Mundo de ficçãoIniciar sessãoMaya Collins
São quase nove da noite quando finalmente enfio a chave na fechadura da kitnet. Meu corpo dói de um jeito que virou normal – os pés inchados de tanto ficar em pé, as costas tensionadas de tanto me curvar para limpar cantos que nem os donos dos escritórios lembravam que existiam. O caminho de volta para casa é sempre uma prova de resistência: desviar dos viciados que se aglomeram na esquina, ignorar os bêbados que gritam obscenidades, e correr dos olhares de homens que me reconhecem – não por quem sou, mas por quem minha mãe é. “Filha da Elara”, sussurram, como se isso definisse cada pedaço do meu ser.
Quando a porta range ao abrir, sou recebida pelo caos. Rendas brilhantes, sapatos de salto espalhados pelo chão, e um cheiro doce e barato de perfume e spray de cabelo tomam o ar. Kisha e Celina estão no meio do pequeno espaço, se aprontando para mais uma noite na boate onde trabalham como dançarinas de pole dance. A TV está ligada em algum programa de fofoca sobre a alta sociedade, mostrando imagens do lado rico da cidade – daquelas ruas limpas, iluminadas, onde até o ar parece mais leve.
- Ei, Maya, quer vir com a gente hoje?- pergunta Kisha, passando batom vermelho-vivo sem nem olhar para mim. - Tô te dizendo, tem uns caras novos no clube. Quem sabe você não dá sorte?
Celina ri, ajustando o sutiã de renda preta.
-A Maya não, Kisha. Ela é muito certinha para isso. Aquele ditado que diz tal mãe tal filha, não se enquadra nela, casso contrário ela estaria fazendo sucesso conquistando esses perdedores com esse corpo gostoso que ela tem. Não creio em Deus, mas amiga Deus te abençou demais com essa bunda.
Sorrio sem graça e deixo minha bolsa no único canto livre do sofá. Elas não entendem – ou não querem entender – que meu cansaço não é só físico. É da alma. Enquanto elas sonham em chamar a atenção de algum rico que possa tirá-las daqui, eu só queria ter forças para tomar um banho quente e dormir.
- Vocês sabem que não é minha praia- , respondo, enfim. - Além do mais, tenho que levantar cedo amanhã.
Kisha suspira, dramaticamente.
- Por isso está sempre com esse semblante cansado e derrotado, garaota você trabalha desde que o sol nasce até anoitecer. Mas, Maya, você tem que sonhar mais alto! A gente não pode ficar presa nesse buraco para sempre. Imagina só: dançar em um daqueles clubes do lado rico, onde os Aurélios frequentam… Ganhar em uma noite o que a gente ganha em um mês aqui!
Olho para elas, com seus corpos esculpidos pela dança e suas roupas que imitam o luxo que nunca vão ter de verdade. Elas são lindas, ambas. Mas sei, como sei das leis da física, que isso não é suficiente. Raramente alguém desse lado da cidade consegue algo mais – a não ser pela força do trabalho braçal, do serviço invisível. Os ricos não querem a gente manchando o brilho dos lugares deles. A não ser para limpar, servir, ou, no caso delas, entreter. Os aurelianos vieram enraizar ainda mais a ideia de que os pores e os ricos jamais serão iguais, a cem anos que tem sido assim. Apesar dos inúmeros protestos, nada muda.
-Tomem cuidado- , digo, em vez de discutir. -E não esqueçam de trancar a porta.
Enquanto elas terminam de se arrumar, eu recolho algumas peças de roupa do chão e levo para o cesto. Meus olhos caem sobre uma revista abandonada na mesa de centro – uma daquelas publicações glamourosas que falam sobre universidades e bolsas de estudo. Na capa, uma jovem sorri, segurando um diploma. Deve ser filha de alguém importante, penso. Alguém que nunca precisou calcular cada centavo para ver se sobra para comer no final do mês.
Meu maior sonho – estudar gastronomia – parece cada vez mais distante. Às vezes, quando estou sozinha, deixo minha mente vagar e imagino como seria. Eu, de dolma, aprendendo sobre molhos, temperos, técnicas… Criando pratos que fariam as pessoas felizes. Mas a realidade é dura: nunca conseguiria uma bolsa. Nem aqui, nem em qualquer outro lugar desse país. As universidades não foram feitas para pessoas como eu.
Kisha e Celina saem, deixando para trás um silêncio que é quebrado apenas pelo zumbido distante do tráfego lá fora. Olho ao redor: a bagunça, as paredes descascando, a janela com a vista para o prédio ao lado. Isso é o meu mundo. E, por mais que eu sonhe, sei que algumas portas estão fechadas para mim antes mesmo de eu conseguir chegar perto delas.
Mas, mesmo assim… Mesmo assim, algo dentro de mim se recusa a desistir completamente. Pode ser só um resto de esperança teimosa, mas é o que me faz levantar todos os dias.
Amanhã será outro dia de luta. Por enquanto, vou me contentar em limpar a bagunça que ficou – e, quem sabe, sonhar com um futuro onde eu não precise me esconder atrás de um balcão ou de um esfregão.







