Capítulo 04

O som das correntes nos portões ressoou como um velho sino de guerra. Ainda era cedo — o sol mal tocava as torres da muralha —, mas eu já estava de pé. Sempre estou.

Dormir demais é fraqueza. E fraqueza... não existe mais espaço para isso aqui.

Vi os recém-chegados quando os portões se abriram. Uma família inteira, vinda de Emberlyn, disseram. Vi nos olhos do homem o cansaço de quem perdeu tudo, mas não a dignidade. Respeitei isso.

Desci os degraus em silêncio, meu manto ondulando atrás de mim, pesado como a própria responsabilidade de liderar esta matilha.

— Alfa Ares — ele se ajoelhou com voz firme. — Sou Tyren. Minha alcatéia foi destruída. Não temos mais nada. Pedimos abrigo. Damos lealdade.

Olhei para ele. Para a mulher ao seu lado. As crianças pequenas — um deles ainda sem mudar os olhos para âmbar. Filhotes.

— Aqui, crianças não empunham armas. Crescem primeiro. Lutam depois. — Minhas palavras cortam como navalha, mas também protegem. — Você servirá nas fronteiras. Um ano. Prove seu valor.

Ele assentiu, grato. Mas não sorriu. Inteligente.

— Levem-nos para a Casa dos Novos Laços — ordenei. — Dêem alimento. Marquem-nos como irmãos.

A multidão uivou. É o ritual. Recebemos os que sangraram. Mas não perdoamos os que mentem.

Kaelen surgiu ao meu lado, como sempre. Com aquele maldito caderno em mãos.

— Quarenta e dois novos membros este mês, Ares. Estamos crescendo.

— Crescer rápido demais atrai cobras para dentro da toca.

— Ainda assim... eles o temem. E o seguem. Como deve ser.

Kaelen sempre entendeu. Por isso é meu beta. Por isso não o matei quando me enfrentou pela primeira vez. Era o único com coragem pra isso, lembro do dia, semanas após meu pai ficar louco, eu reorganizei a matilha a minha forma, claro que não era a forma que estavam acostumados e ele tentou tirar o meu direito de Alfa, e perdeu.

O dia se arrastou entre treinamentos e avaliações. No campo, observei os jovens errando o básico.

— Postura, Lieran — corrigi, sem elevar a voz. — Exponha esse flanco na batalha e vai perder o braço... ou a vida.

O garoto empalideceu. Corrigiu-se. Se não aprender, eu mesmo o tiro do campo. Não perco soldados por orgulho juvenil.

Kaelen caminhava ao meu lado. Falava dos suprimentos, da rota dos batedores, da nova aliança com o clã O’Rynn ao sul.

Tudo registrado. Tudo supervisionado.

O peso de uma matilha não se divide. Só se carrega.

No entardecer, houve banquete.

Eu detesto banquetes.

Gente demais falando ao mesmo tempo. Sorrisos falsos. Brindes por bravura que ninguém provou ainda. Mesmo assim, é necessário. O povo precisa ver o Alfa entre eles. Mesmo que seja só por uma hora.

Sentei no trono de pedra, no centro do salão, e fiquei observando.

Eles riem. Eles cantam. E lançam olhares. Alguns de adoração. Outros de medo. Outros... desejo.

Uma loba que não conhecia se aproximou demais. Usava vermelho. Tecido justo. Queria chamar atenção. Conseguiu.

— Alfa — ela disse, com voz doce e provocante. — Nunca pensou em tomar uma Luna?

Silêncio.

Todos pararam.

Ergui os olhos, encarando-a.

— Se eu precisasse de uma Luna, já teria escolhido. — Respirei fundo. — Mas, no momento, prefiro uma espada bem afiada ao meu lado do que uma cama quente. Mas a deusa sabe o momento certo para me entregar aquela que necessito. Menti, como sempre.

Ela riu, sem graça. Recuou.

Kaelen escondeu o sorriso. Ele sempre acha divertido ver quando mato esperanças com palavras. Mesmo que não soubesse o que pretendo fazer um dia.

Noite.

Silêncio.

É quando respiro de verdade.

Subi sozinho até os muros. A brisa da montanha vinha fria e carregada do cheiro da floresta. Ouvi uivos distantes — nada alarmante, só ecos de caçadores noturnos.

Olhando o horizonte, pensei... como sempre penso.

Tive apenas dezesseis anos quando a coroa da Thunderwoof caiu sobre minha cabeça. Não foi um presente. Foi um fardo. Minha mãe morta. Meu pai... um fantasma que enlouqueceu.

Desde então, fiz da minha dor a base das nossas muralhas. Construi esta matilha como se erguesse uma fortaleza com minhas próprias mãos. Ninguém vai derrubá-la.

Mas às vezes... às vezes me pergunto o que isso fez comigo.

Quantos pedaços de mim deixei para trás para me tornar o Alfa que todos temem?

Quantos rostos esqueci para manter o foco?

A única certeza que tenho... é que o amor enfraquece. Vi isso em meu pai. Um guerreiro inquebrável que virou pó ao perder sua companheira.

Não. Esse destino não é pra mim.

E se um dia os deuses decidirem brincar comigo... e me jogarem uma companheira destinada aos pés, rejeitarei.

Porque o amor transforma homens em lendas ou em loucos.

E eu... já carrego loucura demais no sangue.

A madrugada era como eu: silenciosa, densa, impossível de atravessar com facilidade.

Voltei para os corredores de pedra da fortaleza com os sentidos ainda em alerta. Algo me incomodava. Algo que eu não sabia nomear.

Quando passei pelas salas de reunião e pela biblioteca, o fogo nas tochas ainda queimava. Sempre ordeno que elas fiquem acesas à noite. Luz afasta o medo — não o meu, mas o deles.

Kaelen me esperava encostado na parede do salão de estratégia. Trazia uma expressão que me deixava em alerta. Séria demais.

— Estava te esperando. Chegou uma carta.

— De quem?

— Não sabemos. Foi deixada por um corvo no posto de vigia. Nenhum brasão. Nenhum cheiro.

Tomei o pergaminho de suas mãos e quebrei o selo sem símbolo. O papel estava dobrado com cuidado, mas algo nele me causava um desconforto visceral.

A letra era limpa. Direta.

“O rei caminha entre vocês. Não para ser saudado. Mas para julgar. Ele já viu matilhas ruírem por arrogância. E outras florescerem em silêncio. Você será qual, Alfa Ares?”

— Então é verdade mesmo, não somente rumores? Kaelen disse.

— Não, mas não me preocupo, vamos tomar apenas precauções. Entreguei a ele o papel e encerrei minha noite.

Na manhã seguinte, convoquei o círculo interno. Minhas tropas de elite. Minhas garras e escudos.

No salão principal, o clima estava pesado. O rugido da tempestade que se formava no horizonte era como um aviso. O tipo que só os alfas entendem. A natureza é a primeira a reagir quando há algo fora do equilíbrio.

— A partir de hoje, ninguém entra nem sai da Thunderwoof sem passar por Kaelen. — Minha voz ecoou nas pedras. — Dobrem a guarda nos portões. Interroguem viajantes. Cuidado com quem fala demais. Ou com quem fala pouco demais.

Meus soldados assentiram. Sabiam que quando falo assim, algo se aproxima. Algo perigoso.

Mais tarde, fui até o campo de treinos supervisionar os novatos. Cada passo meu silenciava conversas, endireitava posturas.

Era isso que construí: respeito com uma pitada de medo.

E era necessário.

Vi Lieran, o jovem que corrijo todos os dias, ajudando outro garoto a se levantar. Gostei disso. Companheirismo é força. Mas quando me viu, ficou rígido. Como se esperasse um castigo.

Aproximei-me.

— Não tema meu olhar, Lieran. Tema apenas minha decepção.

Ele assentiu, sem ousar levantar os olhos. Ainda assim, respirava com orgulho. Ótimo. O tipo que sobrevive à guerra.

Kaelen se juntou a mim depois de um tempo, trazendo uma nova informação.

— Três famílias de forasteiros se aproximam do vale. Dizem que vêm em busca de refúgio. As matilhas menores do leste foram atacadas. Renegados.

— Recebam. Investigaremos. Se forem ameaça, eliminamos antes que entrem. Se forem inocentes... os forjaremos como nossos.

Kaelen hesitou.

— E se... o rei estiver entre eles?

— Então ele verá. Com os próprios olhos. Que a Thunderwoof não teme licantropos originais. Nem reis. Nem deuses. Só falhará consigo mesmo.

À noite, fiquei sozinho mais uma vez nos muros.

Era assim que gostava.

Onde o silêncio do vento falava comigo. Onde eu ouvia os fantasmas da minha mãe. Onde meu pai, em sua loucura, ainda gritava pelo nome de uma mulher morta.

E eu ali, firme. Alfa de um império de sangue, jurado a manter de pé tudo que tantos abandonaram.

O rei pode vir.

Pode observar com olhos ocultos.

Mas se entrar no meu território, saberá que eu não sou apenas mais um lobo. Sou a tempestade que restou depois que tudo ruiu.

Sou Ares Onderwood.

E não me curvo.

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