Mundo ficciónIniciar sesiónSelene
Minha mãe encontrou meu olhar do outro lado do salão. Ela não chorava. Rainhas não choram enquanto o trono pega fogo. Ergueu o queixo, ergueu a lâmina, e por um instante voltou a ser a loba que venceu meu pai num torneio só para depois aceitá-lo por amor. Ela abriu caminho. A lâmina dela encontrou carne inimiga, e eu a vi linda, terrível, viva. Até que um dardo veio pelo alto como um inseto de ferro e acertou seu ombro. Ela cambaleou, ajoelhou. E então, porque deuses gostam de repetir tragédias, veio o segundo dardo, depois o terceiro. Minha mãe tombou. — NÃO! — meu grito saiu rasgado, e Ash uivou junto, uivo de lobo perdendo sua alcateia. Kaleb virou meu rosto com a força exata para obrigar meus olhos a ver. — Eu preciso que você aprenda. — disse, como quem dá aula de aritmética — Amor não muda o passado. Mas dor molda o futuro. — Você mentiu… — eu sibilei, a voz queimada — tudo foi mentira? Ele me estudou como se eu fosse um mapa. — Nada é só mentira ou só verdade. Eu precisei de você. Em todos os sentidos. — Todos os sentidos? — cuspi a frase como veneno queimando o meu ser. — Todos. — repetiu. E sorriu. Atrás dele, um dos seus, alto, tatuado, máscara de guerra, cortou a garganta de um dos anciãos. O som me dilacerou por dentro, não pelo sangue, mas por saber o nome, a história, o conselho que ele me deu quando eu tinha sete anos e queria fugir das aulas de etiqueta. O salão era uma fornalha e eu era um pedaço de madeira tentando não pegar fogo. — Deixa. — disse Kaleb, reflexo no meu terror — Já está no fim. O sacerdote, caído ao lado do altar, ainda respirava. Levantou a taça, num gesto de fé absurda, e sussurrou um pedido que ninguém ouviu. Um inimigo o silenciou com o calcanhar. — Por que, Kaleb? — perguntei, rouca — Por que eu? — Porque você é a filha do rei que me fez crescer nas sombras. — disse, tranquilo como quem descreve o clima — Porque seu sangue vale poderes que nenhum de nós carrega. Porque precisava que a fortaleza abrisse as portas para mim. E porque… — ele me fitou, e por um fôlego eu reconheci o homem do jardim — porque eu quis. O chão desapareceu e eu caí sem sair do lugar. O massacre não parou por causa do meu entendimento. Nada nunca espera o coração aprender. A matilha inimiga dominou cada corredor, cada varanda. As bandeiras brancas foram arrancadas ou tingidas até perderem a vontade. O som de casco, não, de botas, me ensinou que a guerra às vezes chega a pé. — Levem-na. — Kaleb ordenou, e duas mãos diferentes das dele me seguraram pelos braços — Eu disse que ela veria, não disse que ela tocaria. — Eu consigo andar. — rosnei, mas eles gostaram muito do teatro para me darem autonomia. Fui arrastada, não pela força, mas pelo crush da certeza, se eu soltasse, eu cairia, e se eu caísse, eu quebraria. Levaram-me pela nave principal. O branco do meu vestido ia ficando corado, e o corado virava carmim, e o carmim virava uma história que eu não queria decorar. Colegas de infância, guerreiros, criadas, rostos que me viram perder os dentes, ganhar a primeira cicatriz, roubar pão da cozinha, todos agora bagunçados numa colcha de retalhos vermelhos. Eu tropecei num corpo pequeno demais e todo o ar da vida saiu de mim de uma vez. — Chega. — implorei, para ninguém em particular — Chega. Kaleb abriu caminho à minha frente. Os seus obedeciam como se tivessem nascido para isso, talvez tivessem. Ele subiu duas escadas com a calma dos que já treinaram os pés para o próprio trono. Entendeu onde a luz batia melhor para que a cena ficasse inesquecível. No alto do salão, diante da janela que dava para o pátio, estava ela. Uma mulher de olhos escuros, vestida de negro e prata como ele, com um sorriso que parecia conhecer a história antes de mim. Ela desceu um degrau, e seus dedos tocaram os dele com intimidade antiga. — Foi… — eu engoli o ácido — por ela? — Foi por todos nós. — a mulher respondeu, antes que Kaleb pudesse fingir poesia — E sim. Por mim também. Ash rosnou tão alto dentro de mim que as minhas mãos tremeram. — “Essa é a verdade que você não quis ver. Não é você. Nunca foi você.” Kaleb virou-se para um de seus lobos. — Tragam o sacerdote. — pediu, polido como à mesa. — Ele morreu. — alguém informou. — Outro. Qualquer um serve, que saiba juntar palavras e coragem. Trouxeram um homem do meu povo, tremendo, vivo por um fio de circunstância, e o empurraram para o centro. Kaleb e a mulher se deram as mãos. O mundo inclinou ainda mais. — Kaleb. — ouvi minha voz longe — Não… Ele olhou para mim por sobre o ombro. Não havia ódio no rosto, só uma decisão. E atrás da decisão, um brilho que eu conhecia: satisfação. — Você foi… — disse, e cada sílaba cortou como dente de lobo — a isca perfeita. Eu quis cuspir nele, arranhar, morder a face que eu amei até agora. Meu corpo só soube tremer. A cerimônia improvisada começou no mesmo pedestal onde, minutos antes, o velho sacerdote abençoava meu juramento. O homem, apavorado, tentou emendar frases de união, e a mulher de negro riu baixinho, como se estivesse assistindo à peça que sempre foi dela. Kaleb não largou a mão dela. Eu, com os braços presos por dois soldados, assisti. Cada palavra soava como uma batida de porta. Meu peito esvaziou. — “Luta.” — suplicou Ash — “Agora.” Eu puxei. Mordi o pulso de um dos homens que me seguravam, o gosto de ferro me subindo à boca. Eles me contiveram com mais força, me jogaram de joelhos. O mundo ficou baixo. Só a lua ficou alta, no vitral, enorme, fria, falsamente testemunha. — Eu os declaro… — gaguejou o padre improvisado. — Não. — disse alguém, mas era só o eco de mim. E então Kaleb, meu noivo, meu algoz, virou o rosto e beijou a mulher de negro. Não foi um selinho, não foi uma formalidade. Foi um beijo de vitória, boca inteira, dentes, um sussurro de riso na pausa. E atrás deles, meu povo morria. Um zumbido tomou meus ouvidos. As cores perderam tinta. Senti o chão sair e voltar, as mãos me largarem, o vestido ceder. O corpo decidiu que eu não precisava estar acordada para continuar viva. Antes de o escuro me tomar, uma última imagem se gravou como ferro: Kaleb sorrindo em meio ao sangue, os olhos âmbar brilhando como se a lua fosse dele. Caí. O mundo apagou. E o casamento terminou em silêncio.






