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Capítulo 6 - O Casamento em Sangue

Selene

A fortaleza inteira brilhava como se a própria lua a tivesse feito. Tecidos brancos pendiam dos arcos, flores prateadas desenhavam rios pelo corredor central, e o perfume doce de lavanda e gelo parecia lavar os medos que eu não admitia ter. 

Tália me vestiu com as mãos firmes de quem se recusa a chorar em datas felizes, o traje de noiva era um abraço de seda no meu corpo, leve e luminoso como a promessa de uma vida inteira.

— Você está… — ela procurou uma palavra que não parecesse pequena demais — radiante.

Sorri, e o sorriso devolveu a luz para os espelhos.

— Hoje tudo fica simples, Tália. Eu e ele. Sem corredores escuros, sem segredos.

Ela prendeu a última pérola no meu cabelo, devolveu-me o véu e o olhar. O olhar dizia outra coisa.

— Ash anda inquieta. — sussurrei — Desde ontem.

Respirei fundo. Dentro de mim, a loba se remexeu como água em panela no fogo. 

— “Ainda dá tempo de ouvir.” — ela arranhou, baixa, insistente.

— Hoje não, Ash… — respondi sem voz, com o pensamento — Hoje, me deixa ser feliz.

Do lado de fora, tambores começaram a marcação lenta do cortejo. Meu pai me esperava ao pé da escadaria, rígido no traje cerimonial, mas com os olhos molhados de vida. Ele ergueu a mão e eu a tomei, como quando eu era pequena e tinha medo do primeiro degrau.

— Minha filha. — disse, e a palavra rachou a casca do Rei Lobo — Que a lua abençoe seu caminho.

— Abençoa. — garanti — Eu a sinto.

Ele quis dizer mais, qualquer coisa entre “orgulho” e “não vá”, mas os anciãos se aproximaram, as portas do grande salão se abriram, e a música nos puxou como maré. Demos o primeiro passo.

A grande nave brilhava, cravejada de velas. Meu povo ocupava os bancos em fileiras de prata e carvão. Sorrisos, acenos, lágrimas. Eu sabia o nome de quase todos, o peso de seus sacrifícios, a textura de seus mimos, eram minha casa. Meu coração bateu feito louco no peito, era assombroso caber tanto amor em mim.

Kaleb me esperava no altar, negro e prata. Os olhos âmbar, sempre eles, me encontraram como se o resto do mundo perdesse a cor. O velho sacerdote ergueu as mãos e a música cessou na exata medida do meu suspiro.

— “Atenção.” — avisou Ash, afiada de repente. Eu estremeci. Kaleb viu. Sorriu. Um sorriso perfeito.

— Você é só minha. — ele sussurrou quando chegamos perto o bastante para que ninguém mais ouvisse.

— Sou. — respondi, contente com a leveza da decisão.

O sacerdote falou sobre ciclos e trigo, sobre lobos que se encontram na trilha por onde a lua caminha, sobre a bênção dos deuses derramada quando duas histórias se escolhem. 

Cada palavra caía na minha pele como água morna. Eu só via a boca de Kaleb, o corte no lábio que eu conhecia com os dedos, a cicatriz escondida sob a túnica, o desenho dos ombros. Eu só ouvia a voz dele.

— Aceita, Selene, filha de Eamon, herdeira do Luar, unir teu destino ao de Kaleb, para o que der e vier?

— Aceito. — respondi, e a palavra me atravessou como vento.

— Aceita, Kaleb, caminhar com Selene…

A resposta dele veio doce, firme. Meus dedos tremiam dentro dos dele. O mundo estava exatamente onde eu sonhei que estaria.

O sacerdote ergueu a taça de prata para o brinde do juramento. O véu deslizou mais um pouco sobre meu ombro e senti uma brisa arrepiar minha nuca, uma fresta de porta aberta, um vento frio vindo de algum lugar que eu não via.

Ash rosnou, agora claramente. 

— “Não é vento. É cheiro de ferro.”

Eu não tive tempo de virar.

As portas do salão explodiram num estrondo de tempestade. A madeira voou em estilhaços, a música morreu com um grito engasgado, e a corrente de ar que entrou trouxe a verdade: cheiro de ferro. Sangue.

Uma figura atravessou a fumaça de pó e noite. A primeira imagem que tive foi o brilho de olhos âmbar acesos demais, e um sorriso. Cruel. Familiar. Kaleb.

Não o Kaleb que segurava a minha mão.

O Kaleb que liderava, à porta, uma matilha vestida para a guerra.

— O que…? — minha voz falhou, pequeno pássaro esmagado por uma rocha — Kaleb?

O Kaleb junto a mim não soltou minha mão. Ao contrário, apertou. E riu, baixo, como quem finalmente chega em casa.

— Hora de acabar com as histórias, pequena loba.

Eu recuei um passo. O mundo, esse traidor, se inclinou. O altar se duplicou, um Kaleb parado ao meu lado, outro Kaleb avançando pelas portas com uma dúzia de lobos em armadura. O tempo perdeu a linha. Então o Kaleb ao meu lado largou meus dedos, deu um passo adiante e, diante do meu povo, inclinou a cabeça para o invasor.

— Comecem.

A matilha inimiga entrou com a fúria de marés negras.

Até o primeiro grito, ainda era possível acreditar em sonho ruim. Mas gritos têm jeito de realidade.

— Protejam a herdeira! — rugiu meu pai, sacando a espada.

Tudo aconteceu depressa e ao mesmo tempo, como tempestades. Aço contra aço. Velas tombando. As flores brancas tingindo-se de vermelho a cada passada. Homens caindo. Crianças chorando. Eu, imóvel, tentando encontrar um lugar para caber. Kaleb, o meu, caminhou até mim com passadas calmas. Pegou meu queixo com dedos gentis.

— Você… — eu tentei dizer “não”, “por quê”, “me abraça”. Saíram todas juntas, nenhuma inteira.

— Shh. — O âmbar ardeu como ouro derretido — Não desperdiça fôlego com perguntas que não mudam a resposta.

— Qual resposta?

— Vingança.

A palavra cortou o teto e pendurou ali como uma lâmina.

Atrás dele, o sangue começou a desenhar rios no corredor. Não eram flores tingidas, não, eram meus, nossos. Eu vi Eamon, meu pai, cortar dois homens como quem corta o mar para me abrir caminho, e vi um terceiro alcançá-lo por trás. 

Gritei, mas o grito ficou preso no véu, no altar, nas paredes. A lâmina entrou e o corpo do homem que me ensinou a segurar o arco dobrou como espiga. Corri. Uma mão me agarrou pelos braços, outra tapou minha boca.

— Calma. — disse Kaleb ao meu ouvido — Você vai ver tudo. É importante.

Ash golpeou o meu peito por dentro como fera enjaulada. 

— “Morde. Luta. Corre.”

Eu lutei. Lutei com a raiva, com o amor, com a falta de ar. Lutei contra a mão que me segurava e contra a certeza súbita de que a lua, essa velha senhora, riu de mim a vida toda.

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