O reino de Arkhadia nunca dormia verdadeiramente. Mas nos últimos dias, os ventos traziam sussurros estranhos, palavras ditas em voz baixa, olhares que se desviavam quando o assunto surgia.
Dizia-se que o rei andava pelo reino, disfarçado, passando por vilarejos e matilhas sem aviso, sem bandeiras, como uma sombra invisível. Ninguém sabia dizer exatamente onde ele estivera, mas cada local onde passara deixava um rastro de medo e silêncio. Era difícil distinguir fato de boato, mas até os caçadores mais corajosos evitavam falar dele em voz alta. Kaelen, apareceu na sala de estratégia segurando um pergaminho enrolado. — Outro relato, Alfa — disse ele, com os olhos sombrios. — Um mercador de Volris jurou ter visto um homem alto e enigmático caminhando pelas ruas, usando capa e capuz. Não falou com ninguém, não olhou para ninguém. Apenas observava. — Dizem que na vila de Avrak, ele chegou como um simples pastor, cuidando de ovelhas, mas que seu olhar era frio demais para ser humano — Kaelen continuou, lançando o pergaminho sobre a mesa. Suspirei. O nome do rei ainda era uma lenda para muitos, mas para nós, alfas, ele era o verdadeiro poder oculto. Um licano original, a linhagem do primeiro de todos, a origem da nossa raça. Poderoso demais para ser ignorado, temido por sua força, sua inteligência e sua capacidade de manipular o destino do reino com um simples gesto. — E o que isso significa para nós? — perguntei, sentando-me à mesa e olhando para Kaelen nos olhos. — Que ele caminha entre nós como fantasma, coletando informações, buscando traições, ou talvez testando nossa força? Kaelen fez uma pausa, respirou fundo. — O que sabemos é que onde o rei pisa, o silêncio pesa. Matilhas mudam suas rotas, antigos aliados se tornam cautelosos, e renegados desaparecem sem deixar vestígios. — É um aviso — falei. — Para todos. Para Thunderwoof, para as matilhas próximas. Estamos sendo observados, e não sabemos quando ou onde ele decidirá agir. A tensão no ar era quase palpável. Kaelen olhou para mim, firme. — Se o rei vier, ele não virá como um convidado. Ele virá como juiz. — E nós devemos estar prontos — concluí, sentindo a velha chama do dever acender em meu peito. — Porque, neste jogo de sombras, o menor erro significa a queda. — E eu nunca erro, Thunderwoof não erra e não vamos cair, não tememos pique não temos motivo, então vamos trabalhar nossa matilha, mais e mais, até o próprio rei ficará honrado por ter uma matilha exemplar como a nossa, se necessário for traga mais guerreiros de matilhas aliadas para ensinar os nossos coisas que não sabemos, traga contadores para que nossas finanças estejam sempre acima do esperado, mas não vamos cair só porque o rei está vigiando o reino. Naquela noite, ao deitar, a cabeça pesada com pensamentos e planos, o lobo dentro de mim uivou silenciosamente: o tempo das máscaras e disfarces estava chegando ao fim. E eu precisava estar pronto para o que viesse — mesmo que ainda não soubesse o que era. Os ventos mudaram. E com eles, algo invisível — uma inquietação sutil, como se os olhos de um predador silencioso observassem cada fronteira, cada fenda entre as árvores. Na sala do conselho, os velhos falavam. E eu escutava. — Dizem que ele foi visto nas Montanhas de Ferro — disse o ancião Mordekai, sua voz rouca e lenta. — Um velho com olhos cinzentos que sabiam demais... Na semana seguinte, a matilha local perdeu seu Alfa. — E em Draeven, apareceu como um cego tocador de alaúde — completou outro, um guerreiro de cicatrizes. — Um dia depois, o guerreiro mais forte deles desapareceu. Sem rastros. Nem sangue. Kaelen, meu braço direito — firme, discreto, leal até os ossos — me olhou de canto. — Você acha que é ele? O rei? Cruzei os braços e respondi apenas com o olhar. Sim. O rei de Arkhadia não enviava recados. Ele era o próprio recado. Um licano original. Antigo como as florestas que cercam nossas terras. Uma entidade que governava por direito de sangue e força. E, agora, segundo rumores, andava pelas terras como um fantasma de carne, testando fidelidades, caçando traições. Mas qual o verdadeiro motivo? Essa era a pergunta que me corroía. — Vamos triplicar as patrulhas noturnas — anunciei. — Nada entra ou sai sem meu conhecimento. Qualquer estranho será interrogado. Qualquer erro, punido. — E se for ele? — Kaelen me desafiou com o tom apenas o bastante para parecer audaz, sem ultrapassar o limite. — O rei em pessoa. E se já estiver entre nós? Olhei para todos. O salão estava quieto, o fogo das tochas lançava sombras longas nas paredes. — Então que ele veja o que construímos. Que veja a força da Thunderwoof e a retidão de meu comando. Não ajoelho, Kaelen. Nem para fantasmas. A reunião terminou. Mas o peso não me abandonou. Horas depois, sozinho em meu gabinete, percorri os arquivos com olhos famintos. Relatórios, mapas, mensagens cifradas. Tudo me parecia frágil, insuficiente. Algo estava se movendo sob os alicerces do reino. E eu precisava descobrir antes que ruíssem sob meus pés. Na madrugada, fui ao campo de treinamento. Chuva fina. Vento cortante. Perfeito para pensar — ou para esquecer. Atirei minha raiva contra um manequim reforçado, soco após soco. As luvas de couro rasgaram. Os nós dos dedos sangraram. Eu não parei. "Fraqueza é afeto", disse meu pai uma vez, antes de perder a razão. "Lobos que amam são lobos mortos." Tolos morrem por amor. Alfas morrem por confiar demais. Não havia espaço para sentimentalismo. Nenhum. Mas... mesmo ali, sozinho, uma sensação estranha se formava em meu peito. Algo que eu não sabia nomear — mas que já começava a me perseguir como uma lembrança esquecida. Kaelen apareceu horas depois, ao amanhecer, segurando uma mensagem. — Encontraram outro acampamento abandonado. Marcas de patas... e algo mais. Um brasão queimado numa pedra. Um olho cercado por chamas. Arfei. Reconhecia aquele símbolo. Era usado por antigos seguidores de um dos traidores da guerra dos clãs, há décadas atrás. Pensava-se extinto. — Quero ver com meus próprios olhos. — Hoje? — Agora. Kaelen hesitou, mas acenou. — E os rumores sobre o rei? — Deixem que se espalhem — respondi. — O medo une melhor do que promessas. E se o rei estiver mesmo andando entre nós, quero que saiba: a Thunderwoof não teme sombras. Permaneci ali por um segundo, observando o céu cinzento antes de montar. A tempestade não era apenas de vento ou trovões. Era política. Era sangue. E ela se aproximava.