Não estava nos meus planos passar as férias em Fortaleza. A ideia era ir para o Pará, como sempre, para que as crianças ficassem com a mãe da Marília. Fiz essa promessa a ela, lá atrás, e nunca deixei de cumprir. Mas, dessa vez, tudo mudou de repente.
Meu irmão sofreu um atropelamento, e foi impossível negar o pedido das crianças. Elas estavam ansiosas, querendo vir vê-lo, e a verdade é que eu também não conseguiria ficar longe sabendo que ele precisava de mim. Então, mesmo com a mala já quase pronta para outra direção, troquei a rota. Marília… faz cinco anos que ela partiu, e ainda dói falar o nome dela. Lembro do sorriso sereno quando decidiu manter a gravidez da Marcelina, mesmo sabendo que o câncer avançava. "Ela precisa nascer, Pablo. Depois a gente vê o resto", disse, com aquela calma que eu nunca consegui entender. Eu vi o "resto" de perto. Vi a vida dela se apagando na mesma madrugada em que segurei nossa filha pela primeira vez nos braços. Foi a noite mais feliz e mais dolorosa da minha vida. Desde então, carrego essa promessa: as crianças sempre teriam o colo da avó materna nas férias, como se, de alguma forma, fosse um jeito de manter Marília perto delas. Mas agora, com Pedro de perna engessada, sem poder cuidar direito nem dele mesmo, percebi que também era hora de mostrar às crianças que família é isso: estar onde mais se precisa. Pedro tentou disfarçar quando nos viu chegando, com aquele jeito brincalhão de sempre, mas o olhar dele entregava a dor. Os meninos correram para o tio, e Marcelina, tímida, se agarrou à minha perna, observando de longe. — Não precisava largar tudo por minha causa, mano — ele disse, meio sem graça. — Cala a boca, Pedro. Família não se larga. E, pela primeira vez em muito tempo, senti que talvez essa viagem inesperada pudesse ser mais do que um desvio de rota. Talvez fosse um presente — um bônus inesperado da vida. O meu irmão não parava de falar na Vitória a moça que o atropelou primeiro eu achei que era loucura até notar que meu irmão estava apaixonado e era bom ver isso ele já sofreu muito por mulheres interesseiras só pensavam o dinheiro da nossa família e essa tal de Vitória Acho que nem sabe de que família somos. O meu irmão não parava de falar na Vitória — a moça que o atropelou. Primeiro, achei que era loucura. Pedro sempre teve esse jeito de se empolgar fácil, de achar graça até nas tragédias. Mas logo percebi que não era brincadeira. Havia algo diferente no jeito como os olhos dele brilhavam quando dizia o nome dela, como se o acidente tivesse sido só o pretexto para uma nova história começar. Confesso que fiquei desconfiado no início. Meu irmão já tinha sofrido demais nas mãos de mulheres que só viam nele um sobrenome e uma conta bancária. Conheci de perto as decepções que o deixaram com aquele ar de desconfiança escondido atrás do sorriso. Mas com essa tal de Vitória parecia ser diferente. Pelo que entendi, ela nem sequer faz ideia de quem somos ou da família de onde viemos. E, de certa forma, isso me deu um alívio que não sei explicar. Ver Pedro assim, apaixonado de novo, me trouxe uma sensação estranha. Uma mistura de medo e esperança. Medo de vê-lo cair outra vez… e esperança de que, dessa vez, seja real. Porque se tem alguém que merece ser feliz, é ele. — A mãe da Vitória preparou um passeio em família e ela me chamou para um parque aquático — E você vai mesmo com a perna assim para não fazer desfeita a futura sogra? — Sim, e a família dela é tão diferente da nossa eles gostam de estar juntos, os pais são presentes e loucos pelos netos. Pedro falava com uma empolgação que me deixava quase sem palavras. Eu conhecia bem meu irmão — conhecia suas dores, suas marcas, e também a carência que ele sempre tentou disfarçar com piadas. Talvez por isso a descrição daquela família tivesse tanto impacto sobre ele. — Eles são todos muito próximos, Pablo… Você precisava ver. A mesa cheia, todo mundo rindo, disputando quem ia cuidar dos netos. Parece outra vida, outra realidade. Fiquei em silêncio, mas por dentro um turbilhão se abriu. Crescemos sem nada disso. Quando eu tinha dezesseis e ele apenas dez, nossos pais se separaram. Nenhum dos dois quis ficar conosco — diziam que precisavam focar no trabalho. No fim, acabamos com o nosso pai, mas era como se estivéssemos sozinhos. Ele só pensava em negócios, nunca estava em casa de verdade. Aos dezoito, quando fui para a faculdade, não pensei duas vezes: levei Pedro comigo. Desde então fomos nós dois contra o mundo. Quando Marília morreu, ele foi meu braço direito. Assumiu as crianças comigo, cuidou delas como um segundo pai. Talvez por isso eu entenda o brilho nos olhos dele agora. O que a gente sempre buscou — um lar de verdade, onde amor não fosse obrigação, mas escolha — ele parecia ter encontrado no meio daquela confusão chamada Vitória. Suspirei fundo e bati de leve no ombro dele. — Então aproveita, Pedro. Se essa moça e essa família te fazem sentir em casa, não importa como tudo começou… importa para onde vai te levar. Ele sorriu de um jeito que eu não via desde moleque. Um sorriso que dizia mais que mil palavras: a esperança estava voltando. — Então aproveita, Pedro. Se essa moça e essa família te fazem sentir em casa, não importa como tudo começou… importa para onde vai te levar. Ele sorriu, e por um instante voltou a ser aquele garoto de dez anos que eu levei pela mão quando saímos da casa do nosso pai. Um sorriso limpo, sem máscara, cheio de esperança. — E é por isso, mano… que eu preciso de você. — Ele me encarou, sério, como raramente fazia. — Quero que você vá também, com o Paulo e a Marcelina. Franzi a testa. — Como assim, Pedro? É um passeio de família, não da gente. — Mas agora é. — Ele riu, sem graça, coçando a cabeça. — Vitória me convidou, e a mãe dela organizou tudo. Só que… Pablo, você sabe como eu sou. Desastrado, piadista demais, e agora ainda por cima mancando com essa perna engessada. Eu preciso que você vá, me ajude a não fazer besteira. — Você tem certeza disso? — Mais do que nunca. — O olhar dele ficou sério de novo. — Essa família é importante para ela. A dona Isabel… ela parece aquelas matriarcas de novela, sabe? O tipo que testa todo mundo que chega perto. Eu quero que eles gostem de mim, que vejam que eu não tô brincando. E você sempre foi melhor em lidar com gente, em ser educado, em ter paciência. Ri de canto. — Paciência? Não sei se meus filhos concordam com isso. Nesse momento, Paulo entrou correndo na sala, com uma toalha amarrada no pescoço como se fosse uma capa de super-herói. Marcelina vinha logo atrás, tentando alcançá-lo, a boneca quase caindo dos braços. Pedro apontou para eles com um sorriso doce. — É por eles também, Pablo. Eles merecem ver o que é uma família de verdade, merecem sentir isso. A gente nunca teve… mas eles podem ter. Fiquei em silêncio por alguns segundos. A imagem de Marília me veio à mente, com aquele olhar sereno que parecia prever tudo. Talvez ela sorrisse, se pudesse ver esse momento. — Está bem, Pedro. — suspirei. — Vamos com você. Mas não espere que eu sorria para tudo. Ele deu uma gargalhada, mas logo ficou sério de novo. — Só te peço uma coisa: seja gentil, mano. Faça o que a dona Isabel pedir, mesmo que pareça bobeira. Para a Vitória, isso vai significar o mundo. Olhei para ele, lembrando de todas as vezes que Pedro tinha segurado minha barra, quando o peso era maior do que eu podia carregar. Talvez estivesse na hora de retribuir. — Tá certo. Se é importante para você, é importante para mim também. Pedro sorriu, e nesse sorriso havia algo novo: não era só esperança, era gratidão. As crianças estavam muito animadas com o parceiro. O sol de Fortaleza parecia ainda mais forte quando chegamos ao Beach Park. Só de ouvir o barulho dos toboáguas e ver a multidão se divertindo, Paulo e Marcelina já dispararam em gritos de alegria. — Pai, olha aquele escorregador gigante! — Paulo apontava, os olhos arregalados como se estivesse diante de um castelo mágico. — Eu quero ir na piscina de ondas! — Marcelina emendou, pulando no mesmo lugar. Dona Isabel, sempre firme no comando, ergueu as mãos e logo organizou o grupo, como quem já estava acostumada a conduzir uma tropa. — Vamos às duplas, senão vira bagunça. Pedro, você fica com a Vitória. As crianças… vão com os primos. — Ela fez uma pausa, olhando para mim como se já tivesse um plano pronto. — E Pablo… você acompanha a Natália. Natália se aproximou, tirando os óculos escuros para me cumprimentar. O sorriso dela era tão natural que quase ofuscava o sol. — Prazer, Pablo. Parece que a gente vai ser parceiros de parque hoje. — Ela disse rindo, estendendo a mão. — Parece que sim. — Apertei a mão dela, reparando sem querer na marca clara de uma aliança que ainda resistia no dedo anelar. Seguimos juntos e fomos tomar café, os meus filhos já estavam com as outras crianças da família como se fossem parte da bagunça, e eu fiquei com um certo medo o meu filho Paulo é muito agitado porém a Flôr e s Júlia pareciam da conta do recado dos três e vi que até a Natália se acalmou o filho dela tem quase o mesmo tamanho do meu e já se deram bem de cara então sabia que não precisava me preocupar dele implicar com os meninos. Meus filhos não tem primos, a Marília era filha única depois da morte dela, meus sogros adotaram dois adolescentes, o Joandeson hoje tem 20 anos e a Ingrid 18 anos. Priscila e Liam ficaram tomando conta da bebezinha, que acabara de acordar, e logo se distraíram com ela. E foram embora. Pedro, feliz da vida, já saiu ao lado de Vitória, mesmo de perna engessada, disposto a encarar o parque. E assim, sem planejar, fiquei sozinho com Natália. Ela não parecia nem um pouco preocupada com a divisão. Pelo contrário, parecia achar graça em tudo. Caminhava ao meu lado rindo do nada, comentando cada detalhe, como se qualquer coisa fosse motivo de alegria. O barulho das águas, a música alta, até um grupo de turistas se atrapalhando com as boias virava piada para ela. O que mais me chamou atenção foi esse jeito leve. Aquela risada fácil, limpa, que lembrava tanto a da Marília. Marília também era assim, espontânea, cheia de vida. Se estivesse ali, talvez seria como Natália: oito da manhã, Margarita na mão, aproveitando as babás de graça e se permitindo relaxar sem culpa. Por um instante, fiquei apenas observando Natália rir, e senti algo estranho. Não era comparação, nem dor. Era quase um consolo, como se a vida, em sua ironia, estivesse me mostrando que ainda era possível sorrir junto de alguém de novo. — Eu sou uma mãe muito chata ou este toboágua é realmente muito alto? — Natália falou, com a testa franzida, observando a fila em que os meninos estavam com as tias de consideração. — Alto ele é mesmo — respondi, rindo de leve. — Mas olha, se a Júlia e a Flor estão lá com eles, pode ficar tranquila. Elas não iam deixar subir se fosse perigoso. Natália soltou uma risada curta, meio nervosa, mas logo voltou a brincar: — É, mas coração de mãe não entende de física. A gente sempre imagina o pior. — Eu sei bem como é isso. — Minha voz saiu mais baixa do que eu esperava. — Depois que a Marília… — pausei, engolindo o nó na garganta. — Bom, eu sempre fiquei com medo de errar com eles. Sempre achei que se alguma coisa acontecesse, a culpa seria minha. Ela virou o rosto na minha direção, e os olhos dela brilharam de um jeito sereno, diferente da risada leve de antes. — Pablo, não existe pai perfeito. Mas existe pai presente. E isso você claramente é. Fiquei sem resposta por alguns segundos. A naturalidade com que ela disse aquilo mexeu comigo mais do que eu queria admitir. Natália não parecia estar tentando me consolar — era só a verdade na boca de alguém que entendia do assunto. — E você? — perguntei, querendo quebrar o silêncio. — É sempre essa mãe preocupada, ou tem dias que se permite subir no toboágua também? Ela gargalhou alto, atraindo olhares de quem passava. — Eu? Se me deixar, eu desço em todos. E ainda aposto corrida com eles! — respondeu, apontando para os meninos. — Mas aí lembro que tenho que dar o exemplo, fingir responsabilidade… — fez aspas no ar, rindo outra vez. — No fundo, eu sou só uma criança grande. Eu não consegui evitar o sorriso. O jeito dela de rir da própria seriedade, de transformar preocupação em piada, me desmontava. Era como ver a vida com outras cores. Natália então esticou a mão para mim, como se estivesse prestes a me desafiar: — E você, Pablo? Vai ter coragem de descer comigo ou vai querer ficar só na piscina das ondas? Natália me desafiou com aquele sorriso aberto e estendeu a mão, como se estivesse prestes a me arrastar direto para o toboágua. Eu ri, tentando disfarçar a hesitação. — Calma aí, primeiro a gente precisa se trocar. — Apontei para a mochila que trazia pendurada no ombro. — Não sei você, mas eu não trouxe roupa de mergulho por baixo da camiseta. — Ah, verdade! — Ela riu, batendo na própria testa, teatral. — Eu vim pronta, mas acho que a gente merece ao menos uns cinco minutos para se ajeitar. Seguimos para os vestiários do parque, cada um para um lado. No vestiário, troquei a calça por uma bermuda de banho simples. Passei a mão pelos cabelos ainda úmidos do calor e me olhei no espelho. Não era um cara vaidoso, nunca fui. Mas naquele instante, sem querer, pensei em como a Natália me veria. Engraçado… fazia anos que essa preocupação não me visitava. Quando saí, ela já estava me esperando do lado de fora. E foi inevitável. Natália usava um biquíni azul claro, simples, mas que nela ganhava outra proporção. O corpo era firme, delineado, não pela obsessão da academia, mas pela naturalidade. Tinha curvas bem marcadas, a pele dourada pelo sol, e um jeito quase despretensioso de se mostrar confortável ali. Os cabelos estavam presos de qualquer jeito, e mesmo assim parecia ter acabado de sair de uma capa de revista. Ela sorriu quando me viu, aquele sorriso aberto que parecia iluminar tudo em volta. E eu me vi preso por um instante, como se tivesse esquecido de respirar. Não era só o corpo bonito — e era bonito, impossível negar. Era a maneira como Natália ocupava o espaço. Havia uma confiança leve nela, uma liberdade que chamava atenção sem esforço. Eu não lembrava a última vez que tinha reparado tanto em alguém. — E aí, guerreiro? — ela brincou, ajeitando os óculos escuros no topo da cabeça. — Tá pronto pro desafio? Tentei rir, mas minha voz saiu meio rouca. — Acho que sim. Só espero não passar vergonha. — Vergonha? — Ela riu alto, atraindo olhares de quem passava. — Pablo, a gente tá num parque aquático. A única vergonha aqui é não se divertir. Eu a observei mais um instante, tentando disfarçar, mas era inútil. A naturalidade dela me desmontava. Era bonita como poucas mulheres que eu já tinha conhecido, mas era o jeito de rir, de falar, de andar, que tornava tudo ainda mais difícil de ignorar. E, pela primeira vez em muito tempo, me peguei pensando em algo que não fosse lembrança ou obrigação. ©©©©©©©©©© Continua...