Eu nunca imaginei que, um dia, estaria fugindo da minha própria vida. Que imagem, não? Clara Gonçalves, a mulher que parecia ter tudo, finalmente admitindo a verdade: eu não sei quem eu sou. Tudo desmoronou tão rápido que ainda parecia um sonho ruim, uma realidade que eu não queria encarar.
Sentei no pequeno café ao lado do aeroporto, uma xícara de café forte nas mãos e o telefone desligado à minha frente. Eu não queria ver mais nada, nem mensagens, nem desculpas, nem justificativas. Pedro… traidor. Eu sabia que o relacionamento estava em ruínas, mas vê-lo com outra mulher foi o golpe final. Meus olhos estavam fixos na espuma do café, mas a imagem dele, tão casual e descontraído com outra, ainda queimava na minha mente. Era isso que eu representava para ele? Uma companhia conveniente para as fotos, nada mais?
Eu precisava escapar, precisava de ar. Minhas mãos ainda tremiam quando mandei uma mensagem para Lia: *"Vou sumir. Não me procura por um mês."*
Ela me ligou imediatamente, claro. Conhecendo Lia, era óbvio que ela tentaria me convencer a voltar atrás. Mas dessa vez, minha decisão já estava tomada. Quando atendi o telefone, eu nem esperei ela começar.
"Lia, eu estou cansada. Eu não aguento mais essa vida... essa mentira."
Houve um momento de silêncio do outro lado. Pela primeira vez, eu sentia que ela entendia o quanto isso me custava. "Ok, Clara. Um mês. Mas volta logo, por favor."
Desliguei o telefone e, pela primeira vez, me permiti respirar fundo. Eu não sabia para onde ir, nem o que fazer com esse mês. Só sabia que precisava ir para algum lugar onde ninguém me conhecesse e onde eu pudesse ser eu mesma – seja lá o que isso significasse agora.
Eu me olhei no espelho do banheiro do aeroporto, uma Clara que eu quase não reconhecia. Sem maquiagem, o cabelo preso em um coque desajeitado e os olhos com as marcas de uma noite mal dormida. Era engraçado pensar em quantas versões de mim mesma eu construí para o mundo ver, e agora aqui estava eu, reduzida ao essencial.
Sentada no avião, olhei para fora, para as nuvens que passavam, tentando silenciar a torrente de pensamentos. Será que conseguiria ficar um mês longe de tudo? Da pressão, das redes, de Pedro… do Pedro que o mundo conhecia, perfeito para a câmera, mas frio e distante fora dela. E eu? Por tanto tempo, minha vida também foi calculada para parecer perfeita, como se tudo fosse sempre tranquilo e brilhante. Mas eu sabia que não era bem assim.
A vida com Pedro tinha se tornado uma sequência de posts combinados, de sorrisos forçados e “momentos espontâneos” que nunca foram reais. Agora que essa ilusão estava quebrada, a única coisa que restava era o silêncio. Era estranho perceber que eu sabia tudo sobre como parecer feliz, mas tão pouco sobre como realmente ser. Como viver sem postar, sem planejar o próximo clique perfeito?
Eu deixei o celular no fundo da mochila e decidi que o próximo mês seria só meu. Apenas eu e a realidade, sem o filtro de “vida ideal” que eu sempre precisei colocar. Fechei os olhos e respirei fundo, me preparando para o que vinha pela frente, sem ter ideia do que isso realmente significava.
Ao sair do pequeno aeroporto, fui recebida pelo calor do sol e pelo cheiro da maresia. Senti um alívio imediato ao pisar naquele solo. Mas, assim que olhei ao redor, percebi que a imagem idílica que tinha na cabeça estava bem longe da realidade.
"Ah, ok, cadê meu motorista?" murmurei, procurando alguém segurando uma plaquinha com meu nome. Nada. O lugar estava deserto, exceto por uma van antiga estacionada perto da entrada.
A porta da van se abriu com um rangido, e um homem mais velho, com o rosto sério e olhos atentos, me deu um aceno curto.
"É... Clara?" ele perguntou, a voz rouca e o sotaque carregado, enquanto me analisava rapidamente, sem nem um sorriso.
"Sim, sou eu," respondi, tentando soar animada. "Que lugar lindo, né? Aposto que você adora morar aqui."
Ele deu de ombros. "É um lugar como qualquer outro."
Tentei puxar mais conversa. "Deve ter muita história por aqui... O pessoal do lugar é bem tradicional, não é?"
"Uhum," foi tudo que ele disse, mantendo os olhos fixos na estrada.
Era estranho. Não estava acostumada a ser ignorada assim, a receber apenas respostas monossilábicas. Geralmente, as pessoas queriam conversar comigo, saber de onde eu vinha, pedir uma foto. Ali, eu era uma desconhecida qualquer.
De repente, o peso do meu isolamento caiu sobre mim. Então é isso que as pessoas normais sentem?
Tentei mais uma vez. "Esse mês vou ficar em uma casinha perto da praia, sabe onde fica?"
Dessa vez ele apenas resmungou. "Vou te deixar lá."
Era como se cada tentativa de contato se perdesse em uma barreira invisível. Soltei um suspiro baixo e olhei pela janela. Talvez, pensei, esse fosse o começo do que eu precisava: aprender a ser só mais uma pessoa, aprender a não ser o centro das atenções.
Eu me ajeitei no banco desconfortável da van enquanto o motorista continuava a estrada em silêncio, cada buraco da estrada sacudindo meus pensamentos junto com a lataria velha. Cada vez que eu tentava iniciar uma conversa, ele respondia com um resmungo ou um "sim" abafado. Senti a frustração crescendo dentro de mim, aquela sensação de ser invisível, quase irrelevante. Eu, que estava acostumada a ser o centro das atenções, agora não era nada mais que uma passageira anônima para aquele senhor.
Lancei um olhar disfarçado para ele, esperando qualquer sinal de simpatia. Será que ele não percebe que quero conversar? pensei, entre irritada e surpresa.
"A estrada até a praia é muito longa?" perguntei, numa última tentativa de romper o silêncio.
"Depende," ele respondeu, sem olhar para mim. "Pode demorar ou não."
Eu bufei baixinho, encostando a cabeça no vidro da janela. Para ele, eu não passava de uma turista comum, uma mulher qualquer com roupas de marca e uma expressão cansada. O que eu achava que teria ao vir pra cá? Uma recepção calorosa? Uma equipe pronta para me fazer perguntas sobre minha “vida de influenciadora”? Era irônico; durante tanto tempo, quis fugir do interesse das pessoas, e agora, diante dessa indiferença crua, sentia o vazio de ser ignorada.
Quando finalmente chegamos à pequena vila, ele parou a van abruptamente e saiu para abrir a porta. “É aqui,” disse, sem cerimônias, apontando para um chalé com paredes de madeira desgastadas e um telhado meio estranho ao fundo.
"Obrigada... er, o senhor poderia me ajudar com as malas?" perguntei, já me preparando para ouvir um “não” seco.
Ele deu uma olhada rápida para mim, balançou a cabeça e soltou uma gargalhada rouca. "Você é uma mulher forte, consegue sim."
Ele pegou minha mochila e a colocou no chão. Antes de se afastar, lançou um último olhar.
“Boa sorte,” disse, num tom meio debochado, como se soubesse que eu estava prestes a enfrentar algo muito maior do que eu imaginava.
Fiquei parada por um instante, as malas ao meu lado, vendo-o desaparecer com a van. Lá estava eu, finalmente sozinha, apenas com o som das ondas e o vento batendo nas árvores ao redor. Olhei para o chalé simples à minha frente e senti um aperto no peito. Era isso. Não havia filtros, não havia sorrisos preparados, não havia mais a ilusão de perfeição.
Eu empurrei a porta do chalé, e o ranger das dobradiças velhas foi a primeira coisa que ouvi. Meu coração afundou. Em vez do refúgio minimalista que eu imaginara – uma casa branca, limpa e simples, como as fotos que costumava salvar – encontrei um chalé rústico, com móveis de madeira pesada e desgastada, cortinas puídas e o cheiro levemente salgado que parecia enraizado nas paredes.
Respirei fundo, tentando me adaptar, mas nada ali parecia convidativo. Passei a mão por uma mesa com marcas de xícaras e notei que a poeira se acumulava pelos cantos da sala. Fui até o quarto e vi a cama de ferro enferrujado com uma colcha desbotada. É por isso que a estadia foi tão barata, pensei, tentando me consolar.
Precisando de um pouco de familiaridade, peguei o celular. Era como uma muleta, e eu sabia disso, mas... o que eu poderia fazer? Estava acostumada a ter o mundo ao alcance dos meus dedos. Liguei a tela e esperei. O sinal de internet, que o anúncio descrevia como “instável”, simplesmente não funcionava. Nada de mensagens, nada de atualizações, nada de validação em forma de curtidas ou comentários.
Senti um nó se formar no estômago. Era como se uma parte de mim tivesse sido amputada. Ali, sozinha naquela sala abafada, o pânico começou a tomar conta. E se eu não conseguir? E se ficar um mês inteiro sem falar com ninguém? A cada segundo, a ideia de desconexão parecia mais assustadora. Por tanto tempo, meu valor esteve vinculado à imagem que eu projetava online, e, sem ninguém para ver ou validar o que eu fazia, uma sensação incômoda de vazio tomou conta.
Coloquei o celular de lado e encarei a janela que dava para o mar, mas, pela primeira vez, o som das ondas lá fora não trouxe paz, só uma vulnerabilidade crua. Era como se o chalé tivesse despido todas as camadas que eu cuidadosamente construí ao longo dos anos.
Ali, eu era apenas Clara, e, de repente, isso parecia assustadoramente pouco.
O som das ondas batendo nas pedras se misturava com o silêncio denso dentro da casa. Fechei os olhos por um momento, tentando sentir alguma coisa — paz, calma, talvez uma sensação de liberdade. Mas não era nada disso. Era um desconforto crescente, uma inquietação que parecia pulsar de dentro para fora, me lembrando de tudo o que eu estava tentando esquecer. Eu me sentia… despida. Como se tudo o que eu achava que sabia sobre mim estivesse sendo testado naquele lugar.
Andei pelo chalé, explorando cada canto. Encontrei uma pequena estante com alguns livros empoeirados e uma cadeira de balanço perto da janela. A decoração era simples, com itens que pareciam ter estado ali por décadas, um contraste gritante com o estilo “perfeito” que eu exibia online. Era um lugar que tinha marcas, história — tudo o que minha vida digitalmente polida escondia.
Sentei na cadeira e me deixei embalar, olhando pela janela enquanto o sol começava a se pôr. Lá fora, o mundo continuava girando sem saber que eu estava fora dele. Era uma ideia assustadora, mas, ao mesmo tempo, libertadora. Pela primeira vez em muito tempo, percebi que ninguém esperava nada de mim. Não havia um público, não havia julgamentos.
A noite caiu, e a escuridão trouxe consigo um silêncio quase absoluto. Eu me encolhi debaixo da colcha de retalhos da cama, tentando afastar o medo da solidão. Talvez, pensei, a solidão não fosse o problema, mas sim o vazio que ela trazia à tona.
Antes de dormir, fiz um último esforço para usar o celular, como um reflexo desesperado de quem ainda queria escapar. Mas o sinal estava completamente morto. Soltei um suspiro longo e encarei o teto do chalé, com o coração ainda acelerado.
Um mês, pensei. Eu só precisava sobreviver a um mês.