Início / Lobisomem / O uivo da solidão / 🌕 Capítulo 2 — O Imprinting e o Rejeito
🌕 Capítulo 2 — O Imprinting e o Rejeito

O dia seguinte amanheceu com o céu encoberto. Em Drakemont, as manhãs já eram silenciosas por natureza, mas naquela, um silêncio ainda mais espesso repousava sobre as casas de pedra e madeira. A névoa não se dissipara totalmente, cobrindo a cidade como um véu úmido. A brisa soprava entre as vielas estreitas, carregando o cheiro de terra molhada, como se a floresta tivesse respirado durante a noite inteira e agora exalasse sua essência.

Marina acordou antes mesmo do sol nascer. Não fora o barulho, mas a inquietação em seu peito que a arrancara do sono. O corpo doía como se tivesse corrido léguas — e, de certa forma, havia corrido, ainda que apenas em pensamento.

“Era um lobo… não, era um homem. Ou os dois. Não pode ser real.”

Ela se sentou na cama dura da pousada, pressionando as mãos contra o rosto. As imagens da noite anterior giravam em sua mente, como um sonho febril do qual não conseguia escapar. O olhar dourado que a havia atravessado, a presença dele na floresta, a transformação impossível diante de seus olhos.

Mas o que a perturbava não era o impossível em si. Era o que aquilo despertava nela.

Desejo. Um desejo cru, perigoso. Confusão. E medo. Muito medo.

O coração dela sabia que havia algo mais profundo naquela conexão. Mas Marina não podia se permitir sentir. Não podia ceder.

Porque ceder significava abrir as portas da alma — e ela já sabia o que acontecia quando alguém invadia esse território frágil.

Do outro lado da floresta…

Kieran estava agachado diante da clareira onde havia visto Marina pela primeira vez. O cheiro dela ainda impregnava o ar, sutil, doce e humano. Para ele, aquele aroma era como uma música que não saía da cabeça, como um feitiço impossível de quebrar.

Ele fechou os olhos e aspirou fundo, tentando se controlar. Mas a fera dentro dele rugia de frustração. O lobo queria correr até ela, queria marcá-la, queria senti-la sob a pele.

Um farfalhar atrás dele o fez virar.

— Então é verdade? — A voz carregava sarcasmo e familiaridade.

Era Galen, seu amigo de longa data. Sempre desleixado, sempre com um sorriso debochado estampado no rosto. O contraste com Kieran era evidente: enquanto o futuro Alfa carregava a intensidade da liderança, Galen parecia viver sem peso, rindo até dos próprios erros.

— O grande e indomável Kieran finalmente sentiu o imprinting? — ele provocou, cruzando os braços.

Kieran levantou-se lentamente, os músculos retesados. O olhar dourado faiscou.

— Sim.

O sorriso de Galen sumiu por um instante.

— E... ela é humana?

A palavra ecoou como uma sentença proibida.

Kieran fechou os olhos, apenas por um segundo. Como se admiti-la em voz alta fosse um passo perigoso demais.

— É.

— Merda. — Galen assobiou, passando a mão pelos cabelos. — O Conselho não vai engolir essa. E você sabe que Lysandra vai tentar arrancar os olhos dela. Ou os seus.

O maxilar de Kieran se contraiu.

— Ela vai tentar.

No fundo, ele sabia que Lysandra não seria a única. A tradição da alcateia não perdoava desvios. O Alfa não poderia se unir a uma humana. Mas o imprinting não pedia permissão. Era lei mais antiga do que qualquer conselho.

De volta à cidade…

Enquanto isso, Marina tentava se convencer de que a vida podia voltar ao normal — ainda que soubesse que jamais voltaria.

Caminhava pelas ruas de paralelepípedo, observando as construções antigas. Drakemont parecia saída de outro século: janelas de madeira, telhados íngremes, portas que rangiam ao abrir. Tudo nela respirava história.

No fim da rua principal, encontrou uma pequena livraria de esquina. O letreiro estava gasto, mas o interior chamava com seu cheiro de poeira, café e páginas envelhecidas.

Lá dentro, conheceu Isla, a dona. Uma mulher de meia-idade com longos vestidos coloridos, cabelo escuro preso em um coque frouxo e um jeito etéreo, quase encantado.

— Está apenas olhando ou procurando algo em especial? — Isla perguntou com um sorriso suave.

Marina hesitou.

— Só... olhando.

Mas Isla era perceptiva. Viu nos olhos da jovem algo além da simples curiosidade. Viu cansaço. Viu fome de recomeço.

— Precisa de um emprego? — perguntou de repente.

Marina piscou, surpresa.

— Eu...?

— Sim. — Isla inclinou a cabeça. — Não precisa de experiência. Só de vontade de ficar entre livros.

Marina respirou fundo. Talvez aquilo fosse um sinal. Uma forma de se manter ocupada, de evitar enlouquecer pensando nos olhos dourados que ainda a perseguiam em sonhos.

— Preciso.

E assim, Marina passou a trabalhar na livraria. Os dias correram entre prateleiras, páginas amareladas e o aroma de café recém-passado. O silêncio ali era reconfortante, mas nem mesmo entre aquelas paredes ela conseguia se livrar da sensação de estar sendo observada.

Porque estava.

Na noite seguinte…

Quando fechou a livraria, o céu já estava escuro. O frio da noite cortava a pele, fazendo-a encolher-se no casaco. As ruas estavam quase desertas, exceto por uma figura encostada em uma cerca, à sombra de uma árvore.

Kieran.

Ele estava lá, como se a tivesse esperado desde sempre. Vestia roupas simples — calça escura, camisa preta justa — mas não havia como disfarçar. Seu corpo parecia esculpido por mãos antigas, e seus olhos... ainda ardiam com aquele brilho dourado.

Marina parou, o coração acelerado.

— Você está me seguindo?

— Estou cuidando de você. — A honestidade em sua voz era desconcertante.

Ela riu, amarga, sem humor.

— Já ouvi isso antes. Nunca acabou bem.

Kieran deu um passo à frente, mas se conteve quando percebeu a tensão em seus ombros.

— Eu sei que você não entende o que está acontecendo. — Sua voz era baixa, carregada de urgência. — Eu também não esperava por isso. Mas meu lobo te reconheceu. Você é minha companheira, Marina.

As palavras a atingiram como um soco.

— Você é louco.

— Talvez. — Ele não recuou. — Mas isso não muda o que é.

— Eu não te conheço. Você não sabe nada sobre mim. — A voz dela tremeu. — Não sou sua. Nem de ninguém.

Kieran assentiu devagar. A tristeza escureceu seus olhos dourados, mas não apagou a certeza.

— Eu não quero te forçar a nada. Só quero que fique viva. E segura. Você está em território de lobos. E eles não vão gostar disso.

— Disso o quê?

Ele a fitou com seriedade, cada palavra carregada de verdade.

— De mim querer você.

O ar escapou dos pulmões dela em um suspiro trêmulo. Uma parte de si queria correr dali. Outra queria se aproximar, queria tocá-lo. E isso era aterrorizante.

— Então pare de querer.

O silêncio se alongou entre eles. O vento soprou, trazendo o cheiro dele até ela: madeira queimada, terra molhada, algo primitivo.

Kieran não respondeu. Apenas ficou parado, observando-a enquanto ela se afastava com passos decididos, mas trêmulos.

Dentro dele, o lobo rugia em agonia.

“Ela tem medo… medo de mim. De ser tocada. De sentir.”

Enquanto isso, na Casa do Conselho…

O grande salão de pedra estava iluminado por tochas, cujas chamas projetavam sombras vivas sobre as paredes. Ali, reuniam-se os líderes da alcateia. Os rostos eram austeros, as expressões rígidas.

Entre eles estava Althaia, a anciã, cujos olhos sábios carregavam o peso de séculos. Ao lado dela, Darian, o atual Alfa e pai de Kieran, cuja presença dominava o espaço mesmo em silêncio.

E havia também Lysandra.

Com seus cabelos loiros trançados em perfeição e o corpo coberto por couro justo, ela parecia tanto guerreira quanto predadora. O olhar azedo ardia de fúria contida.

— Uma humana?! — sua voz ecoou pelo salão. — O futuro Alfa marcado por uma... aberração?

— Cuidado com suas palavras, Lysandra — advertiu Althaia, a voz firme como gelo.

Mas Lysandra não recuou.

— Ela não pertence a nós! Eu pertenço. Eu sou filha do Beta. Eu fui criada para estar ao lado de Kieran!

O silêncio pesou. O Alfa, Darian, observava em quietude, mas o maxilar rígido denunciava sua tensão.

Por fim, ele falou.

— Se ele a rejeitar... o vínculo morre?

Althaia fechou os olhos por um instante.

— Não. Um imprinting verdadeiro não morre. Mas se for negado por muito tempo... pode enlouquecer o lobo.

As palavras caíram como um peso. O Conselho murmurou entre si, inquieto.

Darian se levantou, a sombra dele projetando-se sobre a parede.

— Então precisamos resolver isso. Antes que nosso futuro Alfa se torne uma fera fora de controle.

E Lysandra sorriu. Não um sorriso de ternura, mas de guerra.

Naquela noite…

Marina sonhou.

Sonhou com olhos dourados que ardiam no escuro. Com um toque quente em sua pele, forte e delicado ao mesmo tempo. Sonhou com um lobo de pelagem negra deitado ao seu lado na floresta, o calor do corpo dele protegendo-a contra o frio.

Quando acordou, o corpo dela formigava como se tivesse realmente sido tocado. Como se aquele sonho fosse mais do que um produto de sua mente.

E do lado de fora, oculto pela escuridão, Kieran vigiava a janela de seu quarto, sentado em silêncio no alto de uma árvore.

Porque, mesmo rejeitado, um lobo nunca abandona sua companheira.

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