Sento-me na soleira da porta como quem repousa no colo de uma velha amiga. É a única que me resta. A madeira gasta, áspera e quente do sol da tarde, me oferece o silêncio que tanto preciso. Meus irmãos e o homem que se intitula nosso guardião seguiram para a cidade vizinha. Uma vez por mês, esse ritual se repete: eles partem para buscar mantimentos, e eu fico - sempre fico.
A cada partida, acende-se em mim uma fagulha secreta: talvez dessa vez meus irmãos fujam. Talvez escapem da prisão disfarçada de lar. Mas a esperança já me parece um vestido velho, puído demais para vestir de novo. Nem mesmo quando buscamos ajuda das autoridades, conseguimos qualquer mudança. Eles sabiam. Todos sabiam. E escolheram ignorar. A verdade é simples e suja: os bolsos deles estavam cheios do meu silêncio comprado, do meu corpo corrompido e esmagado por mãos que deveriam ter me protegido.
Me levanto devagar, como quem carrega o peso de cem anos, e deixo a porta para trás. O vento, morno e rarefeito, sopra contra a minha pele como um sussurro de consolo. Agradeço pelas árvores que rodeiam nossa casa, únicas testemunhas silenciosas do inferno que vivemos. Sem energia elétrica, são elas que nos protegem do calor e dos mosquitos que, famintos, rasgam a pele durante as noites abafadas.
Na cozinha - se é que posso chamar este espaço apertado e de paredes mofadas assim - ajeito uma tigela de legumes que consegui juntar. O gerador a diesel ainda consegue manter a geladeira funcionando, embora ela mal resfrie o que quer que seja. O frango descongela sobre o peitoril da janela, exposto ao sol ardente. Preciso estar com o jantar pronto antes que eles retornem, mesmo sabendo que o fogão a lenha pode não colaborar.
Coloco água para o arroz - meia xícara para cada um de nós, e duas para ele. Ele sempre come mais. Sempre exige mais. E nós, com olhos famintos e estômagos vazios, aprendemos a engolir a fome junto com a raiva. Hoje, por causa da viagem, tivemos uma refeição extra, um almoço mísero. Um luxo.
Enquanto mexo no arroz, meus olhos se perdem na plantação de couve. Folhas verdes, vibrantes, cheias de vida. Foi ali, entre essas folhas, que mamãe me ensinou a plantar, a colher, a cuidar. Sinto uma pontada aguda no peito. Uma saudade feroz. Ela costumava me acariciar os cabelos durante a noite. Sua presença era um porto seguro depois que papai morreu. Mas o destino foi cruel. E quando ela partiu - assassinada pelo próprio homem que hoje nos escraviza - tudo perdeu o sentido.
A casa tem chão batido, e é sobre esse chão que esfrego uma velha vassoura, mesmo sabendo que nunca ficará limpo. Já arrastaram meu rosto aqui tantas vezes, como castigo por minha "rebeldia", que o chão parece me conhecer melhor do que eu mesma. As lágrimas descem pesadas, sem pudor, pois agora estou sozinha. É o único momento em que permito que a dor transborde. A Esther forte, destemida, morreu junto com minha mãe. O que restou vive apenas pelos irmãos. Por eles, eu continuo. Por eles, respiro. Sonho que um dia, talvez, não voltem. Que consigam escapar. E quando isso acontecer... o meu fim será bem-vindo.
Termino a limpeza e me arrasto até o pequeno banheiro, o único lugar onde as correntes que me prendem me permitem entrar. É precário, com um esgoto improvisado, sem dignidade alguma. Tomo banho rápido, porque não quero que meus irmãos tenham que buscar mais água do que já o fazem. Quando volto, visto meu velho vestido, outrora rosa. Hoje, ele é uma mistura de cinza e tempo. Já faz anos que não cresço. Não porque meu corpo tenha parado, mas porque a vida estagnou em mim.
Olho-me no espelho rachado. A mulher que vejo não é mais uma menina. Tenho 22 anos, mas me sinto milênios mais velha. Não terminei o ensino fundamental, nunca conheci o mundo além dessa cerca enferrujada. Eu deveria estar estudando, dançando em alguma festa, vivendo um primeiro amor. Mas aqui estou, com a alma ferida e o corpo violado mais vezes do que consigo contar.
Já perdi a conta de quantas vezes morri em vida.
Ligo o rádio. Nosso velho rádio a pilha, herdado de papai. É o único som que me traz consolo. O único objeto que o monstro ainda não destruiu. Que assim permaneça. Enquanto a música toca, termino de lavar nossas roupas na pia da cozinha. Meus braços estão marcados pelas correntes, acostumadas a me prender e limitar. Foi o castigo que recebi por desafiá-lo. E, se voltasse no tempo, desafiaria de novo. E de novo. Porque cada palavra que gritei foi para proteger meus irmãos.
Mas a verdade é que há muito não há mais resistência. Cada vez que ele me viola, cada vez que seus olhos doentes percorrem meu corpo, sinto que partes de mim morrem. Meus sonhos evaporaram. Meus desejos desapareceram. A Esther que acreditava em liberdade virou poeira junto ao sangue derramado nesse chão.
Mas mesmo sendo prisioneira, ainda carrego uma fé silenciosa.
Talvez eu não me salve. Talvez meu destino seja apodrecer nesta casa de madeira e sofrimento. Mas meus irmãos... meus irmãos vão viver. Eles serão livres. Serão homens de bem, fortes e corajosos. Sobreviventes. E se isso for tudo o que eu conseguir dar ao mundo, então minha dor terá servido para algo.
O som suave do rádio preenche a casa vazia, embalando minha solidão. E eu continuo. Por eles. Sempre por eles.