Mundo de ficçãoIniciar sessãoCem anos depois
Maya Collins
Meu despertador nem precisou tocar. Já estava acordada quando aquele primeiro raio de sol teimou em entrar pela fresta da janela quebrada. Seis da manhã. O ar no meu cubículo ainda guardava o frio da noite, aquele vento úmido que sempre encontrava um jeito de entrar pelas rachaduras do prédio. . Na rua, a cidade ainda dormia, mas aqui no lado pobre, a gente já acorda com pressa. Coloquei meu uniforme do trabalho e saí correndo.
Meus passos ecoavam nas calçadas esburacadas, entre prédios que pareciam cansados demais para continuar em pé. O caminho até o restaurante era sempre o mesmo, mas meu estômago nunca se acostumava com aquilo. Lembro da vovó me contando quando era criança como Nova York já foi diferente, quando um emprego só dava pra viver, quando o futuro era algo que a gente esperava, não temia.
Isso foi antes. Antes da Grande Queda, cem anos atrás. Antes deles.
Agora, tudo custa o dobro e vale a metade. Um emprego? Não paga nem o aluguel do quarto minúsculo onde durmo, quem dirá comida, água, luz - que desde que chegaram ficou mais instável pra nós. Por isso faço dupla: garçonete de manhã no Blue Star, faxineira à tarde nos escritórios fantasmas do centro. Dois empregos pra sobreviver, não viver.
Olho as lojas fechadas, os sem-teto se arrumando debaixo das marquises, os rostos cansados da minha gente. Todos em fila, formigas marchando. Tudo mudou desde que os Aurélios assumiram. Os ricos que já eram ricos ficaram mais ricos ainda. Aliados deles, usam essa tecnologia avançada pra aumentar fortunas, enquanto a gente é deixado pra trás, aqui nas sombras.
Sei que minha única chance é manter a cabeça baixa e seguir. Não chamar atenção. Não me meter onde não fui chamada. E, principalmente, ficar longe deles. Os Aurélios.
Nunca vi um de perto, e quero manter assim. Dizem que são lindos - lindos demais, com suas feições perfeitas, pele sem defeito, cabelos que parecem feitos de luz. E os olhos... olhos dourados da cor do ouro que parecem ver tudo, saber de tudo. Dizem que a inteligência deles é tanta que preveem o mercado, manipulam sistemas, leem mentes. Não sei se é verdade, só sei que são perigosos. E poderosos. E pra alguém como eu, melhor ser invisível.
Lá longe, do outro lado do rio, os arranha-céus da nova Manhattan brilham como diamantes falsos. Lá, eles e os humanos ricos vivem num mundo paralelo, de luxo e tecnologia. Um mundo que gente como eu só vê nas telas - quando a energia não falha.
Chego na porta do Blue Star, aquele restaurante pequeno e mal iluminado que sobrevive vendendo café ruim e comida barata pra quem não tem escolha. Tiro a chave da bolsa, destranco. O cheiro de café passado e pão velho me abraça. Mais um dia.
Mas no fundo desses meus olhos verdes, tem algo além do cansaço: um fogo quieto que mantenho escondido, como um segredo sujo. Porque eu, Maya Collins, sei que um dia algo tem que mudar. Caso contrário a raça humana irá sucumbir á dominação dos aurelianos.
As primeiras horas no Blue Star são sempre as mais loucas. São 6h30 da manhã e o restaurante já está abarrotado de operários de macacão sujo de graxa, motoristas de ônibus com olheiras profundas, mulheres da limpeza com uniformes azuis desbotados. Todos precisam de café forte, ovos fritos, pão barato e uma dose de energia artificial para enfrentar mais um dia servindo à máquina que Nova York se tornou.
Eu me movo entre as mesas como um fantasma, anotando pedidos, servindo bandejas, recolhendo pratos sujos. Minhas mãos já têm a memória muscular desse ritual: três mesas à esquerda são dos pedreiros que sempre pedem café preto e sanduíche de ovo. A mesa do canto é do senhor Henderson, que vem toda manhã há quinze anos e sempre deixa exatamente dez por cento de gorjeta. Não penso, apenas executo. É mais fácil assim.
Enquanto despejo xícaras usadas na pia, meus olhos vagueiam para o anúncio colado na parede do fundo. Uma faculdade de gastronomia oferecendo cursos noturnos. A foto mostra um chef sorridente segurando um prato perfeitamente arrumado, com ingredientes que eu nem sequer reconheço. Um pedaço de papel que pode muito bem ser de outro planeta.
Estudar gastronomia. Que piada de mau gosto meu cérebro insiste em contar para meu coração. Às vezes, nos meus raros momentos de paz, me pego imaginando como seria trabalhar em uma cozinha profissional, aprender sobre temperos, técnicas, criar pratos que não sejam apenas para encher barriga, mas para dar prazer. Sonho com o cheiro de alecrim fresco e o sabor de um molho que leva horas para reduzir.
Mas a realidade sempre chega com suas garras afiadas. Sou filha de Elara Collins, a prostituta mais famosa - e irresponsável - do nosso quarteirão. Uma mulher que some por meses e só aparece quando precisa de dinheiro para o próximo vício. Ela me ensinou muitas coisas: como esconder dinheiro sob o assoalho, como reconhecer um cliente perigoso, como mentir sobre minha idade. A como seduzir um homem, casado ou solteiro. Mas nunca me ensinou como sonhar.
Esses pensamentos são meras ilusões de uma menina de vinte e dois anos que divide uma kitnet com duas colegas de quarto - onde nossa "sala de estar" é um colchão no chão e nossa "cozinha" é um fogareiro elétrico. Uma garota que nunca saiu de Nova York, que nunca viu o oceano, que nunca teve nada de verdade.
Minha vida se resume a esta rotina: acordar antes do sol, trabalhar até as mãos doerem, contar moedas para ver se consigo comprar pão no caminho para casa, e repetir. Às quartas-feiras, quando o Blue Star fecha mais cedo, eu passo no caixa eletrônico e deixo metade do meu salário no esconderijo - o único jeito de garantir que minha mãe não vai limpar minha conta quando aparecer.
— Mais café aqui, Maya! — grita um cliente da mesa 4.
Assumo meu sorriso profissional - aquele que não chega aos olhos - e pego a garrafa térmica. Enquanto despejo o líquido escuro na xícara do homem, meus olhos involuntariamente seguem o movimento de um carro preto e brilhante que para do outro lado da rua. Um daqueles modelos aerodinâmicos que só os muito ricos - ou os próprios Aurélios - podem ter.
Meu coração acelera sem minha permissão. Afasto-me rapidamente da janela, como se tivesse visto algo que não deveria. Sonhos são perigosos o suficiente em meu mundo; esperança é um luxo que não posso permitir.
A única coisa real é este café amargo, este uniforme engordurado e o conhecimento sólido de que, quando sair hoje à noite, ainda terei que ir limpar os banheiros de luxo daqueles que me olham como se eu fosse invisível.
E talvez eu seja. Mas pelo menos ainda consigo sonhar com um prato de comida que valha a pena ser servido.







