim, as mãos cruzadas atrás das costas.Ergui os olhos para ele. Marco parecia uma parede humana. Imóvel. Inquebrável. Alguém que eu teria ao meu lado até o fim — e que, se eu caísse, cairia junto.— Depois. — murmurei. — Primeiro, temos que falar sobre ela.— A garota?Assenti, olhando para o andar superior, onde sabia que Sara estava se preparando para dormir. Se é que conseguiria.— O que descobriu? — perguntei, puxando um cigarro da
A chuva caía como se quisesse lavar o mundo inteiro. As gotas batiam contra meu casaco encharcado, e cada passo pela calçada vazia ecoava como um sussurro incômodo no meu ouvido. Eram 23h37 quando girei a chave na porta de casa. Exausta, com o corpo pedindo socorro depois de mais de dezoito horas no hospital, tudo que eu queria era uma ducha quente e silêncio.Mas o que encontrei foi o oposto.Fechei a porta atrás de mim e deixei as chaves caírem na mesinha do corredor. Minha mochila escorregou do ombro. Ia direto para o chuveiro, mas então vi, um rastro escuro no chão. Gotas vermelhas. Não, não gotas. Marcas de Sague.Meu coração deu um salto seco. Travei. A luz fraca da luminária da sala desenhava sombras no chão de madeira, e o silêncio da casa parecia mais pesado do que nunca. Eu deveria ter corrido. Deveria ter ligado para polícia. Mas minha mente treinada em emergência agiu antes de qualquer medo.Meus olhos seguiram o rastro. As marcas iam do parapeito da janela até o centro d
O frio me envolveu de novo. Mas dessa vez, não era da chuva. Era medo puro. Um tipo de medo que nunca senti, mesmo nos piores plantões da faculdade.— Você está dizendo que minha vida corre perigo— Estou dizendo que ela já mudou. — Ele me encarou de novo. — E se quiser viver… vai ter que confiar em mim.Dei um passo para trás.— Confiar em você? Um mafioso? Você invadiu minha casa sangrando, caiu no meu chão, me contou uma história absurda e agora quer que eu confie?Ele suspirou fundo, com um cansaço que parecia pesar mais do que as balas.— Eu poderia ter lhe deixado no escuro. Poderia ter morrido na rua ou invadido qualquer outro lugar. Mas vim aqui. Porque o sangue do seu pai corre em você. Porque ele salvou o meu pai inúmeras vezes. E agora… eu estou pagando essa dívida.A confusão se misturava com a adrenalina. Eu não sabia o que era verdade, mas sabia que aqueles olhos — frios e intensos — não mentiam.— O que você quer de mim? — perguntei, a voz baixa.Ele me olhou por um lon
O corpo estava ali, caído no meio da minha cozinha, com os olhos ainda abertos. O sangue se alastrava como uma sombra, manchando o chão de azulejos brancos. Eu tentava manter a mente funcionando, controlar a respiração, lembrar de algum protocolo de emergência…, mas nada na faculdade de medicina me preparou para isso.Nada no mundo poderia preparar alguém para isso.Luca ainda estava inconsciente, o corpo desfalecido no chão da sala, a respiração superficial e lenta. Seu rosto, apesar da palidez, ainda carregava a expressão endurecida de quem cresceu entre a violência. Mesmo inconsciente, ele parecia pronto para matar.— Droga… — murmurei, ajoelhando-me ao lado dele.Toquei seu pescoço, verificando os batimentos. Fracos. Mas constantes. A hemorragia havia recomeçado com o esforço e a troca de tiros. Pressionei novamente o curativo com força, tentando manter o sangue dentro do corpo dele enquanto minha mente girava em desespero.Então ele se mexeu.Os olhos se abriram devagar, pesados.