Mundo de ficçãoIniciar sessãoOs dias em Puerto Nuvem avançaram como ondas que chegam lentas, mas carregadas de profundidade.
Havenna começou a perceber uma nova rotina se formando, uma que ela não havia planejado, mas que, pouco a pouco, foi envolvendo cada pedaço de sua vida na cidade.
As manhãs eram ocupadas com reuniões, visitas técnicas e longas caminhadas pela Praia Norte, onde o vento parecia sempre trazer algo que ela não sabia nomear.
As tardes, porém, pertenciam às companhias que, sem que ela percebesse, estavam se tornando parte essencial do seu retorno: Lívia e Amália.
Entre risos e cautelas. As três estavam sempre juntas. Era comum vê-las sentadas no Café do Farol, dividindo xícaras e histórias.
Lívia falava com entusiasmo sobre o projeto da comunidade costeira, gesticulando com brilho nos olhos; Amália contava casos da cidade, exagerando no tom dramático só para fazê-las rir e Havenna ouvia, observava, absorvia, como se tentasse reconstruir cada camada da vida que deixara para trás.
Com o tempo, percebeu algo que a desarmou de vez: gostava realmente de Lívia. Não era uma simpatia educada ou superficial, era verdadeira, espontânea, quase inevitável.
Lívia a tratava como alguém que sempre estivera ali. Era cuidadosa, sincera, tinha uma força doce que contrastava com a firmeza de seu olhar. E, por mais doloroso que fosse, Havenna não conseguia vê-la como vilã de nada.
Às vezes, essa afeição doía mais do que qualquer lembrança do passado com Adrian.
***
Havia algo quase poético, ou cruel, na forma como Adrian sempre surgia.
No começo, era apenas coincidência: uma reunião, uma visita técnica, uma conferência rápida no terreno da obra. Depois, virou frequência.
Sempre que aparecia, cumprimentava as três com naturalidade, mas seus olhos, sempre seus olhos, buscavam os de Havenna com uma intensidade que ele tentava disfarçar. E falhava.
Era um olhar rápido, mas denso. Cheio de perguntas não ditas. E, quando cruzavam, Havenna sentia o peito apertar como se lembrasse de uma promessa que nunca fizeram, mas que sempre existiu.
***
Verão dos 17...
Às vezes, quando Adrian falava alguma coisa, um detalhe sobre a maré, um comentário sobre a areia das dunas, Havenna era arrancada para o passado.
Era como se tivesse 17 novamente.
Ela via os dois sentados na areia, lado a lado, enquanto Puerto Nuvem dormia sob a lua crescente.
— Você acredita que as pessoas são feitas de mar? — ele perguntara naquela noite.
— Como assim? — ela rira.
— O mar leva, mas sempre devolve o que é importante.
— E o que ele leva e não devolve?
— Talvez nunca tenha sido nosso.
Na época, ela não entendera. Agora entendia demais.
***
O convívio no projeto intensificou tudo. Havenna passava horas no local com a equipe, analisando mapas de erosão, propondo soluções paisagísticas, reorganizando passarelas, criando espaços de convivência.
E, muitas vezes, Adrian surgia para fazer avaliações relacionadas ao centro de fisioterapia.
— Você está pensando em usar madeira de reflorestamento aqui? — ele perguntava, aproximando-se demais.
— Sim. O impacto é menor e o visual combina com a composição natural — ela respondia, tentando manter a voz firme.
O problema não era o que diziam. Era o que não falavam.
A proximidade, o modo como ele inclinava o corpo para olhar a mesma planta, a respiração dele tão perto do seu ombro. Cada gesto parecia um risco calculado ou um salto sem proteção.
***
Lívia nunca percebia. Ela falava sobre a casa nova que queria reformar, sobre as aulas de yoga que havia começado, sobre como o projeto seria bom para a cidade.
— Havenna, você precisa vir jantar lá em casa um dia desses! — disse Lívia certa tarde, enquanto colocava um pedaço de bolo no prato dela. — Eu preciso retribuir toda a ajuda que você tem dado.
— Imagino esse jantar! — brincou Amália. — Eu vou também, óbvio.
Havenna riu, mas por dentro sentiu o chão se mover. Um jantar. Na casa dele. Com ela. Os três juntos.
E, apesar de a ideia deixá-la inquieta, não havia como recusar sem levantar suspeitas.
— Eu adoraria — respondeu, com um sorriso ensaiado.
Adrian, sentado à mesa ao lado, ouviu. E embora não dissesse nada, seus olhos disseram tudo.
***
A noite da chuva (antes de tudo)...
Havenna lembrou-se de outra noite. Uma noite bem antes de ir para a faculdade. Antes de tudo mudar.
Chovia forte. Os dois haviam saído para comprar chocolate para Amália, que tinha compulsão por doces em dias chuvosos.
A chuva aumentou no caminho, e os dois ficaram presos sob a marquise de uma loja fechada.
— Você devia correr pra casa — ela dissera.
— E te deixar aqui? — ele riu. — Nunca.
A luz do poste os cercava como uma moldura. O mundo inteiro parecia distante. Foi naquela noite que Adrian olhou para ela como se estivesse vendo algo pela primeira vez.
Havenna sentiu algo nascer ali, algo exato, algo que ela entendeu mesmo sem nomear.
Ela fechou os olhos só por um instante.
Quando abriu, estava novamente diante do mar da Praia Norte… E Adrian estava a poucos passos, observando o horizonte como quem aguarda algo que não tem coragem de pedir.
***
Com o tempo, a ligação entre os quatro: ela, Amália, Lívia e Adrian, se tornou quase um ritual.
E foi justamente isso que tornou tudo mais arriscado. Porque quanto mais Havenna convivia com eles…, mais impossível era ignorar o que crescia por baixo.
O afeto por Lívia. O amor profundo por Amália. E o sentimento, aquele, que ela tentava calar cada vez que os olhos de Adrian encontravam os seus.
Era como caminhar sobre areia molhada: a superfície parecia firme, mas um passo em falso e tudo afundaria.
Havenna sabia.
Sabia que o destino não tece coincidências à toa, que o passado estava se movendo de novo, ainda que ninguém tivesse coragem de dizer em voz alta.
E, enquanto observava o mar naquela noite, sentiu com uma clareza dolorosa: A maré estava voltando.
E cedo ou tarde, algo precioso ou devastador, viria com ela.







