O corpo estava ali, caído no meio da minha cozinha, com os olhos ainda abertos. O sangue se alastrava como uma sombra, manchando o chão de azulejos brancos. Eu tentava manter a mente funcionando, controlar a respiração, lembrar de algum protocolo de emergência…, mas nada na faculdade de medicina me preparou para isso.
Nada no mundo poderia preparar alguém para isso.
Luca ainda estava inconsciente, o corpo desfalecido no chão da sala, a respiração superficial e lenta. Seu rosto, apesar da palidez, ainda carregava a expressão endurecida de quem cresceu entre a violência. Mesmo inconsciente, ele parecia pronto para matar.
— Droga… — murmurei, ajoelhando-me ao lado dele.
Toquei seu pescoço, verificando os batimentos. Fracos. Mas constantes. A hemorragia havia recomeçado com o esforço e a troca de tiros. Pressionei novamente o curativo com força, tentando manter o sangue dentro do corpo dele enquanto minha mente girava em desespero.
Então ele se mexeu.
Os olhos se abriram devagar, pesados.
— Sara… — a voz dele era um sussurro rouco. — Me dá… meu celular.
— Você precisa de um hospital.
— Se eu for para um hospital, a polícia me prende… ou pior. Eles me acham. — Ele tossiu, os lábios manchados de sangue. — Preciso… dos meus homens. Traz… o casaco.
Corri até o casaco escuro largado próximo à porta e revirei os bolsos até encontrar o celular. Entreguei a ele, que digitou um número com os dedos trêmulos. Levou o aparelho ao ouvido e esperou.
— É o Luca. Mandem o esquadrão. Código Rubro. Endereço anexo. — Fez uma pausa, respirando com dificuldade. — E tragam o kit Alfa. Agora.
Finalizou a ligação e deixou o celular cair no sofá.
— Você chamou… a máfia? — perguntei, ainda em choque.
Ele fechou os olhos e assentiu.
— Você não vai conseguir esconder um corpo sozinha. E a polícia não pode se envolver nisso. Não se você quiser continuar viva.
Cruzei os braços sobre o peito, recuando.
— Você fala disso como se fosse rotina.
— Porque é. — disse, com a voz mais firme. — Você não entende ainda, Sara. Mas o que aconteceu aqui… é só o primeiro passo. Eles não vão parar. Nem recuar. Esse homem… era apenas o mensageiro.
Olhei para o corpo mais uma vez. O sangue já formava uma poça espessa. Um arrepio gelado subiu pela minha espinha. Eu estava presa num pesadelo, e a única pessoa que conhecia a saída… era um criminoso.
Dez minutos depois, um carro preto parou em frente ao prédio. Eu ouvi passos pesados na escada, e então, três homens armados entraram pela porta quebrada.
Não disseram nada no início. Apenas analisaram a cena com olhos frios e calculistas.
Um deles, alto, com barba cerrada e olhos atentos, se aproximou de Luca.
— Chefe… — disse com reverência. — Merda, o senhor está um caco.
— Já vi piores, Marco. Tirem o corpo. Limpem tudo. Ninguém pode saber que estivemos aqui.
Marco assentiu, virou-se para os outros dois e deu ordens rápidas em italiano. Um deles tirou uma maleta metálica e começou a organizar suprimentos médicos. O outro pegou o corpo de Lorenzo com uma facilidade assustadora, como se fosse apenas um saco de lixo.
Fiquei paralisada enquanto o homem morto era retirado da minha casa.
Marco virou-se para mim com um leve aceno de cabeça.
— A senhorita é a doutora Vasquez?
— Sim… — respondi, hesitante.
— Sou Marco Bernardi. Subchefe de segurança de Luca Moretti. Obrigado por manter ele vivo.
— Eu não fiz por ele. — retruquei, sentindo o sangue ainda quente sob minhas unhas. — Eu fiz porque não consigo ver ninguém morrer na minha frente. Ainda não, pelo menos.
Ele sorriu, como se respeitasse minha honestidade.
— Vai precisar endurecer se quiser ficar viva ao lado dele.
O comentário me atingiu como uma sentença.
Luca recebeu cuidados no sofá. O tal kit Alfa era mais completo que qualquer enfermaria de hospital público. Morfina, antibióticos, sondas, gazes esterilizadas. Um arsenal médico de guerra.
Enquanto os homens limpavam a bagunça, removiam os estilhaços da porta e apagavam todos os rastros da invasão, eu me encostei na parede, observando tudo com olhos vidrados.
Aquilo era real.
Eu estava envolvida. Até o pescoço.
Quando os passos cessaram e a sala voltou a parecer… viva, Marco se aproximou de Luca com um envelope.
— Esse é o novo endereço. Vamos movê-lo em breve.
— Ainda não. — Luca murmurou. — Ela precisa decidir.
— Decidir o quê? — perguntei.
Luca virou o rosto para mim, os olhos mais claros, menos opacos.
— Se vai correr… ou ficar.
— Ficar onde? Com você?
— Comigo… e com a verdade.
Soltei uma risada amarga.
— A verdade? Você quer falar de verdade agora? Depois de invadir minha casa sangrando, depois de trazer um assassino, de enterrar um corpo na madrugada? A verdade? Luca, eu nem sei quem você é.
— Eu sou Luca Moretti. Chefe do clã Moretti. O nome que governa metade do tráfico europeu e todo o submundo do norte da Itália. E agora, estou na sua casa, vivo por sua causa… e disposto a arriscar essa vida para proteger você.
Engoli em seco.
A intensidade dele me envolvia como uma tempestade. O magnetismo, a autoridade, a fúria contida. Era impossível negar que algo nele me puxava… mesmo que fosse para o abismo.
— Você salvou minha vida hoje. — ele continuou. — E agora eu vou salvar a sua, quer queira ou não. Mas se quiser lutar ao meu lado… vai precisar parar de fugir.
— Eu não sei lutar. Eu sou só… uma estudante.
— Errado. Você é filha de Alejandro Vasquez. Médico do sangue. E vai descobrir o que isso significa em breve.
Marco se aproximou.
— O carro está pronto, Chefe. Se ficarmos muito tempo, pode chamar atenção.
Luca assentiu, respirando fundo, e então virou os olhos para mim uma última vez naquela noite.
— Vem comigo, Sara. Ou fica e espera eles virem de novo.
Havia uma maleta pronta. Uma escolha. Um mundo novo à minha espera.
Olhei para minha sala destruída. Para o sangue no chão. Para as mentiras da minha infância desabando como castelos de cartas. E então… para ele.
Luca Moretti.
O homem que me envolveu em sua guerra.
E, de algum modo, me fez querer lutar ao seu lado.
Por alguns segundos, tudo ficou em silêncio. Um silêncio tão absoluto que até o som do meu coração pareceu desacelerar. A pergunta dele ainda pairava no ar, como fumaça de pólvora depois de um tiro: “Vem comigo, ou fica e espera eles virem de novo?”Eu sou racional. Sempre fui. Treinada para pensar sob pressão, tomar decisões rápidas em meio ao caos. Mas aquilo… aquilo era diferente. Não era uma escolha clínica entre vida e morte. Era uma ruptura. Um abismo.E eu pulei.— Eu vou. — disse, sentindo a própria voz trêmula. — Só preciso de alguns minutos.Luca assentiu, exausto, e voltou a recostar-se no sofá, enquanto Marco me lançou um olhar breve — de aprovação, talvez, ou de pena. Não sei dizer.Corri para o meu quarto e puxei a mala que ficava guardada embaixo da cama. Ainda tinha poeira dos tempos em que eu imaginava que viajaria o mundo. Engraçado como a vida vira tudo do avesso num estalar de dedos. Agora, era fuga.Joguei a mala aberta em cima do colchão e comecei a pegar roupas
O quarto parecia mais uma cela de luxo do que um refúgio. Tudo ali era bonito, limpo, sofisticado... e absolutamente impessoal. As paredes tinham tons escuros e neutros, e a mobília era moderna demais para ter qualquer afeto. Como se ninguém tivesse vivido ali, mas tudo estivesse pronto para receber alguém em fuga.Eu.Sentei na beira da cama e soltei o ar que nem sabia que estava prendendo. Ainda estava com a roupa do plantão. O sangue nas mangas já tinha secado.De Luca, do invasor, talvez até meu. Nem sei mais. Cada batida do coração parecia um soco no peito, mas meu corpo ainda se mantinha em modo de alerta.De repente, alguém bateu à porta.— Doutora? — uma voz masculina, grave e educada.Me levantei com cuidado e destranquei a porta.O homem do outro lado era alto, de pele morena e olhos âmbar. Tinha o porte de um soldado, mas o rosto de alguém que já sofreu demais. Carregava uma bandeja com o que parecia ser comida.— Matteo pediu que eu trouxesse algo para você comer. E Luca q
POV LucaA chuva batia contra as enormes janelas da sala como uma mão inquieta, tentando entrar. Um prenúncio. Senti a umidade impregnada no ar, como se o próprio tempo pressentisse o que estava por vir.Abaixei a cabeça, apoiando os cotovelos na mesa pesada de carvalho escuro. Cada movimento fazia minhas costelas reclamarem, mas eu não me permitia demonstrar fraqueza. Não na frente dos meus homens. Não agora.Marco entrou sem bater. Como sempre fazia. Lealdade não precisava de convites formais.— Precisa descansar, chefe. — disse ele, de pé diante de mim, as mãos cruzadas atrás das costas.Ergui os olhos para ele. Marco parecia uma parede humana. Imóvel. Inquebrável. Alguém que eu teria ao meu lado até o fim — e que, se eu caísse, cairia junto.— Depois. — murmurei. — Primeiro, temos que falar sobre ela.— A garota?Assenti, olhando para o andar superior, onde sabia que Sara estava se preparando para dormir. Se é que conseguiria.— O que descobriu? — perguntei, puxando um cigarro da
A chuva caía como se quisesse lavar o mundo inteiro. As gotas batiam contra meu casaco encharcado, e cada passo pela calçada vazia ecoava como um sussurro incômodo no meu ouvido. Eram 23h37 quando girei a chave na porta de casa. Exausta, com o corpo pedindo socorro depois de mais de dezoito horas no hospital, tudo que eu queria era uma ducha quente e silêncio.Mas o que encontrei foi o oposto.Fechei a porta atrás de mim e deixei as chaves caírem na mesinha do corredor. Minha mochila escorregou do ombro. Ia direto para o chuveiro, mas então vi, um rastro escuro no chão. Gotas vermelhas. Não, não gotas. Marcas de Sague.Meu coração deu um salto seco. Travei. A luz fraca da luminária da sala desenhava sombras no chão de madeira, e o silêncio da casa parecia mais pesado do que nunca. Eu deveria ter corrido. Deveria ter ligado para polícia. Mas minha mente treinada em emergência agiu antes de qualquer medo.Meus olhos seguiram o rastro. As marcas iam do parapeito da janela até o centro d
O frio me envolveu de novo. Mas dessa vez, não era da chuva. Era medo puro. Um tipo de medo que nunca senti, mesmo nos piores plantões da faculdade.— Você está dizendo que minha vida corre perigo— Estou dizendo que ela já mudou. — Ele me encarou de novo. — E se quiser viver… vai ter que confiar em mim.Dei um passo para trás.— Confiar em você? Um mafioso? Você invadiu minha casa sangrando, caiu no meu chão, me contou uma história absurda e agora quer que eu confie?Ele suspirou fundo, com um cansaço que parecia pesar mais do que as balas.— Eu poderia ter lhe deixado no escuro. Poderia ter morrido na rua ou invadido qualquer outro lugar. Mas vim aqui. Porque o sangue do seu pai corre em você. Porque ele salvou o meu pai inúmeras vezes. E agora… eu estou pagando essa dívida.A confusão se misturava com a adrenalina. Eu não sabia o que era verdade, mas sabia que aqueles olhos — frios e intensos — não mentiam.— O que você quer de mim? — perguntei, a voz baixa.Ele me olhou por um lon