Dante O céu parecia conspirar com o luto — cinzento, pesado, quase hostil. O vento cortava o ar como se quisesse arrancar da pele qualquer sensação que lembrasse calor. E ali estava eu, Dante Harrington, enterrando o homem que me ensinou tudo o que eu nunca quis aprender.
A terra estava úmida, o chão afundava sob os sapatos caros que ele me obrigou a usar desde criança. Ao redor, rostos conhecidos. Alguns sinceramente tristes, outros apenas cumprindo um papel social. Negociadores, velhos amigos, bajuladores de sempre. Todos vestidos de preto, como se a cor disfarçasse a hipocrisia. Meu pai era admirado, temido, respeitado — mas amado? Poucos poderiam dizer isso sem mentir.
Eu observava o caixão descer com uma calma que me soava quase ofensiva. As pessoas esperam que um filho chore. Que desabe, que demonstre dor. Mas a verdade é que, quando alguém morre aos poucos diante de você, todos os dias por anos, o funeral é apenas o ponto final de uma frase que já terminou há muito tempo.
Henry Moore, o advogado da família, aproximou-se. Sempre o mesmo tom polido, sempre a mesma formalidade.
— Dante… ele tinha orgulhoso de você.
Engoli seco. Engraçado como as pessoas sempre dizem isso, mesmo quando não sabem nada sobre o que realmente se passava entre duas pessoas.
— Não tenho tanta certeza disso, Henry. Meu pai nunca gostou de orgulho. Só de resultados.
Ele suspirou, olhou para mim como se buscasse algo no meu rosto — talvez arrependimento, emoção, qualquer coisa humana — mas não encontrou. E eu também não. A verdade é que eu não sabia mais o que sentir. O homem que estava sendo enterrado era o mesmo que me ensinou a não demonstrar fraqueza, a não confiar em ninguém, e a jamais pedir desculpas.
Ouvi o som da terra batendo no caixão. Seca. Pesada. Final. O cheiro do solo molhado se misturava ao perfume caro das flores, criando um contraste quase nauseante. Ao meu redor, murmúrios. Condolências que vinham como eco, todas iguais.
"— Ele foi um grande homem."
"— Seu pai era admirável."
"— Deve ser difícil, Dante."
E eu apenas acenava, cumprimentava, agradecia. Fazia o que sempre fiz: representava.
A cada rosto que se aproximava, eu me lembrava de uma lição que aprendi com ele —
“O nome Harrington é mais importante que qualquer sentimento.” — e era assim que eu funcionava desde então. Um homem sem vazamentos emocionais, sem espaço para o que não pudesse ser explicado ou quantificado.
Mas enquanto a cerimônia avançava, entre o som das orações e o farfalhar dos guarda-chuvas, senti algo estranho. Uma espécie de vazio pulsante, um buraco no peito que não era dor, mas ausência. Como se, ao partir, ele tivesse levado com ele o último fio que me ligava a algum tipo de propósito.
Aos poucos, as pessoas foram indo embora. Alguns me deram tapinhas nas costas, outros sorrisos de piedade. Fiquei sozinho diante do túmulo. O vento soprava forte, e o céu parecia prestes a desabar.
— Você conseguiu o que queria — murmurei. — Deixou o império para mim. E eu sou o homem que aprendi a ser com você. Solitário. Sua missão foi cumprida, pai.
A chuva começou a cair, primeiro leve, depois firme, lavando o mármore novo e o paletó escuro que grudava no corpo. E foi nesse instante que percebi que o luto não vem como uma onda. Ele chega como um silêncio. Um silêncio que ocupa cada canto de dentro da gente, e não vai embora quando o enterro termina.
Dei as costas para o túmulo. O motorista me esperava com o guarda-chuva aberto, mas eu dispensei. Precisava sentir a chuva — talvez a única coisa verdadeira naquele dia.
Enquanto caminhava de volta, pensei em tudo o que meu pai deixara para trás: empresas, propriedades, dinheiro. E também um peso, um legado de ferro. E agora, cabia a mim carregar tudo. O nome, o império, as maldições.
A mansão parecia ainda maior do que eu lembrava. Talvez porque agora ela estivesse vazia. Cada passo que eu dava ecoava pelos corredores, e o som da chuva do lado de fora misturava-se ao silêncio interno como se a casa respirasse comigo — lenta, pesada, cansada.
A porta se fechou atrás de mim com um estalo seco. Aquele som sempre me deu a impressão de que estava sendo trancado para dentro, nunca para fora. Soltei o paletó molhado, afrouxei a gravata e fiquei parado por alguns segundos no saguão, olhando para o retrato do meu pai pendurado na parede principal. Ele me encarava com aquele mesmo olhar severo de sempre, o olhar que parecia me julgar até do outro lado da vida.
Foi quando ouvi passos apressados vindo do corredor.
— Santo Deus, menino, você está encharcado. — A voz dela era uma mistura de bronca e ternura. E eu quase sorri.
— Está chovendo lá fora, sra. Collins. Não é nenhuma tragédia — respondi, tentando soar leve, mas a minha voz saiu rouca, arranhada.
Ela apareceu com uma toalha dobrada nos braços, os cabelos grisalhos presos num coque e seu unifrome de sempre. Sra. Collins me criou desde que minha mãe morreu, e nunca deixou de me tratar como o garoto que ela botava para dormir e ficava comgio quando eu acordava assustado com os pesadelos à noite.
— Tragédia é o que você vive chamando de vida, Dante. — Ela me estendeu a toalha e me olhou de cima a baixo. — Tire essa camisa, sente-se um pouco. Está pálido.
— Estou bem. — Menti, como sempre.
Ela balançou a cabeça, impaciente, mas com um olhar que só ela tinha — o tipo de olhar que atravessava minha armadura.
— Você não precisa ser de ferro o tempo todo, sabe? O senhor Arthur se foi, mas você ainda está aqui.
Engoli seco. A menção ao nome do meu pai me atingiu mais do que eu esperava. Eu me sentei no banco de madeira do saguão, e ela começou a secar meu cabelo como fazia quando eu era garoto. Aquilo me trouxe um tipo de lembrança que me deixava vulnerável de certa forma.
— Ele acreditava que era amaldiçoado — murmurei. — Que as pessoas não deviam ficar por perto por muito tempo, ou acabariam morrendo.
— E você acreditou nele? — perguntou ela, sem parar o movimento da toalha.
— Durante muito tempo, sim. Ainda acredito, às vezes.
Ela parou o gesto, colocou as mãos nos meus ombros e me fez olhar pra ela.
— Dante… as pessoas não morrem porque amam você. Morrem porque é o que acontece. Seu pai confundiu dor com destino. Não cometa o mesmo erro.
Desviei o olhar. Aquilo soava bonito, mas impossível. Cresci num ambiente em que amor era um recurso perigoso, que deixava as pessoas vulneráveis. Meu pai me ensinou a comandar antes de aprender a confiar, a fechar acordos antes de abrir o coração. E eu segui à risca.
Levantei-me e caminhei até a lareira da sala principal. As chamas já estavam acesas — provavelmente ordem dela. O cheiro de madeira queimando me trouxe um breve conforto. O lugar era o mesmo de sempre, mas agora tinha algo diferente: uma espécie de ausência viva.
— Ele deixou tudo para mim. — Falei baixo, encarando o fogo. — A empresa, as propriedades, o nome. Mas nada disso parece um presente. Parece uma sentença.
Sra. Collins suspirou, cruzando os braços.
— Seu pai acreditava que o mundo só respeita quem carrega o próprio fardo. E, de certo modo, ele não estava errado. Mas há um limite, Dante. Se você carregar tudo sozinho, uma hora pode quebrar.
Eu ri, um riso curto e sem humor.
— Ele dizia a mesma coisa, só que de outro jeito: “Quem confia, enfraquece.”
Ela me olhou com pena.
— E veja onde isso o levou. Sozinho, até o fim.
As palavras dela ficaram pairando no ar. Não havia o que responder. Meu pai foi o homem mais solitário que eu já conheci, e agora eu estava seguindo o mesmo roteiro sem nem perceber.
— O jantar está pronto. Fiz algo leve. Você precisa comer. — Ela mudou de assunto com a delicadeza de quem entende que certas dores não precisam ser cutucadas.
Assenti.
— Obrigado, sra. Collins.
Ela deu um tapinha no meu braço.
— Eu vou cuidar de tudo. Amanhã, Henry Moore virá para tratar do testamento. Ele pediu que você esteja descansado.
Testamento. Aquela palavra soou como uma pedra caindo num poço. Eu já sabia o que estava por vir, mas algo no tom dela me deixou em alerta.
— O testamento… ele deixou instruções específicas? — perguntei.
Ela hesitou por um segundo, o que já era resposta suficiente.
— Nada. Só pediu para cuidar de você, e o convencesse a descansar.
Fiquei olhando para ela, tentando decifrar o que não estava sendo dito. Sra. Collins desviou o olhar e recolheu as toalhas, saindo do cômodo.
Sozinho de novo, permaneci em frente à lareira. A luz das chamas dançava nos retratos da parede — meu pai jovem, ao lado da primeira esposa, minha mãe; depois, com a segunda, Vivian e uma criança no colo. Evelyn era filha dela.
O nome voltou à minha mente como um presságio. Eu lembrava vagamente de Evelyn. Desde que ela foi mandada para o internato, depois da morte de sua mãe, eu nunca mais a vi. Pensei o que seria dela agora com a partida do meu pai. E pelo que eu suspeitava, Evelyn já era quase adulta.
A mansão estalou com o vento lá fora, e eu me perguntei se algum dia aquele lugar voltaria a ser um lar. Ou se eu estava condenado a ser o último dos Harrington — o herdeiro do silêncio.