Mundo de ficçãoIniciar sessãoDante Saí de casa antes do sol nascer. O vento frio cortava o rosto, e por algum motivo, o silêncio da estrada parecia mais pesado que o da noite anterior — como se o mundo tivesse decidido me dar um minuto a mais pra pensar no que eu não queria pensar. O funeral tinha acabado, mas a sensação era a mesma: o vazio.
O escritório de Henry Moore era o mesmo de sempre, paredes cobertas de livros que pareciam nunca terem sido lidos, cheiro de papel envelhecido e café requentado. Ele me recebeu com aquele sorriso cordial que já me acompanhava desde os quinze anos, quando meu pai decidiu que eu precisava “entender o valor das coisas”. Cumprimentamos-nos com um aperto de mão firme, sem sentimentalismo. Ao lado dele estava o tio Richard — amigo de meu pai desde que os dois eram jovens. Cresci chamando-o de tio, e, de alguma forma, ele sempre foi a única figura que conseguia equilibrar o temperamento de Arthur Harrington. — Dante, você está mais parecido com ele do que imagina — disse Richard, me dando um tapinha no ombro. — Principalmente esse olhar aí, de quem dorme pouco e pensa demais. Revirei os olhos, meio de lado. — Ou talvez seja só o peso do dia que mal começou, tio. Henry pigarreou e se ajeitou na cadeira. — Seu pai preparou tudo. Deixou instruções detalhadas sobre o testamento e... algumas palavras que pediu que fossem lidas. Cruzei os braços, encostando na poltrona. — Ele sempre gostou de planejar até o próprio silêncio. — comentei, e era verdade. Henry abriu uma pasta grossa, as folhas tilintando como um lembrete de tudo o que Arthur Harrington sempre foi: metódico, inflexível, e absolutamente preparado até para morrer. — Arthur sabia dos problemas de saúde, mas nunca imaginou que seria tão rápido. Ele dizia que, se o destino fosse inevitável, ao menos ele o enfrentaria de terno passado e tudo no lugar. — Parece com ele. — murmurei, seco. Henry começou a leitura. O som da voz dele era um ruído distante, burocrático, até que uma frase me fez voltar à superfície. — Todos os bens, propriedades, empresas e investimentos serão herdados por Dante Harrington, único filho legítimo. Contudo... Meu maxilar travou no instante em que ouvi essa palavra. Sempre tem um ‘contudo’. Henry inspirou fundo, leu mais devagar. — Contudo, Dante deverá assumir a tutela de Evelyn Beaumont, filha de Eloise Beaumont, segunda esposa de Arthur, falecida há sete anos. Arthur comprometeu-se a protegê-la, conforme promessa feita à esposa em leito de morte. Se o herdeiro optar por não aceitar a tutela, parte significativa dos bens, cerca de setenta por cento, será revertida para fundos e doações em nome de Evelyn. Parei de respirar por um segundo. — Você está brincando. Henry me encarou, com aquele olhar que mistura compaixão e medo. — Arthur foi categórico. Queria garantir que a menina permanecesse sob os cuidados da família Harrington. — E por que diabos ele achou que eu seria capaz de cuidar de alguém? — Porque, talvez, ele acreditasse que ainda há algo em você que ele perdeu. Soltei uma risada curta, sem humor. — Meu pai não acreditava em nada além do próprio controle. Nem em mim. Richard pigarreou, tentando aliviar o clima. — Se confiou Evelyn a você, ele confiava, Dante. Ignorei. — E o pai dela? Não tem outro parente que possa assumir isso? Henry balançou a cabeça. — O pai morreu antes mesmo de Evelyn nascer. Ela tinha uma avó viva, mas faleceu há alguns anos. Existe uma tia, que vive em algum lugar na Inglaterra e... bem, Eloise foi muito clara ao dizer que nunca queria a filha perto dessa mulher. Cruzei as mãos, os nós dos dedos brancos. — Então ela é órfã. E meu pai decidiu que eu, o homem que ele moldou pra nunca se apegar, devia virar tutor de uma garota que mal conheço. — Ele acreditava que você era a única pessoa que poderia fazer isso. As palavras de Henry pairaram no ar como fumaça. Suspirei, cansado. — Ela ainda está naquele internato? — Sim. Mas está prestes a deixá-lo. Passará para a universidade em breve. Se aceitar ser o tutor, precisará se preparar para recebê-la. Recebê-la. A palavra soou pesada demais. Eu não sabia o que fazer com ela. Fiquei de pé, ajeitando o paletó. — Não sei, Henry. Acho que preciso pensar. Não fui sequer preparado para isso antes. Ele deveria ao menos ter me contado sobre essas... intenções. Henry assentiu, sem insistir. — Talvez ele não tinha tido tempo, Dante. Seu pai estava muito doente. Ele se cuidou ao máximo para ter tempo de preparar tudo para você. E para Evelyn. Ele pensou em vocês dois até o último minuto. — É exatamente isso que me preocupa. — Pense com calma. O testamento tem prazo para ser cumprido. Ele deu cinco dias para você decidir depois da leitura. — Que ótimo! — murmurei, irritado. Henry continou o restante da leitura no que se referia aos pequenos bens. Alguns foram destinados a alguns funcionários de longa data. A sra. Collins foi um deles. Não era algo que pudesse me surpreender. Eu que meu pai deixaria alguma coisa para as pessoas que cuidaram dele, das duas esposa e de mim. Ele não se esqueceria de absolutamente ninguém a quem fosse grato. Isso eu tinha que admitir com total honestidade. Depois da leitura complesta e das últimas recomendações, eu saí dali com a sensação de que tinha herdado mais do que uma fortuna. Herdara um fardo — e o nome Harrington pesava como chumbo. Do lado de fora, o ar estava frio, o tipo de frio que entra no peito e se recusa a sair. E, pela primeira vez em muito tempo, senti que talvez o legado do meu pai não fosse apenas o império que ele construiu. Talvez fosse a solidão que ele deixou pra mim — bem arrumada, assinada e carimbada em testamento. E, de alguma forma, Evelyn Beaumont fazia parte disso agora. O destino tem um senso de humor cruel.






