Capítulo 02

A manhã se arrastou entre instruções, correções e olhares que evitavam os meus. Kaelen me aguardava com um relatório ainda manchado de sangue fresco. Não era o primeiro do mês.

— Ataque de lobos solitários ao norte. Eram três. Um deles foi capturado. Diz que fugiu da prisão da Matilha dos Ossos — informou, entregando o papel.

Apertei os dedos ao redor do pergaminho. A Matilha dos Ossos... maldição disfarçada de aliança. Sempre cheiraram a podridão, mesmo sob pactos formais.

— Interrogue. Extraia tudo. Se mentir, arranque a pele — respondi.

— E se falar a verdade?

— Faça o mesmo. Mas depois.

Kaelen não reagiu. Ele sabia que minhas ordens não vinham da crueldade, mas da necessidade. Manter a matilha segura exigia sacrifícios. E sacrifício sempre tem cheiro de sangue.

No salão das decisões, enfrentei o que muitos chamariam de parte mais entediante da liderança: papeladas, audiências, julgamentos.

Para mim, era onde o verdadeiro campo de batalha se armava.

— Ares Onderwood, Alfa de Thunderwoof — anunciou o arauto, e o salão silenciou enquanto eu tomava meu lugar na cadeira de pedra negra — entronizada não por conforto, mas por lembrança. Toda lasca naquela cadeira me feria de propósito. Me mantinha desperto.

— Que entrem os peticionários.

A primeira foi uma mulher, viúva de um caçador morto em patrulha. Queria terras para cultivar. Fome nos olhos. Dignidade nos ombros.

— Você terá a terra — respondi após ouvi-la. — Mas exigirei dos seus filhos três meses de serviço junto à guarda do armazém central. Ensinem a trabalhar pela comida. Não pela piedade.

Ela assentiu, com lágrimas nos olhos, mas sem uma palavra de gratidão. Sei como é complicado perder um companheiro, ela não está louca, mas está ferida e triste. Gostei dela por saber se submeter a mim.

A segunda foi uma disputa entre dois comerciantes sobre direitos de rota. Baixei os olhos sobre ambos como um lobo observa presas discutindo território sobre um cadáver.

— Vocês esqueceram quem detém as rotas nesta matilha? — perguntei, e o silêncio pesou como aço. — Se voltarem a brigar como crianças, fecharei as rotas para ambos. E verão o que é mendigar sob meu portão.

Eles baixaram as cabeças, tremendo.

E assim seguiu o dia. Uma enxurrada de problemas, decisões, sentenças e acordos.

Não havia descanso. Nem gentileza. Não em Thunderwoof.

Ao cair da tarde, visitei os campos dos doentes. Uma praga de febre havia atingido os barracões do setor oeste. Xamãs tentavam conter com poções e cinzas de ervas raras. Os corpos tremiam sob lençóis rudes. O cheiro era fétido, uma mistura de suor, pus e magia decadente.

— Isolamento total — ordenei. — Nenhum soldado sem sangue de guerreiro pode entrar aqui. E queimem os lençóis. Todos.

— Mas Alfa… — começou um dos curandeiros. — Há crianças…

— Queimar os lençóis — repeti. — Ou colherei sua língua com minhas próprias mãos.

Ele calou-se. E obedeceu.

Kaelen se aproximou mais tarde, quando eu já observava os campos escurecerem, braços cruzados diante do vale.

— Posso chegar mais perto, não como seu Beta, mas como seu amigo de infância.

Ele disse sabendo que a conversa séria mais seria.

— Só não se feche ao ponto de não conseguir se abrir novamente Ares, a escuridão é pior do que a amargura.

— Não há lugar para fragilidade Kal.

— Não estou falando de fraqueza. Estou falando de humanidade.

— A humanidade morre no primeiro sopro de sangue no ar. Eu morri aos dezesseis. O que resta é o que Thunderwoof precisa.

Kaelen suspirou. Seus olhos carregavam anos, embora fosse apenas um ano mais velho que eu. Crescemos juntos, fomos treinados sob o mesmo aço. Mas algo nele permaneceu... menos quebrado.

— O mundo não precisa apenas de aço, Ares. Às vezes precisa de raiz. Algo que te prenda. Que te lembre quem você era.

— Raiz apodrece. — Me virei para ele. — A única coisa que me prende a esse mundo... é minha matilha. E ela não precisa de memórias. Precisa de sangue forte. De líderes que não tremem.

— Nem mesmo por dentro?

O encarei.

— Dentro de mim há uma guerra eterna. Mas ela é minha. E jamais a deixarei sangrar para fora.

Na noite daquele dia, a lua se ergueu entre nuvens grossas, e o uivo das sentinelas ecoou pelas torres de pedra. Assisti ao luar refletido nas águas do lago ao leste, imóvel.

Quantos morreram por minha mão? Quantos ainda morrerão?

Quantos olhos me veem como salvador? E quantos como tirano?

Eu sou o que restou. O Alfa feito de cinzas. O herdeiro de um trono frio. E mesmo que os deuses cuspam um destino que me arraste para o coração de uma tempestade… não me curvarei.

Não por honra.

Não por amor.

E jamais... por um laço.

A lua já havia subido alto quando retornei à fortaleza.

Meu corpo, exausto, clamava por repouso, mas minha mente era um campo de batalha incessante. O silêncio dos corredores era apenas uma máscara para os gritos da minha consciência, que ecoavam desde a primeira morte que cometi... até a última decisão que salvei com crueldade.

Entrei em meus aposentos, os passos pesados ecoando sobre as pedras frias. Tirei a camisa manchada pelo dia e me aproximei da lareira. O fogo ali crepitava, como se sentisse minha presença. Como se também ele soubesse da escuridão que me habitava.

Foi então que senti. O cheiro familiar. Doce demais. Quente demais.

— Ares… — a voz arrastada soou do canto escuro do quarto.

Ela estava ali. Sentada no divã de couro escuro como se lhe pertencesse. Vestia apenas um manto vermelho que escorregava por um ombro. O cabelo solto caía como sombra sobre a pele pálida e perfumada. Os olhos, âmbar como ouro febril, me analisavam com desejo.

Saphira.

Filha de um dos generais mais antigos da matilha. Bonita como veneno. E quase tão perigosa.

— Você não foi convidada — murmurei, minha voz baixa, cortante como lâmina na bainha.

— Mas você nunca me expulsou — ela replicou, erguendo-se lentamente. Caminhou até mim com passos felinos, os pés descalços mal fazendo som. — Talvez no fundo você goste da minha presença mais do que admite.

Ela se aproximou. O calor do seu corpo tentou me alcançar. Eu permaneci feito pedra.

— Você quer algo — disse, olhando diretamente para seus olhos. — Não disfarce.

— Quero o que todos já esperam, Ares. Quero ser sua Luna. — Ela deslizou os dedos pelo meu peito nu. — Eu sou digna. Poderosa. Já lutei ao seu lado. Não sou uma criança.

— Você é ambiciosa. — Segurei seu pulso com firmeza, afastando-a.

— E você é um covarde, Ares — sibilou, e seus olhos brilharam com fúria. — Prefere a solidão a ter alguém para dividir o trono. Uma matilha precisa de uma Luna. E você sabe disso.

A respiração dela acelerou. Talvez por raiva. Talvez por excitação. Mas eu continuei imóvel. Indiferente.

— O trono é meu. E o trono sangra. Não há espaço para sentimentos ali.

Ela se inclinou, colando os lábios nos meus. E, por um breve instante, cedi.

Um erro.

A raiva, a solidão, o ódio por mim mesmo — tudo isso ardeu em minha pele. Beijei Saphira como se quisesse arrancá-la da minha mente. Empurrei-a contra a parede com violência contida, as mãos presas à sua cintura, os corpos colidindo com o som abafado de desejo e fúria.

Ela gemeu baixo, os dedos enterrando-se em minhas costas.

O calor nos envolveu.

Mas quando o momento terminou, quando seu corpo cedeu sob o meu com um suspiro de conquista, o gosto de tudo era errado.

Amargo. Morto.

— Acha que isso te torna Luna? — sussurrei, afastando-me de seu corpo como se ela queimasse.

Saphira me olhou confusa, depois furiosa.

— Você me deseja. Você me teve. Isso é mais do que qualquer outro homem já teve o direito!

— Eu te usei — minha voz agora era pura pedra. — Porque por um momento, achei que o buraco dentro de mim se calaria com o calor de outro corpo.

— Você é um monstro.

— Sim — sorri sem alma. — E monstros não se casam. Eles devoram.

Ela se vestiu apressadamente, os olhos ardendo. Antes de sair, virou-se para mim uma última vez.

— Você vai se arrepender, Ares Onderwood. Vai acabar sozinho nesse trono de gelo. E quando olhar ao redor, não haverá ninguém para uivar por você.

— Melhor o silêncio — respondi. — Do que ouvir mentiras ao meu lado.

Ela saiu batendo a porta com força. O silêncio voltou como um manto sufocante.

Caminhei até a lareira, encostei na parede de pedra e encarei o fogo.

Sozinho.

Como sempre fui.

Como sempre deveria ser.

Mas o gosto nos lábios…

Ainda não era o que eu esperava.

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