Mundo de ficçãoIniciar sessãoHavenna passou os dias seguintes tentando colocar a própria cabeça em ordem. Entre o trabalho, a rotina na prefeitura e as tentativas desesperadas de evitar que qualquer cena entre ela e Adrian transbordasse pelos olhos, pelo corpo ou pela voz, percebia que estava falhando miseravelmente.
A proximidade não ajudava e os projetos em comum tampouco. O pior de tudo? O fato de que ele percebia, percebia tudo.
Então ela fez, o que sempre faz quando sente a vida escorregar por entre os dedos, voltou para a racionalidade. Para o controle. Para a lista mental de decisões impossíveis que precisava tomar para manter a própria sanidade e, acima de tudo, não destruir a vida de ninguém.
Foi assim que conheceu Caio Montenegro.
Ele apareceu numa manhã abafada, convocado para uma reunião de reforço técnico pelo Instituto Ambiental. Engenheiro florestal, especialista em recuperação de áreas costeiras. Jovem, mas com postura de quem sabe exatamente o que está fazendo. Moreno, barba por fazer, sorriso fácil, não o tipo que arranca o ar do peito como Adrian, mas o tipo que traz alívio. Tranquilidade. O tipo que não exige nada.
— Havenna Duarte? — ele perguntou, estendendo a mão. — Ouvi falar muito do seu trabalho.
— Espero que coisas boas — ela respondeu, escondendo atrás do profissionalismo, a bagunça interna que a acompanhava há semanas. — Só as melhores.Ele era leve. Leve de um jeito quase desconcertante, principalmente porque ela havia esquecido como era fácil conversar com alguém que não carregava seu passado.
Caio não preenchia silêncio com tensão. Não olhava para ela como se cada palavra escondesse algo que nunca poderia ser dito em voz alta. Não carregava uma história entrelaçada à dela, nem feridas antigas, nem lembranças que ardiam.
E talvez por isso, exatamente por isso, ela permitiu que a conversa se estendesse. Que ficassem depois da reunião ajustando mapas. Que aceitasse o convite para tomar um café “porque estamos falando do mesmo projeto e já estamos aqui mesmo, né?”.
Era simples, direto, novo. Uma presença que não exigia nada além do momento presente.
E talvez, fosse isso exatamente o que Havenna precisava, não porque a curava, mas porque não a lembrava do que doía.
***
Dois dias depois, Caio apareceu na orla com ela para uma vistoria. Haviam decidido revisar uma área de erosão antes que o tempo fechasse. Ele caminhava ao seu lado de maneira tão natural que, por alguns minutos, Havenna até conseguiu respirar fundo sem sentir o nome de Adrian preso na garganta.
— Você tem um olhar muito sensível para essas coisas — Caio comentou. — Para o território, para as histórias da cidade...
— Cresci aqui — ela respondeu, sem perceber que sorria. — A cidade meio que me criou junto. — Acho isso bonito.Bonito; simples. Sem segundas intenções escondidas entre camadas e camadas de passado.
Quando entraram num trecho sombreado, Caio tocou o braço dela para afastá-la de um tronco caído.
O toque foi breve e educado. Mas foi o suficiente para que o corpo de Havenna congelasse, não por ele, mas pela comparação imediata, cruel, inevitável com o toque que ainda queimava em sua memória.
O toque de Adrian.
Desde aquele toque que acontecera pelo menos uma semana antes, aquele toque imprudente, que deveria ter sido esquecido, mas que sua pele insistia em repetir.
Ela quase tropeçou na própria lembrança.
— Está tudo bem? — Caio perguntou.
— Sim — ela respondeu rápido demais.Ele não insistiu. E essa gentileza machucou mais do que qualquer insistência machucaria.
Quando voltaram para a área urbanizada, Havenna estava quase convencida de que sua tentativa de afastamento poderia realmente funcionar.
Até ver Adrian.
Ele estava parado próximo às passarelas, com pranchetas de conferência na mão, o vento bagunçando seus cabelos e a expressão, aquela expressão que ele só tinha quando tentava parecer inteiro, mas já estava esfarelando por dentro.
O olhar dele encontrou o dela, então encontrou Caio, e então voltou para ela, carregado, escuro, silencioso.
Caio, sem ter a menor ideia da tempestade que havia acabado de entrar na orla, sorriu.
— Você deve ser o Adrian, certo? Havenna me falou do seu trabalho.
Adrian apertou a mão dele, firme e controlado. Mas o maxilar travado denunciou tudo.
— Bem-vindo ao time — Adrian disse. — Espero que sua estadia seja produtiva.
O tom neutro, educado e um tanto tenso.
Caio agradeceu e se afastou para analisar a área costeira.
Havenna não conseguiu dar um passo antes de Adrian falar, sem olhar diretamente para ela:
— Ele é... novo aqui.
Ela respirou fundo.
— É.
— E vocês parecem se dar bem.Não era uma pergunta.
— É só trabalho, Adrian.
— Claro.Mas a maneira como ele olhou para o lugar exato, onde Caio tinha tocado o braço dela, poucos minutos antes... isso não era trabalho.
Adrian virou para a maré como se precisasse engolir o próprio nome antes que escapasse.
— Eu achei que… — ele começou, mas não terminou. — Esquece.
— Achei que o quê? — ela perguntou, baixa.
— Nada que eu ainda tenha o direito de achar.A frase caiu entre eles como uma pedra num lago calmo.
***
Mais tarde, já sozinha, Havenna parou na varanda da prefeitura e encarou o entardecer escorrendo pelo mar. Ela sabia que estava fazendo o certo.
Adrian era tudo o que ela sempre quis e tudo o que ela não podia ter.
Então, pela primeira vez, ela decidiu: Ela iria seguir adiante, mesmo que fosse na direção errada e que, no fundo, soubesse que nenhum caminho afastaria Adrian dela por completo.







