Evelyn Passei o resto da manhã explorando cada canto daquela casa que parecia maior cada vez que eu virava uma esquina. As janelas deixavam entrar uma luz dourada, suave, e o silêncio só era interrompido pelo tique-taque insistente de algum relógio antigo. Eu gostava disso — do som do tempo me lembrando que ainda havia muito pela frente, embora eu não soubesse exatamente o quê.
A sra. Collins apareceu com um olhar que já dizia mais do que as palavras. Acabamos conversando na cozinha enquanto ela preparava algo que cheirava absurdamente bem. Falei sobre o café da manhã, e ela, gentil, tentou me fazer entender novamente o jeito de Dante — que, segundo ela, herdou cada pedacinho do rigor do pai. Arthur Harrington. O nome já soava pesado, quase como uma lenda dentro daquelas paredes. Disse que ele tinha regras para tudo: desde o horário do chá até a forma certa de dobrar o jornal.
— E Dante é igualzinho — ela completou, mexendo a colher de pau dentro da panela. — Mas veja, querida, às vezes, as regras servem pra dar um pouco de ordem ao caos que é a vida.
Pensei nisso por um tempo. Regras, pra mim, sempre tiveram gosto de controle. De gente decidindo como eu devia respirar. Mas o jeito como ela falou… parecia mais com alguém tentando manter o próprio mundo de pé, antes que tudo desabasse.
Depois disso, decidi andar pelo jardim. O vento frio da manhã batia contra o rosto e fazia o cabelo dançar desgovernado. O jardim era enorme — quase um labirinto verde com rosas escalando os arcos e árvores antigas que pareciam guardar segredos. Senti uma paz estranha ali, como se o lugar me observasse também.
Quando voltei, Dante estava entrando. Ele parecia recém-saído de algum daqueles dias que sugam o fôlego. Casaco escuro, expressão séria, a postura imponente de quem carrega o mundo nas costas. Entrou sem olhar pra mim, direto pra sra. Collins, e eu fiquei parada no corredor, meio deslocada.
— Talvez precise preparar o jantar de amanhã — disse ele, enquanto tirava o sobretudo. — Katherine pode vir. Ainda vou confirmar com ela depois.
O nome ficou martelando na minha cabeça. Katherine. A sra. Collins apenas assentiu, como quem já sabe demais. Ele agradeceu e subiu as escadas sem se virar.
Esperei alguns segundos antes de perguntar:
— Quem é Katherine?
A sra. Collins olhou pra mim com um meio sorriso, como quem pensa “lá vem”.
— É uma mulher... Os dois têm uma relação confusa. Não são exatamente namorados, mas também não são só amigos.
Não sei por quê, mas o estômago deu um nó. Nem fazia sentido me incomodar — e ainda assim, eu me incomodei. Afastei o pensamento antes que ele criasse raízes.
Quando o almoço foi servido, tentei quebrar o gelo.
— Vou tentar cumprir os horários da casa — falei, meio envergonhada.
Dante ergueu o olhar, lento, como quem mede as palavras antes de usá-las.
— Leve o tempo que precisar pra se adaptar. — A voz dele era calma, mas firme. — Quer conhecer a universidade?
— Já conheço — respondi. — Visitei antes de ser aceita, e depois que fui, voltei lá. Algumas meninas do internato também foram aceitas e vão estudar lá. Isso será... bom. Muito bom. Acho que não vou me sentir deslocada por lá.
— Tem alguma pendência com a matrícula? — ele perguntou, sempre objetivo.
— Não. Henry cuidou de tudo. Falta só as aulas começarem.
Ele assentiu, pensativo.
— E os materiais? Livros, uniforme, essas coisas?
— Ainda não comprei. Peguei a lista faz poucos dias.
— Posso deixá-la na cidade. Tenho uma reunião por perto, dá pra acompanhá-la.
— Não precisa. Não quero incomodá-lo — respondi, sincera. — Não deve ser algo difícil de fazer.
Ele pousou o olhar em mim de novo, direto, firme, quase analítico.
— Minha presença é um incômodo pra você?
Fiquei sem saber o que dizer.
— Claro que não. Só acho que o senhor… — hesitei. — Que você tem outras coisas mais importantes.
Dante manteve os olhos nos meus, e foi impossível não sentir um arrepio subir pela espinha.
— Me chame de Dante — disse, a voz mais baixa. — Nada de formalidades. E como devo chamá-la?
— As meninas do internato me chamavam de Evie. Acabei me acostumando.
— Evie, então — ele repetiu, e, pela primeira vez naquele dia, esboçou um meio sorriso.
O almoço correu melhor depois disso. Falamos pouco, mas o silêncio não foi desconfortável. Depois da sobremesa, ele atendeu uma ligação e se afastou, andando pela sala com o celular na mão. O tom da voz dele era firme, de quem está no comando, e mesmo assim… havia algo relaxado na forma como se movia. Era bonito. Irritantemente bonito.
Quando terminou a ligação, pegou o sobretudo, veio até mim e estendeu o cartão de crédito.
— Use pra comprar tudo o que precisar. Livros, roupas, uniforme, o que quiser.
— Não é necessário, Dante. Tenho o suficiente.
— É necessário, sim. — Ele colocou o cartão na minha mão, sem espaço pra discussão. — Você vai começar uma nova fase, Evie. Precisa estar preparada. Vou estar por perto. Se precisar de ajuda, me ligue.
— Eu não... — minha voz falhou, talvez por ainda tentar entender como funcionava aquele homem — Eu não tenho celular. No orfanato não era permitido. E eu nunca tive para quem ligar...
Dante olhou para mim, franzindo o cenho.
— Pois compre um hoje, — disse ele. — Este é o meu número.
Ele anotou seu contato no bloco da mesa de telefone e me entregou.
— Se precisar de algo, ligue para esse número. Vou pedir que o motorista a acompanhe.
— Mas, Dante...
Tentei argumentar, mas ele apenas saiu, deixando o perfume caro dele flutuar no ar por alguns segundos. Fiquei parada na sala, com o cartão entre os dedos, sentindo o peso simbólico daquilo.
E talvez o mais estranho fosse o silêncio que ficou depois que ele foi embora. Um silêncio que não era de solidão, mas de expectativa. Como se a casa inteira tivesse prendido a respiração, esperando o que viria a seguir.