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Capitulo 5- A Queda Lenta e Irreversível

A casa nova de Lívia e Adrian tinha cheiro de reforma recente misturado com o perfume suave que ela sempre usava. A madeira clara, as luminárias pendentes e a varanda aberta para o quintal criavam um clima acolhedor demais, ao ponto de incomodar.

O jantar era simples, caseiro, cheio de risadas naturais. Amalia estava radiante, contando histórias do trabalho. Lívia circulava pela cozinha como uma anfitriã nata, servindo vinho, ajeitando guardanapos, rindo de tudo. Era impossível não gostar dela e talvez fosse exatamente isso que apertava a garganta de Havenna.

Eles riam e conversavam. Tudo parecia incrivelmente normal. Por fora, a noite parecia perfeita. Por dentro tudo era um caos velado.

Lívia contava algum desastre doméstico envolvendo plantas e um vaso recém-comprado. Amalia fazia imitações exageradas de pessoas da academia. E, por fora, Havenna também ria, mas por dentro segurava o estômago como quem tenta conter uma onda prestes a transbordar.

Adrian, sentado de frente para ela, parecia igualmente tranquilo, parecia mascarar a mesma tensão que roía dentro dela. Ombros relaxados. Sorrisos fáceis. Mas seus olhos... entregavam o caos silencioso. Toda vez que ele encarava o prato, parecia forçar a respiração a voltar ao ritmo. Cada vez que ele estendia a mão para pegar algo, Havenna percebia o leve tremor. Quando ela falava, o olhar dele desviava rápido demais, como se fugir fosse mais seguro.

— Acho que agora a casa está começando a parecer nossa — disse Lívia, sorrindo enquanto colocava a travessa na mesa. — Foi um inferno organizar tudo, mas tá valendo a pena.

— Ficou linda — comentou Havenna, sincera.

— Lindo é pouco, ficou um sonho! — acrescentou Amalia, pegando mais salada.

Foi então que o som suave do aparelho de som preencheu o ambiente. Lívia tinha colocado uma playlist “calma para jantares”, segundo ela. Mas, no meio dela, começou a tocar uma música que não deveria estar ali, não para Havenna e Adrian.

“The Night We Met”

O ar pareceu parar.

Lívia, sem saber de nada, suspirou.

— Eu amo essa música, dá uma sensação de nostalgia.

— É — Adrian murmurou, a voz quase falhando. — Nostalgia.

Havenna sentiu o estômago afundar.

Aquela música era deles dois, de um momento que quase mudou tudo, anos atrás, num fim de noite adolescente que ninguém mais sabia que existiu. Uma memória que ela tentou enterrar. Uma que ele nunca esqueceu.

Ela tentou manter o controle, beber um gole de vinho, disfarçar a avalanche que subia pelo peito. Mas quando levantou os olhos, Adrian já a encarava, não como quem observa, mas como quem reconhece.

O impacto foi brutal. Um segundo que durou uma eternidade.

Ele desviou primeiro. Passou a mão pelos cabelos, respirou fundo, como quem tenta recolher todos os cacos do próprio autocontrole.

— Essa música… — ele disse, quase num sussurro involuntário — sempre me desmonta um pouco.

Lívia riu, achando graça do comentário, completamente alheia à camada subterrânea daquele momento.

— Amor, você fala isso de metade das músicas que a gente escuta.

Ele sorriu para ela. Mas o sorriso não chegou aos olhos.

Havenna percebeu. Amalia também e franziu a testa discretamente, como quem intui algo que ainda não entende.

A música terminou, mas o efeito permaneceu. O jantar continuou leve, gostoso, cheio de boas conversas, mas nada voltou ao normal.

Sob a luz quente da sala, tudo parecia harmonioso. Mas entre os dois, por trás dos pratos, das risadas e das paredes recém-pintadas, algo havia se partido ou se reencontrado, de um jeito impossível de ignorar.

E ambos sabiam. Mesmo que ninguém mais soubesse.

A partir dali qualquer tentativa de normalidade era só teatro. Por dentro, os dois estavam em colapso, silencioso, intenso, inevitável.

***

No caminho de volta para casa, já a sós no carro, Amalia diminuiu a música e lançou um olhar curioso para Havenna.

— Tá... eu preciso perguntar — começou, com aquele tom que misturava leveza e sinceridade. — Vocês ficaram estranhos quando aquela música tocou. Te conheço desde os oito anos, sei quando alguma coisa te pega. E hoje, te pegou.

Havenna engoliu em seco, mantendo os olhos na estrada iluminada pelos postes.

— Foi só, uma lembrança — disse, tentando soar simples. — Nada demais.

Amalia arqueou a sobrancelha como quem não acredita nem um pouco.

— Havenna... Eu sei quando você mente. — Ela riu, suave. — Sempre soube.

Um silêncio cheio de coisas não ditas se instalou.

Amalia completou, dessa vez mais doce:

— Não vou te pressionar. Mas se precisar falar, sabe eu tô aqui. Como sempre estive.

Havenna sorriu de lado, um sorriso frágil, cheio de gratidão e dor ao mesmo tempo.

— Eu sei. E obrigada.

A conversa terminou ali, mas o peso não. Porque Amalia estava certa, algo tinha sido aberto. E Havenna não sabia mais como fechar.

***

No dia seguinte, Havenna tentou se jogar no trabalho. Mas a música voltava, não pelo som, mas pela memória. Aquele momento específico da adolescência em que ela e Adrian tinham se encontrado de um jeito que ninguém, além dos dois, presenciou. Nem amigos. Nem família. Só eles.

E aquilo nunca tinha sido realmente superado.

Enquanto revisava o mapa da orla norte, recebeu uma mensagem de Lívia:

“Passe aqui hoje, fiz bolo. Amalia vem também. Vai ser leve.”

Leve. Como se elas soubessem costurar acolhimento com as mãos.

Havenna foi, e as três passaram a tarde juntas, rindo, conversando sobre coisas sem peso, receitas absurdas, turistas desastrados, cortes de cabelo que deram errado. Era fácil gostar de Lívia. Era impossível não amar Amalia. E, sem perceber, Havenna se viu inserida em uma trindade improvável e surpreendentemente confortável.

Às vezes esquecia de respirar quando o nome de Adrian surgia. Mas ele não estar ali, facilitava as coisas.

Até que, quase no fim da tarde, ele entrou pela porta procurando um relatório do centro.

O riso de Havenna morreu na garganta. E o silêncio que ele trouxe junto parecia reconhecível demais.

— Ah, amor! — Lívia sorriu, indo abraçá-lo. — A Havenna estava me ajudando a entender as plantas do projeto. Você viu como ela é talentosa?

Havenna tentou sorrir, mas Adrian desviou o olhar rápido, como se tocar o dela fosse perigoso.

— Vi, sim — respondeu, a voz baixa. — Sempre foi.

Amalia ergueu as sobrancelhas, reparando no subtexto, mas preferiu engolir o comentário.

A conversa continuou, por cima, por fora, mas os olhos dele vinham até Havenna como quem tenta evitar e falhava.

***

Nos dias seguintes, no próprio andamento da obra na Praia Norte, eles eram forçados a estar próximos.

O sol batendo nos cabelos dele, a voz dele chamando o nome dela para analisar níveis, curvas, medidas, as mãos dos dois se aproximando sobre o mesmo papel, sobre o mesmo tablet, sobre o mesmo mapa.

Tudo delicado, tenso e real demais.

Havenna tentava focar no trabalho, mas havia momentos, pequenos, quase invisíveis, que rasgavam o autocontrole. Como quando ele a chamou, de repente:

— Hav…

Hav, um apelido antigo, que só ele usava.

Ela virou devagar. O vento bagunçava os cabelos dele e olhar estava exposto.

— Desculpa — ele corrigiu rápido, desviando. — Havenna.

Mas o erro já tinha se instalado entre eles como um sussurro impossível de retirar.

***

E então, uma tarde, enquanto caminhavam pela orla para revisar o posicionamento das passarelas ecológicas, passaram pelo ponto exato onde, anos atrás, tinham se refugiado da chuva numa velha varanda abandonada, o dia da música. A trilha sonora de um ano inteiro, que eles viveram o namoro secreto que guardaram como pecado e salvação, antes de tudo desmoronar no último verão antes da faculdade.

O mundo pareceu parar exatamente onde não deveria, no abrigo que testemunhou mais verdades deles do que qualquer pessoa jamais soube.

A lembrança não veio como flash, nem como nostalgia, veio como uma fisgada no peito, precisa, direta, do tipo que corta por dentro.

Adrian desacelerou. Depois parou.

— Você... lembra? — ele perguntou, baixo.

Havenna fechou os olhos por um instante. Claro que lembrava. Lembrava de cada detalhe que ele tentava esconder no rosto.

— Eu lembro — respondeu, sem se proteger dessa vez.

E eles sabiam.

Que não estavam falando da chuva daquele dia. Nem da música no jantar. Sabiam que não estavam falando de adolescência.

Estavam falando do ano inteiro que viveram escondidos. Sobre o amor que não tiveram coragem de assumir e do fim que foi uma ruptura, não um fechamento.

Sobre o que ainda respirava entre eles, mesmo agora, proibido, deslocado, mas vivo.

Adrian tinha parado bem à sua frente, tão perto que ela podia sentir o cheiro dele, um aroma forte de pele aquecida pelo sol, sal do mar e aquele toque rústico de madeira úmida, como se ele carregasse a praia no próprio corpo. Não era um perfume; era a presença. Um cheiro marcante, masculino, que chegava antes mesmo do toque. Ele falara baixo, num tom que não combinava com os assuntos corriqueiros que vinham discutindo até então.

Eu ainda te devo explicações... — dissera, a voz arranhando, como se ocultasse mais do que revelava.

A mão dele subiu devagar até seu rosto, os dedos fortes segurando o queixo dela com firmeza. Não havia urgência, mas havia intenção. Ele a tocou de um jeito que parecia reivindicar um espaço que não lhe pertencia e manteve os dedos ali um segundo a mais do que qualquer explicação inocente permitiria.

Um segundo que queimou.

O olhar de Adrian escureceu de um jeito que ela não soube decifrar, como se o vento da praia tivesse trazido à tona tudo o que ele vinha escondendo. Como se ele estivesse prestes a confessar algo que crescia entre eles silenciosamente, há tempo demais.

Então uma onda mais forte quebrou na areia, estourando espuma sobre os pés deles.

O vento levou o som para longe, mas nada levou o que existia entre eles. Não mais.

***

O calor daquela tarde grudava na pele como se insistisse em não deixá-la esquecer de nada, nem da conversa que tivera com Adrian na noite anterior, nem do modo como ele segurou seu queixo por um segundo a mais do que deveria, nem da voz baixa, quase urgente, ao dizer que “ainda tinha coisas para contar”.

Mas, antes dele, havia o agora: ela, Lívia e Amalia atravessando a praça da cidade rindo como se ainda fossem adolescentes, como se nada tivesse mudado, quando, na verdade, tudo estava mudando rápido demais.

A dinâmica entre as três se formou aos poucos, mas com uma facilidade que surpreendia, haviam se tornado inseparáveis. Amalia e Havenna retomaram a velha sintonia sem qualquer esforço. Já Lívia acabou criando um vínculo inesperadamente fácil com Havenna, uma amizade que surgiu rápido demais, mas natural o suficiente para não causar estranhamento. Entre cafés improvisados, caminhadas sem rumo e conversas que atravessavam horas, surgiu uma harmonia inesperada.

Lívia cutucava suas costelas sempre que percebia algum olhar masculino pousando nela. Amalia soltava comentários afiados demais para serem coincidência. E ela fingia não perceber.

Mas naquele dia, enquanto as três caminhavam juntas, o ar pareceu mudar de textura. Uma mensagem vibrou no bolso dela. O nome na tela a fez perder um passo, como se o chão tivesse se movido alguns centímetros para o lado.

Adrian: “Preciso te ver.”

O coração dela reagiu antes do cérebro. Ela não respondeu. Não ali. Não com as duas ao lado, farejando cada microexpressão sua.

— Ué, ficou branca — Amalia murmurou, inclinando o rosto como quem fareja perigo.

— Ela só está pensativa — Lívia respondeu, mas o tom dizia que também queria saber.

Ela desviou o olhar, mas sabia que suas amigas a conheciam demais. Que tipo de segredo dura muito tempo entre três mulheres, na qual duas delas já se amaram como irmãs?

A lembrança que veio sem autorização

Talvez fosse o toque do vento, talvez fosse a sensação incômoda da verdade tentando emergir, mas, de repente, ela se viu de volta aos 17 anos, naquela noite em que Adrian bateu na porta da sua casa molhado de chuva, tremendo de raiva depois de brigar com o pai.

Ela lembrava do cheiro da jaqueta dele, do som acelerado da respiração, do modo como ele segurou sua mão como se fosse a última âncora do mundo.

E lembrava, principalmente, daquele instante, aquele único, proibido, imperfeito instante, em que ele encostou a testa na dela e ela teve certeza de que o mundo inteiro cabia ali.

Mas alguém bateu palmas na frente dela, quebrando o flashback.

— Terra chamando você — Lívia riu.

— Pensei em algo — ela mentiu.

— Pensou foi em alguém — Amalia corrigiu, com um sorriso malicioso.

Elas sabiam. Claro que sabiam. Mas não pressionaram. Amá-la significava entender seus silêncios também.

Horas depois, quando o sol já se derramava num dourado preguiçoso, ela finalmente cedeu à mensagem que queimava na tela.

Adrian: “Estou no mirante. Vem se puder.”

Ela foi. Não porque “pôde”. Mas porque não ir teria sido uma violência contra algo que insistia em renascer dentro dela.

O mirante estava quase vazio, o vento frio empurrando folhas secas pela calçada. Adrian estava encostado na mureta, mãos nos bolsos, olhar perdido no horizonte como se estivesse em guerra consigo mesmo.

Quando ouviu seus passos, virou de lado e o modo como a olhou fez o ar se contrair entre eles.

— Você veio — ele disse como quem confessa um alívio.

— Você pediu — ela respondeu, e só então percebeu o quanto aquilo soava íntimo demais.

Ele deu dois passos até ela, ela não recuou, talvez porque o corpo entendesse antes da razão que aquilo não era ameaça e sim retorno.

O cheiro dele era o mesmo que lembrava: um misto de sabonete amadeirado e algo quente, masculino, familiar.

— Eu tenho tentado ficar longe, — ele começou passando a mão pelo cabelo, nervoso — mas toda vez que eu penso nisso, é como se algo em mim, te chamasse de volta.

Uma confissão crua. Ele jamais falara desse jeito na adolescência. Agora, Adrian era todo controle e intensidade.

Ela sentiu as palavras dele tocando partes dela que estavam adormecidas havia anos.

— Com a gente, nada é simples. — ela sussurrou, tentando desviar o olhar.

— Sempre complicamos — ele concordou, chegando mais perto — mas você sabe que sempre foi diferente com você.

As memórias vieram como uma onda, as risadas, os sustos, os ciúmes disfarçados, o amor intenso que viveram, as primeiras marcas que deixaram um no outro, e a despedida áspera que destruiu o que ainda podia ter sido.

Ela engoliu seco.

— Adrian...

— Quando você fala meu nome desse jeito... — ele disse, com um sorriso triste — você sempre teve esse poder estranho de me desmontar.

O vento levantou o cabelo dela, e ele ergueu a mão para ajeitar uma mecha atrás da sua orelha. O toque foi leve, mas queimou como se fosse muito mais.

Ela fechou os olhos, respirou fundo e sentiu o corpo trair a lógica.

— Isso é errado — ela murmurou, sem convicção.

— Então por que parece tão certo? — ele devolveu, tão perto que ela sentiu o calor da respiração dele.

Foi aí que ela percebeu, não era só nostalgia. Não era só lembrança. Era algo vivo, pulsante, urgente.

E quando Adrian segurou sua mão devagar, como se pedisse permissão e ela não soltou.

O mundo se estreitou em dois passos. Ele a puxou para mais perto, o rosto inclinado, os olhos fixos nela como se estivesse lendo tudo o que ela tentava esconder.

Por um segundo, apenas um, ela achou que ele fosse beijá-la.

Mas ele não beijou, em vez disso, encostou a testa na dela, exatamente como aos 17 anos e a sensação foi tão intensa que amoleceu seus joelhos.

O corpo dela respondeu antes do cérebro, numa entrega silenciosa, profunda, inevitável.

— Não sei onde isso vai dar — ele confessou, num sussurro — mas estou cansado de fingir que não sinto nada.

Ela abriu os olhos, e, nesse instante, soube que desde o momento em que voltou, a verdade veio inteira, tudo ruiu quando seus olhares se cruzaram. Ela também estava cansada de fingir.

A cidade parecia distante, o mundo, suspenso e entre eles, apenas o som de duas respirações tentando se sincronizar.

Foi assim que o primeiro abismo se abriu, não com um beijo, mas com a certeza de que, quando acontecesse, nenhum dos dois seria capaz de voltar ao que eram antes.

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