A festa ainda pulsava lá dentro com música, risos e muita bebida, mas para mim, tudo parecia abafado — como se eu estivesse debaixo d’água.
Caminhei até o jardim lateral da casa, os saltos afundando levemente na grama molhada pelo orvalho da noite toscana. Precisava de ar. De silêncio. De distância. A dança com Aron tinha despertado algo que eu não estava preparada para sentir. Nostalgia, carinho... e a inevitável comparação com Salvattore, que estava cravado dentro de mim como uma promessa não dita. Mas não precisei procurá-lo. Ele me encontrou primeiro. — Rafaella. A voz dele soou baixa e firme, quase áspera. Virei devagar, já sabendo o que encontraria. Salvattore Bianchi. Ombros tensos, olhar em brasa, como se estivesse lutando contra o próprio corpo para não explodir. — O que foi? — perguntei, tentando soar casual, mas meu coração já denunciava minha inquietação. — Você se divertiu com ele? — Ele não sorriu. Não havia ironia. Apenas dor contida. — Aron é meu amigo de infância, Salvattore. Estudamos juntos por um tempo no Brasil. Eu nem sabia que era ele até a metade da dança. — Você sabia que ele era da máfia russa. Isso devia ser o bastante pra manter distância. — Eu não reconheci! Ele era só um garoto antes. Agora... — Agora é um homem — ele completou, a voz mais baixa. — E você ficou rindo, dançando, se deixando levar como se ele fosse o único homem ali. — E você queria o quê? Que eu saísse correndo? Que eu ignorasse alguém que fez parte da minha vida? — Eu queria que você entendesse o risco que ele representa! — ele estourou. — Não é só um menino bonito com lembranças da praia. É Lensky. É sangue frio. E está de olho em você como um predador. — Ele não é um predador — rebati, erguendo o queixo. — Pelo menos não comigo. Salvattore se aproximou em dois passos rápidos. Estava tão perto que podia sentir o calor do corpo dele contra o meu. Sua respiração descompassada, o perfume amadeirado misturado com tabaco. O olhar dele me perfurava. — Eu passei os últimos meses me segurando, Rafaella — sua voz era quase um sussurro. — Porque você é irmã do meu consigliere. Porque você é jovem. Porque esse mundo já te tirou tanto... que eu queria, pelo menos, te proteger disso. Mas agora... — ele passou a mão pelos cabelos, frustrado — agora eu vejo que outro pode chegar e roubar o que nem tive coragem de tocar. — Você acha que eu sou de alguém? — minha voz também saiu baixa, presa na garganta. — Que alguém pode me roubar como se eu fosse um objeto? Ele se calou. Mas o que veio depois foi ainda mais avassalador. — Eu nunca quis tocar em você como quem toma o que não lhe pertence. Eu só queria... merecer. E não sei se mereço. Seu olhar mergulhou no meu. Denso. Cheio de desejo, culpa, paixão e medo. Meu coração batia tão alto que mal ouvia o som da festa distante. As luzes douradas do jardim envolviam nossos corpos como num palco silencioso. O mundo parou. — Salvattore... — sussurrei, sem saber o que queria dizer. Mas ele entendeu. Seu rosto se aproximou do meu com uma lentidão torturante. Uma pausa curta, como se me desse tempo para recuar. Não recuei. E então ele me beijou. Não foi um beijo tímido. Foi o beijo de alguém que segurou o desejo por tempo demais. Suas mãos tocaram meu rosto com uma firmeza cuidadosa, e seus lábios tomaram os meus como se fossem a única coisa certa naquele mundo errado. Um beijo profundo, quente, desesperado. Meus dedos se enroscaram na gola do seu paletó, puxando-o para mais perto. Não havia mais dúvida, nem controle. Só nós dois, no meio da noite toscana, cercados por segredos e perigo, nos permitindo um momento de verdade. Quando ele se afastou, os olhos ainda presos aos meus, sua voz saiu rouca: — Me diz que ele nunca te beijou. — Nunca — respondi, sem hesitar. — E agora... ninguém mais vai conseguir. Ele fechou os olhos por um segundo, como se aquela frase fosse uma benção e uma sentença ao mesmo tempo. Um pacto silencioso. Mas sabíamos que a noite não acabaria ali. Nem os problemas. Agora que a chama tinha sido acesa, nada mais poderia ser como antes.