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O sol já começava a se esconder por trás das árvores quando Marina voltou para a cidade. Os eventos da noite anterior ainda a assombravam, mas também... algo havia mudado dentro dela. Pela primeira vez em muito tempo, ela sentia que alguém a havia protegido de verdade — e não esperado nada em troca.
Kieran.
Ele a deixara em frente à pousada com um toque suave na mão. Disse que não a forçaria a vê-lo novamente, mas Marina sabia que ele estaria por perto. Sempre. Mesmo que em silêncio.
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Dois dias depois...
Naquela tarde, ela caminhava sozinha até a livraria. O vento trazia o cheiro de pinheiros e lenha. Tudo parecia... calmo demais.
Até o momento em que ela ouviu um som. Um timbre de voz que fez seu corpo inteiro congelar.
— Marina?
A voz era conhecida.
Não porque era boa.
Mas porque era o som de tudo o que ela passou a vida tentando esquecer.
Ela se virou devagar, o rosto perdendo o pouco de cor que havia recuperado.
Ricardo.
O homem que destruiu sua alma. Alto, bronzeado, com aquele maldito sorriso que antes a iludia, agora a enojava. Ele estava encostado em um carro alugado, como se não tivesse feito nada. Como se os anos de abuso tivessem sido meras discussões.
— Olha só... achei que tinha perdido você de vez.
Marina recuou, o coração disparado.
— O que você está fazendo aqui?
— Estava com saudades — ele respondeu, se aproximando. — Fiquei mal quando você sumiu. Isso não foi justo.
Ela tremeu. As mãos fechadas com força.
— Você... você me torturou. Me quebrou.
— Eu te amava, Marina. Você é quem era frágil demais. — Ele se aproximou ainda mais, o tom mudando. — E agora está aqui, nessa cidade de merda, com outro homem? Sério? Você acha que pode fugir de mim e cair nos braços de outro?
Marina sentiu um nó se formar no estômago.
— Sai daqui. Agora. — Ela tentou manter a voz firme.
— Você vai voltar comigo. Nem que eu tenha que te arrastar. — Ele sorriu. — E depois a gente conversa com calma. Como antes.
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Um rosnado ecoou atrás dele.
Ricardo se virou.
Kieran.
Ele caminhava lentamente, os olhos brilhando em dourado, a mandíbula trincada. Seus músculos estavam tensionados, e o cheiro de fúria que exalava dele era quase palpável.
Marina sentiu o ar mudar. Era como se a floresta tivesse parado para observá-los.
— Dê mais um passo — Kieran disse, a voz baixa, selvagem, gutural — e eu arranco sua garganta.
Ricardo riu.
— Então você é o cão de guarda dela agora? Um selvagem? Vai me matar aqui, na frente de todo mundo?
— Eu poderia. — Kieran se aproximou, a poucos centímetros dele. — Mas estou me controlando. E só por ela.
Kieran olhou para Marina. Os olhos dela estavam marejados, mas havia algo diferente.
Ela estava de pé. Não fugindo.
— Marina... — Kieran murmurou, sem desviar o olhar dela. — Me deixa lidar com ele?
Ela respirou fundo. E disse:
— Não. Eu mesma vou fazer isso.
Kieran paralisou.
Ela deu um passo à frente, os olhos fixos em Ricardo.
— Eu não sou mais a mesma. Você não manda mais em mim. Você não me toca. Nunca mais.
Ricardo tentou se aproximar.
— Você é minha!
Foi então que Marina o esbofeteou. Com força. O estalo ecoou no ar.
— Eu não sou de ninguém!
Ele tentou agarrá-la. E foi aí que Kieran explodiu.
Com um rugido animalesco, ele o pegou pelo colarinho e o jogou contra a parede de pedra do beco. O impacto rachou a alvenaria.
Ricardo caiu no chão, tossindo sangue.
— CHEGA! — gritou Marina. — Não quero que você o mate. Não vale a pena.
Kieran respirava com dificuldade, ainda em sua forma humana, mas o lobo estava prestes a assumir. Os olhos brilhavam, as garras estavam começando a se formar nas mãos.
Marina se aproximou e encostou a mão no peito dele.
— Olha pra mim. — A voz dela era baixa. — Eu tô aqui. Com você. Mas se você cruzar essa linha... vai se perder. E eu... eu não quero te perder.
Ele fechou os olhos.
E se acalmou.
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Minutos depois...
Ricardo foi levado pela polícia local. Não havia provas suficientes para prendê-lo, mas ele sabia que estava sendo observado. E Marina sabia: ele voltaria.
Mas agora ela não estava mais sozinha.
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Naquela noite, Marina foi até a cabana de Kieran, no alto de uma colina afastada.
Ele estava sentado à beira da varanda, de costas, sem camisa, o corpo marcado por arranhões e tensão.
Ela se aproximou e sentou ao lado dele.
Silêncio por um tempo.
— Você quase perdeu o controle hoje — ela disse.
— Sim.
— Mas parou... por mim.
Kieran a olhou com uma dor profunda nos olhos.
— Porque se eu te perdesse... eu também me perderia.
Ela respirou fundo.
— Eu ainda tenho medo. De tudo. Mas hoje, pela primeira vez, eu tive coragem. E foi por sua causa.
Ele estendeu a mão, mas não a tocou. Apenas deixou os dedos próximos.
— Então eu não preciso mais ser o lobo feroz. Só seu abrigo.
Ela sorriu, pequena. E dessa vez, foi ela quem tocou a mão dele.
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No coração da floresta, dois espíritos marcados pela dor se aproximavam lentamente, como animais feridos que aprenderam a confiar de novo.
Mas longe dali, Thorne caminhava pela trilha de sangue que Ricardo deixara para trás.
E ele sussurrou para a noite:
— Se o passado dela não a destruir... eu mesmo o farei.
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