Era seu aniversário, mas nada naquela manhã fazia parecer que o dia teria algo de especial. A espuma do sabão escorria pelos dedos finos de Lyra enquanto ela esfregava o chão áspero da ala principal da alcateia, de joelhos, com os cabelos presos em um coque frouxo que não parava de se desfazer, fazendo os fios dos cabelos loiros escaparem do elástico que os prendiam. Ao seu lado, Petra bufava, com o rosto suado e as mangas da blusa arregaçadas até os cotovelos.— Você já percebeu que quanto mais a gente esfrega, mais esse chão parece sujo? — murmurou Petra, torcendo o pano no balde pela terceira vez.Lyra soltou um sorriso fraco, mas não respondeu. Estava concentrada em limpar uma mancha escura perto da escada de pedra. Precisava deixar tudo perfeito, assim poderiam ir para a festa durante a noite. O silêncio que pairava entre elas foi quebrado por risadas estridentes e passos de salto ecoando pelo corredor. As duas se entreolharam antes de se levantarem lentamente, como quem antecip
Momentos antesO ar estava pesado na floresta.As folhas dançavam em silêncio sob a brisa que anunciava o cair da noite, e os lobos da alcateia já se reuniam ao redor da clareira sagrada. A lua cheia começava a subir no céu, seu brilho prateado refletindo sobre as peles e olhos atentos. Tudo estava preparado, tudo sob o controle de Kael.O alfa observava tudo de cima, de um dos degraus de pedra que levavam ao altar da bênção. Seus olhos dourados percorriam os arredores com rigidez. Nenhuma vela fora esquecida, nenhuma fita fora mal amarrada. O baile da primavera estava perfeito. Como deveria ser.Era o primeiro baile da primavera que celebrava como alfa, seu pai havia lhe passado o título no ano anterior, no outono, e agora ele finalmente encontraria sua companheira, se a deusa da lua assim quisesse.— Está tudo como você pediu, Kael — disse um de seus soldados, curvando-se respeitosamente.— Como eu mandei, você quer dizer — respondeu ele, seco. — Pode ir. E tire aquele arranjo horrí
AVISO DE GATILHO: ABUSO SEXUAL E VIOLENCIA (Se não se sente confortável com esse tipo de conteúdo, pule este capítulo)Não havia mais esperança.O som da festa já era só um eco distante, ficando cada vez mais baixo a medida que Lyra era arrastada para o calabouço. Nunca tinha ido ao local porque iria? Era destinado aos piores criminosos… Agora ela estava sendo tratada como um desses na verdade, pior que eles pois sua punição era desumana, cruel, asquerosa. Qualquer criatura que tivesse um coração pulsante em seu peito sabia que aquilo era além de errado, que era uma abominação, mas aqueles homens pareciam não ter coração, ou consciência. Eram vis, maus, não se podia nem dizer que eram selvagens, pois a selvageria é guiada por instinto, e nenhuma criatura tem um instinto tão tenebroso como a vontade que guiava aqueles lobos. A luz das tochas projetava sombras monstruosas nas paredes do calabouço, e quando as portas de ferro se fecharam com um baque que reverberou em seus ossos, ela so
Estava esperando para morrer. O som de rosnados se aproximava rapidamente, como trovões rasgando a noite, e a omega estava decidida de que esperar seu fim era o melhor a se fazer.Mas já havia sofrido tanto…Será que não merecia nem uma morte pacifica?Ter seu coração e corpo quebrados já não era o suficiente? Lyra tentou erguer a cabeça, mas o peso de seu próprio corpo parecia esmagá-la contra o chão frio e sujo da floresta. Cada respiração era uma luta, cada movimento, uma tortura.Os lobos estavam tão perto…O terror se instalou em sua mente fazendo todo seu corpo vibrar quando percebeu que não queria morrer daquele jeito, então, sem pensar, apenas obedecendo ao instinto mais primitivo de sobrevivência, tentou se mover. Os braços trêmulos e ensanguentados cavaram a terra diante de si. As pernas, mortas pela dor, arrastavam-se inutilmente atrás do tronco magro e despido.— Só... mais um pouco... — sussurrou, quase inaudível, enquanto o sabor metálico do sangue invadia sua boca.O
Enquanto ali uma morte brutal parecia prestes a acontecer, mais ao fundo da caverna algo que mudaria tudo repousava num sono incubido de magia. Correntes grossas envolviam seus pulsos e tornozelos, gravadas com runas prateadas de contenção, cintilando com a mais pura magia, prendendo o imenso monstro com garras enormes e pelo negro. O tempo não passava naquele lugar, sua alma estava presa no abismo da própria mente, onde a luz não existia, onde o silêncio pesava como pedra e a única sensação era o vazio eterno.Mas então… algo rompeu o silêncio e a escuridão.Uma voz fraca, trêmula, que se o silêncio absoluto não existisse mal se poderia ouvir.— Por favor, que pelo menos seja… seja rápido…A súplica ecoou por todo o vazio.Aquela imensa criatura se mexeu pela primeira vez em séculos. Dentro de sua prisão, seus olhos se abriram, confusos, mas atentos, a forma humana do monstro guiou os olhos vermelhos pela escuridão em busca de qualquer passagem, qualquer luz, ao passo que o corpo mo
A única coisa que se ouvia era o silêncio pesado, cortado pela respiração quente e monstruosa daquela criatura, então ele se virou. Seus olhos vermelho-sangue faiscavam com pura fúria, ainda cheios do ódio e nojo que consumiu cada osso dos renegados que ousaram tocar o que não lhes pertencia.Lá estava ela.Jogada sobre as pedras frias da caverna, o corpo pequeno tremendo, envolto em hematomas, sujeira e sangue. Completamente nua, a pele clara marcada com arranhões, hematomas, cortes, o cabelo grudado no rosto, completamente sujo de sangue e lama. Mas o que o deixou mais furioso foi o cheiro, o cheiro de muitos machos sobre ela. O cheiro do que fizeram.Um rosnado grave escapou de sua garganta enquanto ele se aproximava, a cada passo, seu instinto exigia sangue, mas já não havia mais nada vivo por ali para sofrer sua fúria. Restava apenas a dor, vazio e vergonha.Transformou-se em homem sem pressa, sentindo as presas voltarem aos dentes humanos, o sangue escorrendo por seu torso nu,
Aquelas palavras caíram sobre ele como uma lâmina afiada. Por um instante, River ficou sem reação. Depois, aproximou-se um pouco mais, mas sem cruzar o limite do espaço que ela protegia com o corpo trêmulo.— Eu jamais tocaria em você da forma que aqueles porcos fizeram — disse com firmeza, e seus olhos faiscaram como brasas sob a luz da fogueira. — Nunca.Lyra o olhou com desconfiança, mas havia algo na sua voz que não combinava com os outros. Não havia luxúria, nem malícia, nem superioridade. Havia raiva, mas não contra ela, era como se ele estivesse furioso por ela.No entanto, algo no fundo de sua mente lhe disse que o alfa Kael também não parecia com os outros e mesmo assim ordenou que seus homens fizessem tudo o que fizeram.— Quem… Quem é você? — sussurrou com dificuldade, as mãos agarradas ao tecido que a cobria.— River, me chamo River — respondeu ele, abaixando-se lentamente até ficar sentado sobre os calcanhares, na mesma altura que ela. — E você? Qual seu nome?Houve uma p
O silêncio entre eles era denso como a neblina que começava a se erguer no fundo da caverna. Lyra continuava sentada, envolta no manto que ele lhe dera, com os olhos fixos nas brasas apagadas da fogueira. River, em silêncio, se movia com precisão e disciplina. Ajeitou as calças surradas e rasgadas que ele mal sabia como ainda estavam inteiras, recolhia as frutas restantes em um pano escuro e apagava a fogueira com terra fria, cobrindo tudo para que não restasse nenhum rastro. Era como se estivesse se preparando para desaparecer do mundo, e levá-la com ele.Quando terminou, voltou-se para ela.— Está na hora, precisamos partir.Lyra ergueu os olhos devagar, a expressão ainda desconfiada, e envolta numa exaustão que parecia pesar até seus ossos.— Não vou com você — respondeu com a voz firme, mesmo que um pouco rouca. — Eu nem te conheço.River deu um passo na direção dela, os olhos como gelo quebrando sob a luz cinzenta do amanhecer que se infiltrava pela entrada da caverna.— Se quiser