Mundo de ficçãoIniciar sessãoNa manhã seguinte, o mundo parecia caminhar normalmente, mas dentro de Havenna, nada estava estável. Era como se o corpo dela ainda estivesse no mirante, ainda encostado ao dele, ainda vibrando na tensão do que ficou por dizer, do que quase aconteceu, do que empurrou os dois perigosamente para a mesma direção desde a adolescência.
Havenna levou a xícara aos lábios, com um gesto sereno, como se pudesse silenciar o tumulto interno que insistia em pulsar.
O vento forte vindo do mar fazia as janelas da casa alugada baterem com um lamento leve. Havenna se apoiou na pia, olhando a espuma branca das ondas ao longe, e respirou fundo, como se tentasse empurrar o coração de volta ao lugar, mas ele se recusava a obedecer.
Uma mensagem vibrava no celular desde antes de ela acordar. Dele.
Adrian: “Precisamos conversar.”
Sem hora, nem explicação. Apenas a urgência crua que carregava o nome dele.
Ela não respondeu. Não porque não quisesse, mas porque a mão tremia só de pensar.
***
No escritório alugado pela Casamar, os corredores estavam mais agitados por causa das fases finais da documentação da revitalização. Reuniões, plantas abertas em mesas, relatórios, engenheiros entrando e saindo. Uma distração perfeita, se o coração dela não batesse descompassado a cada lembrança da noite anterior.
Durante uma reunião com a equipe da prefeitura, ela tentava explicar o fluxo das passarelas ecológicas quando, de repente, ouviu a porta bater atrás de alguém que entrava.
Ela não precisou levantar o rosto para saber, o ar mudou e seu corpo soube antes da razão.
Adrian.
Ele cumprimentou a equipe, educado, profissional. Mas quando os olhos dele encontraram os dela, a espinha de Havenna formigou, um reconhecimento silencioso, denso, inescapável.
— Podemos conversar depois? — ele perguntou baixo, apenas para ela, inclinando-se discretamente.
A sala inteira continuou discutindo o projeto, alheia a tudo.
Ela apenas assentiu, não confiava na própria voz.
Após a reunião, eles foram até a praia, cada um com uma prancha de madeira onde as plantas estavam presas com prendedores metálicos. A brisa forte levantava areia fina, e o sol filtrado por nuvens pesadas criava um clima estranho, como se o dia inteiro estivesse segurando a respiração.
Por alguns minutos, conversaram sobre o projeto, sobre medidas e acessos, tudo no piloto automático, tudo superficial, tudo servindo apenas para adiar o inevitável.
Até que, de repente, Adrian parou de andar.
— Havenna — ele disse. E o seu nome saiu como uma confissão.
Ela virou devagar. Ele mantinha o maxilar travado, como quem se força a manter o controle.
— Sobre ontem — ele começou, mas a voz falhou. — Eu...
Havenna sentiu o peito apertar. O vento bagunçou o cabelo dele, e ela teve a nítida sensação de que o mundo inteiro estava ali, suspenso entre uma palavra e outra.
— Adrian... — ela murmurou, tentando ajudar, tentando impedir, tentando entender.
Ele deu um passo, depois outro. Como se fosse inevitável.
— Não consigo continuar fingindo — ele confessou, a respiração pesada. — Eu tentei. Por anos. Mas você voltou e tudo voltou junto.
A areia pareceu vibrar sob os pés dela.
— Eu sei — ela sussurrou.
Foi a primeira vez que disse em voz alta.
O impacto nos olhos dele foi quase visível, um alívio devastador, uma dor doce, uma verdade impossível de ignorar.
— Eu não deveria sentir isso — ele continuou, a voz tensa, baixa, como se estivesse falando contra a própria consciência. — Eu tenho uma vida, eu tenho uma esposa...
A menção de Lívia caiu entre eles como uma pedra na água, abrindo círculos silenciosos e dolorosos.
Havenna respirou fundo, os olhos ardendo.
— E eu... — ela tentou dizer, mas a voz saiu trêmula demais. — Eu não quero machucar ninguém.
Ele fechou os olhos por um instante, como se aquilo o atravessasse.
— Eu sei — respondeu, quase num sussurro. — Mas não sei o que fazer com isso. Com você. Com a gente.
Ela desviou o olhar para o mar, onde as ondas quebravam com força, como se a natureza estivesse reagindo junto.
— Adrian... o que tivemos... o que somos... — ela tocou o peito, num gesto quase involuntário. — Nós nos afastamos e fingimos que era o suficiente.
Ele ergueu a mão, quase tocando o rosto dela, mas parou no ar.
— Eu lembro da varanda — ele disse, a voz carregada. — Da música. Do modo como você tremia e fingia que era frio. De como eu segurei seu rosto e... — Ele fechou os olhos, como se o passado estivesse queimando de volta. — Eu devia ter sido mais honesto com você naquela noite.
O coração dela pulou como se o corpo inteiro respondesse a uma memória compartilhada.
— Nós dois devíamos — ela disse com sinceridade cortante.
Os olhos dele se abriram lentamente.
E ali estava o desejo antigo, a dor acumulada, a saudade comprimida, o amor que nunca morreu, tudo misturado em algo que parecia tão errado e tão certo que o ar ficou pesado demais.
— Se eu encostar em você agora — ele murmurou, quase sem som — eu não vou conseguir parar.
Ela sentiu o corpo inteiro estremecer.
— Então não encosta — ela respondeu, mas a voz dizia exatamente o contrário.
O silêncio se esticou como um fio prestes a romper.
Um passo dele, um meio passo dela. Os dois respirando o mesmo ar, a mesma urgência, a mesma memória que insistia em renascer.
Foi então que os rádios da equipe chamaram, quebrando o instante como vidro.
Eles se afastaram ao mesmo tempo, rápido demais, culpados demais, sem saber como respirar depois daquilo.
Mas algo tinha mudado e ambos sabiam.
Porque, a partir daquele momento, não havia mais espaço para negar. Nenhum dos dois estava conseguindo voltar. E a queda só estava começando.







