A noite estava fria, e a cidade parecia mais silenciosa do que o normal. Eu saí da biblioteca tarde, depois de ajudar a arrumar umas caixas de doações de roupas que havíamos recolhido. As ruas estavam molhadas pela chuva que havia caído no fim da tarde, refletindo os postes amarelados como se fossem rios de luz quebrada.
A rua era um reflexo do meu interior. Quebrado.
Puxei o casaco para mais perto do corpo e ajeitei os óculos. Caminhar sozinha pelas ruas desertas nunca me trouxe medo de verdade, porque havia algo dentro de mim que sempre me fez sentir mais forte do que qualquer humano, minha loba estava forte e com raiva, de mim, do nosso destino, das minhas decições. Mas, naquela noite, a sensação era diferente.
Algo ou alguém me seguia.
Os passos eram calculados, firmes demais para serem acidentais, quase roboticos. A cada esquina, eu olhava discretamente por cima do ombro e via sombras se moverem. Dois homens, talvez três. Altos, ombros largos, roupas escuras. Não eram moradores comuns.
Eram forasteiros, como eu.
Apertei o passo. Entrei por uma rua lateral, mas os passos atrás de mim se multiplicaram.
— Ei, garota — uma voz masculina chamou, rouca, carregada de malícia. — Está perdida, docinho?
Meu coração disparou. Ignorei, continuei andando.
Minha loba queria sair, mas não deixei.
Outro riu, baixo.
Virei a esquina e acelerei. Mas então senti. O cheiro. Não era apenas suor humano. Havia pólvora, ferro, sangue seco.
Caçadores.
Minha loba rugiu dentro de mim.
Eles sabem. Eles sentem. Eles querem nós duas;
Corri. O som das botas deles ecoou contra o asfalto molhado, cada vez mais perto. Um deles assobiou, e de repente ouvi o clique metálico de uma arma sendo engatilhada.
Entrei em um beco estreito, mas dei de cara com outro homem bloqueando a saída. Ele carregava uma besta, a ponta de prata brilhando sob a luz do poste.
— Achamos você, lobinha — disse ele, com um sorriso cruel.
Meus pulmões queimaram. O ar ficou pesado. O corpo inteiro tremeu, não de medo, mas da energia contida que ameaçava explodir. Minhas unhas começaram a arranhar a palma das mãos, mais longas do que deveriam. Minha visão ficou turva por um segundo, e os olhos arderam.
Deixe-me sair. A voz da loba ecoou, impaciente. Eu posso destruí-los.
— Não. — murmurei, cerrando os dentes. — Não aqui. Não agora.
Os homens se aproximaram em círculo. Um deles levantou a besta. Outro apontou uma faca comprida. A respiração deles estava acelerada, e ainda assim sorriram como se já fossem vencedores.
Meu corpo arqueou contra minha vontade. O som do tecido rasgando ecoou no beco quando minhas costas se curvaram. Um rosnado baixo escapou da minha garganta, assustando até a mim mesma.
Os homens recuaram um passo.
O calor percorreu minhas veias como fogo líquido. Minhas mãos tremiam, os dentes se alongavam sob a pele, e a luz da lua, ainda que coberta por nuvens, parecia chamar meu nome.
Eu estava a um fio de me revelar.