O quarto parecia mais uma cela de luxo do que um refúgio. Tudo ali era bonito, limpo, sofisticado... e absolutamente impessoal. As paredes tinham tons escuros e neutros, e a mobília era moderna demais para ter qualquer afeto. Como se ninguém tivesse vivido ali, mas tudo estivesse pronto para receber alguém em fuga.
Eu.
Sentei na beira da cama e soltei o ar que nem sabia que estava prendendo. Ainda estava com a roupa do plantão. O sangue nas mangas já tinha secado.
De Luca, do invasor, talvez até meu. Nem sei mais. Cada batida do coração parecia um soco no peito, mas meu corpo ainda se mantinha em modo de alerta.
De repente, alguém bateu à porta.
— Doutora? — uma voz masculina, grave e educada.
Me levantei com cuidado e destranquei a porta.
O homem do outro lado era alto, de pele morena e olhos âmbar. Tinha o porte de um soldado, mas o rosto de alguém que já sofreu demais. Carregava uma bandeja com o que parecia ser comida.
— Matteo pediu que eu trouxesse algo para você comer. E Luca quer vê-la quando puder. Ele está no escritório.
— Obrigada...?
— Adrian. Segurança pessoal do Chefe. — respondeu, com um breve aceno de cabeça. — Mas, por enquanto, posso ser só o homem da comida.
Ele sorriu de leve e me entregou a bandeja. Quando nossos dedos se tocaram, um arrepio percorreu minha espinha.
“Que tipo de lugar é esse, onde até o segurança parece ter saído de um sonho perigoso?”
— Preciso de alguma coisa específica para ver Luca? Um código? Uma senha? — perguntei, sem graça.
— Só sua presença. Mas... esteja preparada. Ele costuma mostrar pouco e esperar muito.
Fechei a porta e deixei a comida em cima da escrivaninha. Eu não estava com fome, mas sabia que precisava me alimentar. A primeira colherada da sopa quente foi um soco de conforto. Senti meu estômago voltar à vida. Era boa. Caseira. Com gosto de lar... o que tornava tudo ainda mais perturbador.
Depois de comer, tomei um banho rápido, coloquei uma camiseta cinza e uma calça de moletom — as roupas mais neutras e confortáveis que encontrei na mala —, e segui o corredor.
A mansão era silenciosa como um convento. Mas não do tipo pacífico. Era o silêncio tenso de um lugar onde os segredos se movem pelas paredes.
No andar de baixo, um homem de cabelos loiros presos num coque baixo me observava da escada. Ele usava óculos redondos e tinha um livro na mão. Parecia deslocado ali, como um professor perdido num campo de guerra.
— Boa noite. Você deve ser Sara. — disse ele, com um sorriso gentil. — Eu sou Dorian. Analista de segurança. E leitor compulsivo de Kafka.
— Boa noite, Dorian. — respondi, tentando entender onde me encaixava naquele teatro. — Obrigada por... bom, por não me expulsarem.
— Ninguém expulsa quem o Chefe quer manter por perto. — disse, enigmático, voltando a olhar para o livro.
Segui o corredor até encontrar uma porta entreaberta com luz acesa. Era o escritório.
Luca estava lá dentro. Ainda pálido, mas muito mais vivo do que horas atrás. Usava uma camisa aberta no peito, mostrando as bandagens, e uma calça escura. Estava de pé, apoiado na mesa, olhando pela janela reforçada. Quando entrei, ele virou lentamente.
— Achei que tivesse fugido. — disse com aquele tom meio zombeteiro, meio tenso.
— Ainda não decidi se seria mais seguro. — retruquei, fechando a porta atrás de mim.
— Mas veio.
— Vim porque tenho perguntas. — Cruzei os braços. — E porque você ainda pode morrer se não cuidar direito desses ferimentos.
Ele sorriu de lado.
— Tem razão. Sente-se.
Me aproximei e sentei na cadeira de couro em frente à sua mesa. Por um momento, apenas nos observamos. A tensão entre nós era espessa, como se cada palavra a ser dita pudesse mudar algo irrevogável.
— Você disse que meu pai trabalhou com o seu. — comecei. — O que isso significa exatamente?
Luca passou a mão pelos cabelos, suspirando.
— Meu pai e o seu eram dois lados de uma moeda perigosa. Enquanto meu pai comandava... digamos, o império do submundo, o seu era o médico de confiança. Salvava vidas que o mundo dizia que não mereciam ser salvas. Mas ele não fazia julgamentos. Apenas… cuidava. Silenciosamente.
— Ele nunca me contou nada. — murmurei. — Nunca.
— Ele tentou te manter longe disso. Longe de mim. — Luca se aproximou, ajoelhando-se com dificuldade ao meu lado. — Mas agora que eles sabem quem você é… você não tem mais essa escolha.
— Quem são “eles”?
— Os homens que querem o que meu pai deixou. — respondeu. — E o que o seu sabia. Eles o mataram por isso. E agora te querem pelo mesmo motivo: herança de sangue. Conexões. Conhecimento.
— Mas eu não sei nada!
— Ainda não. Mas é questão de tempo até tentarem arrancar de você qualquer informação. Mesmo que não exista.
Me afastei, tentando processar tudo. Era absurdo. Meu pai — o homem que me ensinou a cuidar, a salvar, a não julgar — envolvido com mafiosos? E eu... uma peça nesse jogo cruel?
Antes que eu pudesse perguntar mais, batidas rápidas na porta nos interromperam.
— Chefe. — era a voz de Adrian. — Chegaram.
— Quem? — perguntei, instintivamente.
Luca se levantou, contido, como se cada músculo do corpo estivesse pronto para a guerra.
— Meus irmãos de sangue. — disse. — E o início de uma longa história que você precisa ouvir.
Fui levada até o salão principal da mansão, onde quatro homens aguardavam. Todos eles exalavam perigo e lealdade em doses iguais. Cada um com uma presença que poderia dominar qualquer cômodo.
O primeiro era Marco, que eu já conhecia — sério, firme, o típico braço direito. Ao lado dele, um homem de pele escura, olhos frios e tatuagens que subiam pelo pescoço. Seu nome era Enzo, e pelo que entendi, ele cuidava das operações externas.
O terceiro era alto, de cabelos castanhos ondulados e sorriso debochado. Parecia mais um modelo de passarela do que alguém ligado à máfia. Chamava-se Rafael. Inteligente demais para o próprio bem.
E o quarto… bem, ele não disse o nome. Só me encarou. Seu olhar era como uma lâmina: frio, afiado, impiedoso. E ainda assim... algo nele me atraiu de forma inexplicável. Como se me conhecesse antes mesmo de eu nascer.
Luca os apresentou com calma. Falou de suas funções, da confiança que tinha em cada um. E, por fim, me olhou.
— Esses são os homens que vão te proteger, Sara. — disse. — Porque você, goste ou não, agora é parte da minha guerra.
E naquele instante, entre olhares e silêncios, soube: minha vida nunca mais seria a mesma.
POV LucaA chuva batia contra as enormes janelas da sala como uma mão inquieta, tentando entrar. Um prenúncio. Senti a umidade impregnada no ar, como se o próprio tempo pressentisse o que estava por vir.Abaixei a cabeça, apoiando os cotovelos na mesa pesada de carvalho escuro. Cada movimento fazia minhas costelas reclamarem, mas eu não me permitia demonstrar fraqueza. Não na frente dos meus homens. Não agora.Marco entrou sem bater. Como sempre fazia. Lealdade não precisava de convites formais.— Precisa descansar, chefe. — disse ele, de pé diante de mim, as mãos cruzadas atrás das costas.Ergui os olhos para ele. Marco parecia uma parede humana. Imóvel. Inquebrável. Alguém que eu teria ao meu lado até o fim — e que, se eu caísse, cairia junto.— Depois. — murmurei. — Primeiro, temos que falar sobre ela.— A garota?Assenti, olhando para o andar superior, onde sabia que Sara estava se preparando para dormir. Se é que conseguiria.— O que descobriu? — perguntei, puxando um cigarro da
A chuva caía como se quisesse lavar o mundo inteiro. As gotas batiam contra meu casaco encharcado, e cada passo pela calçada vazia ecoava como um sussurro incômodo no meu ouvido. Eram 23h37 quando girei a chave na porta de casa. Exausta, com o corpo pedindo socorro depois de mais de dezoito horas no hospital, tudo que eu queria era uma ducha quente e silêncio.Mas o que encontrei foi o oposto.Fechei a porta atrás de mim e deixei as chaves caírem na mesinha do corredor. Minha mochila escorregou do ombro. Ia direto para o chuveiro, mas então vi, um rastro escuro no chão. Gotas vermelhas. Não, não gotas. Marcas de Sague.Meu coração deu um salto seco. Travei. A luz fraca da luminária da sala desenhava sombras no chão de madeira, e o silêncio da casa parecia mais pesado do que nunca. Eu deveria ter corrido. Deveria ter ligado para polícia. Mas minha mente treinada em emergência agiu antes de qualquer medo.Meus olhos seguiram o rastro. As marcas iam do parapeito da janela até o centro d
O frio me envolveu de novo. Mas dessa vez, não era da chuva. Era medo puro. Um tipo de medo que nunca senti, mesmo nos piores plantões da faculdade.— Você está dizendo que minha vida corre perigo— Estou dizendo que ela já mudou. — Ele me encarou de novo. — E se quiser viver… vai ter que confiar em mim.Dei um passo para trás.— Confiar em você? Um mafioso? Você invadiu minha casa sangrando, caiu no meu chão, me contou uma história absurda e agora quer que eu confie?Ele suspirou fundo, com um cansaço que parecia pesar mais do que as balas.— Eu poderia ter lhe deixado no escuro. Poderia ter morrido na rua ou invadido qualquer outro lugar. Mas vim aqui. Porque o sangue do seu pai corre em você. Porque ele salvou o meu pai inúmeras vezes. E agora… eu estou pagando essa dívida.A confusão se misturava com a adrenalina. Eu não sabia o que era verdade, mas sabia que aqueles olhos — frios e intensos — não mentiam.— O que você quer de mim? — perguntei, a voz baixa.Ele me olhou por um lon
O corpo estava ali, caído no meio da minha cozinha, com os olhos ainda abertos. O sangue se alastrava como uma sombra, manchando o chão de azulejos brancos. Eu tentava manter a mente funcionando, controlar a respiração, lembrar de algum protocolo de emergência…, mas nada na faculdade de medicina me preparou para isso.Nada no mundo poderia preparar alguém para isso.Luca ainda estava inconsciente, o corpo desfalecido no chão da sala, a respiração superficial e lenta. Seu rosto, apesar da palidez, ainda carregava a expressão endurecida de quem cresceu entre a violência. Mesmo inconsciente, ele parecia pronto para matar.— Droga… — murmurei, ajoelhando-me ao lado dele.Toquei seu pescoço, verificando os batimentos. Fracos. Mas constantes. A hemorragia havia recomeçado com o esforço e a troca de tiros. Pressionei novamente o curativo com força, tentando manter o sangue dentro do corpo dele enquanto minha mente girava em desespero.Então ele se mexeu.Os olhos se abriram devagar, pesados.
Por alguns segundos, tudo ficou em silêncio. Um silêncio tão absoluto que até o som do meu coração pareceu desacelerar. A pergunta dele ainda pairava no ar, como fumaça de pólvora depois de um tiro: “Vem comigo, ou fica e espera eles virem de novo?”Eu sou racional. Sempre fui. Treinada para pensar sob pressão, tomar decisões rápidas em meio ao caos. Mas aquilo… aquilo era diferente. Não era uma escolha clínica entre vida e morte. Era uma ruptura. Um abismo.E eu pulei.— Eu vou. — disse, sentindo a própria voz trêmula. — Só preciso de alguns minutos.Luca assentiu, exausto, e voltou a recostar-se no sofá, enquanto Marco me lançou um olhar breve — de aprovação, talvez, ou de pena. Não sei dizer.Corri para o meu quarto e puxei a mala que ficava guardada embaixo da cama. Ainda tinha poeira dos tempos em que eu imaginava que viajaria o mundo. Engraçado como a vida vira tudo do avesso num estalar de dedos. Agora, era fuga.Joguei a mala aberta em cima do colchão e comecei a pegar roupas