CAPÍTULO 4

Noite do ocorrido na catedral

A mansão estava silenciosa, exceto pelo crepitar baixo da lareira. Hérus sentava-se de frente ao fogo, em silêncio. Day o observava, discreta, ao lado de Nick, que girava lentamente o líquido rubro na taça com olhos entediados. Josy, mais afastada, mexia em um anel com impaciência, este clima um tanto mórbido se dava ao fato de estarem aguardando. A tempestade lá fora trazia raios e trovões intensos que mais pareciam rugir como uma criatura raivosa.

A porta se abriu com um estrondo que reverberou pelas paredes.

— Mas que calor de família... parece até que alguém morreu. — Lian entrou sem cerimônia, os passos lentos e provocativos.

Estava molhado, com o sobretudo escuro pingando no chão, e um sorriso enviesado nos lábios. Nick apertou a taça com força, o vidro rangeu sob seus dedos. Josy desviou o olhar, tensa, como se esperar o pior já fosse rotina.

Dayrath manteve-se imóvel, mas seus olhos brilharam por um instante — algo entre nervosismo e piedade. Hérus levantou-se de imediato.

— Lian. Que bom que veio.

— "Que bom que veio"... Você fala como um anfitrião que aguarda um convidado para chá, não como alguém que me condenou a uma eternidade miserável. Mas aprecio o esforço teatral.

— Eu precisava falar com você.

— E eu precisava de uma morte decente. Mas aparentemente, nenhum de nós vai conseguir o que quer.

Nick soltou um riso abafado. Josy bufou. Day apenas baixou o olhar.

— Por favor — insistiu Herus. — É sério.

— Tudo vindo de você é sério. Seriedade é sua especialidade... bem ao lado da autopiedade e da culpa disfarçada de honra.

— Onde estão os outros dois?

— Jace e Cléo foram à capital de Nhartis, e em alguns dias retornaram.

— Hum. Trouxe algo para a Cléo, mas deve ter molhado.

Lian caminhou até o centro da sala, retirando sobretudo e o jogando de lado em cima de uma poltrona. Lançou um olhar demorado a Day.

— Você continua com aquele brilho... triste nos olhos. Ainda o ama, ou só se acostumou com a prisão?

— Não é hora pra isso, Lian — disse ela em tom firme. Ele assentiu com falsa cortesia.

— Tem razão. Vamos ao ponto, então, irmão. Qual o novo sermão da noite?

— Eu quero que você entenda por que fiz o que fiz — disse Hérus, se aproximando um passo. Lian arqueou uma sobrancelha.

— Entender? Hérus, meu coração pulsa uma vez a cada cinco minutos, minha respiração é quase imperceptível, e meu estômago digere quantidades mínimas de comida por causa da lentidão funcional dos meus órgãos. Satisfação? Só com sangue. Eu sou um cadáver funcional. Não preciso entender. Preciso resistir à vontade de rasgar cada jugular que passa por mim. Mas, ei... obrigado por isso.

— Eu salvei você. Estava morrendo...

— Eu morri, Hérus. Aquele ritual que você fez sobre meu peito aberto foi só um jeito mais poético de me transformar em um fantoche. Uma oferenda de sangue e feitiço... não para me salvar, mas para me manter ao seu lado. Você não me ressuscitou. Você me arrastou pra esse teatro de sombras porque não queria encarar a eternidade sozinho.

— Eu fiz isso por amor.

— Amor? — Lian riu, amargo. — Não, Hérus. Amor deixa ir. Egoísmo arrasta. E você é mestre nessa arte.

Hérus fechou os olhos por um segundo.

— Eu sinto muito.

— Ah, isso eu sei. Você sente muito há 700 anos. Já virou sua religião pessoal, né? A penitência do salvador.

Ele o encarou de perto, olhos fixos como lâminas.

— Mas sabe qual é a parte mais divertida? Já que você me tirou da morte... então que seja. Que eu viva essa maldição com estilo. Se sou o monstro que você criou, vou ser um muito bom. Chega de contenção, chega de fingir que ainda tenho humanidade. Você roubou isso de mim — e agora vou usar o que sobrou para mostrar que você errou em cada maldito segundo.

— Lian... — Day começou, mas ele ergueu a mão.

— Você não. Nunca foi contra mim. Eu respeito isso.

Ele virou-se para a porta.

— Aonde vai? Não terminamos de conversar. — Hérus perguntou, tenso.

— Por hoje já chega.

Lian parou na soleira e olhou por cima do ombro, com um meio sorriso sombrio.

— Vou visitar a fé do povo. Talvez eles possam orar por mim. Ou por vocês. Vai depender de quem estiver sangrando primeiro.

E saiu.

Meia hora depois

Pela primeira vez em séculos, os sinos da catedral não tocaram. Era como se até a fé tivesse prendido a respiração. Hérus sentiu o vazio ecoar dentro do peito. Algo estava errado. Em um rompante, a figura dele se dissolveu como sombra e, num piscar, já pisava a esquina da cidade. Lá, a cena o atingiu como uma lâmina gelada. A catedral estava mergulhada no silêncio. O cheiro de sangue era nítido no ar — fresco, quente, recente. Alguns dos seus estavam ao redor, paralisados. Nenhum ousava se aproximar da entrada.

— O que houve aqui? — perguntou Hérus, mesmo sabendo a resposta. Então ouviu. Passos rápidos. Um coração humano em desespero.

A jovem surgiu da esquina que virava para as portas da catedral, os cabelos desgrenhados, a pele pálida, a respiração arfando como se o próprio ar a queimasse, o sangue escorria por seu pescoço descendo pelo tronco, o manto vermelho, sujo enquanto ela corria com uma mão pressionando o ferimento, como se pudesse estancar.

Dois vampiros tentavam detê-la, mas hesitaram. Não era medo... era confusão.

Hérus seguiu o olhar deles — e viu Lian. Ao fundo, entre sombras e silêncio, ele caminhava como um predador hipnotizado. Mas seu olhar... estava cravado nela. Apenas nela. Não moveu os olhos sequer por um segundo. Não para os outros, não para o irmão. Apenas para a garota.

Hérus se moveu com velocidade. Como fumaça, tomou os telhados e desceu no beco antes que a jovem pudesse vê-lo. Quando ela o atingiu, foi como se seu corpo já soubesse que ali terminava a fuga. O choque a lançou contra o chão como um fôlego final, desmaiando. O som dos passos de Lian ecoou pelas pedras propositalmente. Ele entrou no beco com a mesma expressão. Ainda não olhava para Hérus. Apenas para ela.

— Ela é... diferente — murmurou, como se falasse consigo mesmo. — Quente. Macia. Viva. O gosto... é quase poético. Hérus se colocou à frente, firme.

— Lian. Já basta.

Mas o outro apenas inclinou a cabeça, como se não ouvisse.

— Afaste-se, irmão. Não quero você. Quero ela. E vou tê-la de novo. Preciso. Ainda tem mais sangue nela... e eu gostei do gosto.

A voz era baixa, quase hipnótica. Um veneno envolto em seda. Hérus se abaixou e a pegou em seus braços. Os olhos fixos no irmão.

— O que já fez com os outros e com ela, não foi o suficiente? Vai mesmo cruzar essa linha?

Lian finalmente ergueu os olhos para ele. E por um breve segundo, o olhar era de outro tempo... um menino que Hérus conhecera. Mas só por um instante.

— Eu apenas provei o que você quis me negar: liberdade. E prazer. E ela... ela grita por dentro, Hérus. Eu ouvi. O medo, o coração, a fragilidade... é lindo. Você nunca entenderia.

Herus cerrou o maxilar, sua voz assumindo um tom antigo, autoritário, vindo da herança da linhagem de seu criador e mentor.

— Não vai tocá-la de novo. — Silêncio. — Eu vou cuidar dela agora. Você vai se manter afastado.

Lian o encarou por alguns segundos, longos e densos. E então... sorriu. Um sorriso frio, torto, sem alegria. Ele deu um passo atrás, os olhos ainda fixos nela.

— Vou ficar na cidade, Hérus. Não por você.

Desviou o olhar, mas antes de virar as costas, deixou a promessa no ar — uma ameaça e uma certeza.

— Ela vai lembrar de mim.

E sumiu na noite.

Hérus olhou para o corpo desacordado nos braços. O sangue escorria do pescoço da jovem, quente e vermelho, formando um rastro inquietante na pele clara. Os outros ao redor se mantinham imóveis, mas ele sentia. O cheiro os incomodava. O coração lento de cada um pulsava em alerta. Era o instinto falando mais alto — aquele que ele ensinara a controlar.

Mas agora, a presença dela ali era como uma fogueira em meio a um campo seco. Um deles se aproximou lentamente, a voz baixa, quase em respeito.

— Eu a conheço... de vista. Ela mora perto daqui. Já a vi passar pela rua algumas vezes. Hérus assentiu com um movimento leve, mantendo os olhos fixos nela por mais um momento. Depois, ergueu o olhar, firme.

— Tragam a Josy, diga que pedi pela presença dela, e para cuidar do ferimento dessa moça. Discretamente. Depois a levem para casa. Sem causar alarde.

O vampiro assentiu e se afastou para executar a ordem.

— Quero dois de vocês em vigia ao redor da casa dela. Sem interagir. Se virem o Lian se aproximando, me avisem imediatamente.

Dois se destacaram entre os demais, leais, prontos para obedecer. Hérus esperou que Josy chegasse ao local e a entregou. Só saindo do mesmo lugar quando a viu partir rapidamente com a moça em seus braços, e os outros dois logo atrás a seguindo. Só então, finalmente resolveu relaxar a tensão em seus próprios músculos, e começou a pensar no que viu.

Observou sua roupa, suja com um pouco do sangue da moça. O perfume de medo ainda impregnado. Algo estava errado. Lian nunca agia assim. Não era um caçador metódico... era uma tempestade. Ele surgia, destruía, matava — e desaparecia. Não deixava rastros vivos, não oferecia escapatória, não cultivava... obsessões. Mas agora... ele estava fixado. Focado. Faminto por algo além do sangue.

Olhou uma última vez para a direção em que foram, ainda não entendia o motivo, mas sabia que o irmão não a deixaria em paz. Ela não era apenas mais uma vítima. Não para ele. Teria que protegê-la — não por ela, ainda — mas por Lian. Por aquilo que ele tinha se tornado. E isso o preocupava.

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