A festa havia retomado seu ritmo, mas não para mim. Meu coração ainda batia acelerado, dividido entre o calor da dança com Salvattore e a frieza que se instalou com a chegada de Aron Lensky.
Eu já tinha ouvido falar do herdeiro da máfia russa. Sabia que alguém da linhagem dos Lensky estaria presente na celebração, um aceno diplomático entre famílias. Mas não liguei o nome ao homem que acabava de me pedir uma dança.
E agora ele estava diante de mim.
— Posso roubar uma dança? — perguntou com um leve sorriso, os olhos claros fixos nos meus com uma intensidade desconcertante.
Hesitei. Sabia quem ele era. Sabia do poder e da crueldade que circulavam entre os sussurros sobre os Lensky. Mas aquele sorriso… tinha algo que mexia em mim de forma estranha. Familiar.
— Claro — aceitei, ainda tentando entender o que estava sentindo.
Ele segurou minha mão com gentileza e me conduziu à pista de dança. Quando seus dedos encostaram nos meus, senti a aspereza da pele — calos discretos, marcas de uma vida que não combinava com a aparência refinada. Algo nele era... contraditório.
— Você não se lembra de mim, não é? — perguntou enquanto nos movíamos suavemente ao som da música clássica italiana.
— Não... deveria?
Ele sorriu de canto, balançando a cabeça como quem já esperava aquilo.
— Brasil. Escola Santa Teresa. Litoral norte. Você com 13, eu com 15. Ficamos na mesma turma por um semestre, antes de eu desaparecer.
Meu corpo congelou por um segundo. Meus olhos buscaram os dele, e então tudo veio em ondas: a risada abafada no corredor, os desenhos nas bordas dos cadernos, o garoto reservado com sotaque carregado e olhos curiosos.
— Aron? — minha voz saiu quase sem ar. — O Aron que desenhava armas no caderno de matemática?
Ele riu — e naquele instante, o herdeiro frio da máfia russa desapareceu. Restou apenas o garoto que conheci.
— Eu mesmo. E você era a menina que lia Clarice Lispector escondida nas aulas de física.
— Você... sumiu do nada! Eu achei que tinha sido expulso — falei, ainda em choque.
— Meu pai me mandou de volta pra Rússia sem aviso. Mas antes disso... lembra do dia que a gente cabulou aula pra ir à praia?
— Espera. Você disse que "precisava respirar sal ou ia enlouquecer" — retruquei, rindo.
— Eu usei essa desculpa pra fugir da aula de geometria — ele admitiu. — Mas a verdade é que eu só queria passar a tarde com você.
Rimos juntos, como se o tempo não tivesse passado. Ele me girou lentamente, depois me puxou de volta para perto com um cuidado que me surpreendeu. O Aron que eu conheci era um garoto de poucas palavras. O homem diante de mim... tinha cicatrizes nos olhos. Mas também doçura.
— Você mudou — comentei, observando de perto. — Agora parece um homem feito. Tatuado... perigoso.
— E você cresceu. Mas ainda tem aquele olhar de quem tenta encontrar poesia até na violência.
Houve uma pausa. Longa o suficiente para eu sentir que o clima ao nosso redor havia mudado. E eu sabia por quê.
Salvattore.
Ele nos observava da lateral do salão, apoiado numa pilastra de pedra, taça na mão, maxilar travado. O ciúmes em seus olhos era tão denso quanto fumaça. Aron também notou.
— Seu cavaleiro siciliano não está feliz — disse em voz baixa, com um sorriso malicioso.
— Não é meu cavaleiro — respondi, sem muita convicção.
— Claro que não. Mas se ele pudesse, quebraria essa pista só pra tirar você daqui.
Tentei esconder a risada, mas Aron foi mais longe. Como se quisesse provocar, passou para um ritmo mais solto e puxou um samba improvisado.
— Você ainda sabe sambar ou virou uma italiana refinada demais? — provocou.
— Eu ainda sou brasileira, tá? — respondi, tentando acompanhar os passos desajeitados.
Caímos na gargalhada no meio da pista, rindo alto como se tivéssemos 13 e 15 anos de novo. Meus olhos lacrimejavam de tanto rir, e quando voltei a olhar para Salvattore, ele havia sumido da pilastra.
E eu soube: a noite ainda estava longe de acabar.