Mundo de ficçãoIniciar sessãoOs dias seguintes pareceram se alongar em um tempo próprio. Puerto Nuvem seguia envolta em um clima de calmaria aparente, o tipo de sossego que esconde ondas fortes logo abaixo da superfície.
Havenna tentava se adaptar à rotina da cidade, mas a cada esquina, a cada pôr do sol sobre o mar, havia algo que a puxava de volta para memórias que julgava adormecidas.
Naquela manhã, Amália insistira para que ela fosse ao Café do Farol, novamente.
— Vamos encontrar a Lívia lá. Você vai adorar ela! — disse animada, enquanto amarrava o cabelo. — É esposa do Adrian. Uma das pessoas mais doces que eu conheço.Havenna forçou um sorriso.
— Claro… vai ser bom conhecer. Por dentro, o coração vacilou, mas a curiosidade, ou talvez o desejo de se punir, a fez concordar.O Café do Farol estava cheio. O som das xícaras se misturava ao barulho do mar ao fundo. Assim que entraram, Lívia se levantou e acenou. Alta, de traços delicados e olhar gentil, tinha algo que transmitia calma, uma serenidade quase contagiante.
— Você deve ser a famosa Havenna! — disse Lívia, sorrindo. — Amália fala muito de você.
— Espero que bem, — respondeu Havenna, retribuindo o sorriso. — Sempre bem. — Lívia segurou as mãos dela com naturalidade. — É bom quando alguém de fora volta pra dar cor à cidade. Às vezes, tudo aqui parece meio… parado.Havenna riu, sincera. Gostou dela. Gostou de verdade e isso a desarmou.
Era impossível odiar alguém tão doce, ainda que seu coração insistisse em doer por motivos que ela fingia não entender.Adrian chegou minutos depois, o jaleco médico dobrado sobre o braço.
O olhar dele encontrou o dela antes mesmo de procurar um lugar para sentar. Houve apenas um cumprimento educado, um leve aceno, mas dentro do silêncio dos dois havia algo que o tempo não apagara.Lívia falava animadamente sobre um projeto comunitário de reabilitação e saúde costeira, algo que a prefeitura estava retomando, e que buscava parcerias com profissionais da região.
— Havenna, você não é arquiteta paisagista? — perguntou ela, empolgada. — Eles estão procurando alguém pra ajudar a revitalizar o entorno da praia norte.Amália bateu palmas e sorriu, animada:
— Perfeito! Ela ama trabalhar com isso.
Havenna respirou fundo, tentando não deixar transparecer o quanto aquela coincidência a desconcertava.
Adrian, que até então se mantivera quieto, ergueu o olhar.
— O projeto é importante. Estamos tentando integrar o centro de fisioterapia ao espaço. Se quiser, posso te colocar em contato com a equipe.— Obrigada, — respondeu Havenna, endireitando a postura, como quem se prepara para revelar algo significativo. — Na verdade… — começou, sem conseguir esconder um pequeno sorriso. — Eu vim justamente por causa desse projeto. A Casamar Projetos Integrados, o escritório onde trabalho, foi contratado para liderar essa revitalização. Se tudo correr bem e eu entregar o projeto completo, posso me tornar sócia.
Lívia soltou um riso feliz, completamente alheia ao peso silencioso daquele anúncio.
— Então vão trabalhar juntos?
— Ao que tudo indica… sim — respondeu Havenna.
E foi assim que o destino, com sua precisão cruel e impecável, começou a tecer sua teia novamente.
***
As semanas seguintes trouxeram encontros inevitáveis reuniões na prefeitura, visitas ao local, tardes de trabalho entre pranchetas, mapas e prazos.
Havenna e Adrian se tornaram parte da mesma engrenagem, gravitaram um ao redor do outro como dois corpos que já conheciam a órbita, mas agora fingiam desconhecê-la. Mantinham distância, evitavam contatos longos, gestos desnecessários, mas bastava uma troca de olhar para que algo antigo e incômodo se acendesse.
Lívia, sempre presente e generosa, parecia genuinamente feliz por tê-la por perto.
— Você trouxe uma energia boa pra ele, sabe? — disse certa vez, enquanto tomavam café juntas. — Adrian anda mais leve desde que o projeto começou. Havenna sorriu, disfarçando a pontada de culpa que veio logo em seguida. — Ele é dedicado… às vezes até demais. — Sim. É o que mais admiro nele. — Lívia apoiou o queixo nas mãos e suspirou. — Mas também o que mais o distância.Aquela confissão ficou ecoando dentro de Havenna por horas.
E ecoou ainda mais forte quando, dias depois, reencontrou Adrian sozinho no terreno da Praia Norte, ao fim da tarde, acompanhando o movimento das marés enquanto revisava anotações.
Eles conversaram sobre o projeto…, mas também sobre o tempo, Montévia, sobre como a vida parecia andar mais rápido do que ambos haviam previsto.
E foi ali que um fio invisível se reacendeu, sutil, silencioso, mas inevitável.
Naquela mesma semana, Havenna começou a procurar casas para alugar próximas à praia, algo que justificou como “praticidade para o projeto”, embora soubesse, no fundo, que havia mais do que isso.
E sempre, de alguma forma inexplicável, Adrian surgia por perto: com Amália, com Lívia, com a equipe, ou simplesmente pela coincidência traiçoeira das ruas estreitas de Puerto Nuvem.
Nada era dito. Nada era tocado. Mas tudo estava ali, crescendo entre os dois como uma maré que, cedo ou tarde, voltaria a subir.
***
Num fim de tarde, Havenna foi visitar uma casa próxima à praia, uma construção antiga, de madeira azul desbotada, janelas amplas e varanda voltada para o mar.
O corretor falava sobre medidas e valores, mas ela mal ouvia. O som das ondas e o cheiro de sal preenchiam cada espaço, e por um instante, ela se imaginou ali, sozinha, cercada por silêncio e vento.— Bonita, não é? — a voz atrás dela a fez se virar.
Era Adrian. — Não esperava te ver aqui. — Amália comentou que você estava procurando um lugar. Pensei que talvez quisesse ver o pôr do sol daqui. É um dos melhores da cidade.Ela sorriu, sem saber como reagir.
Os dois ficaram lado a lado, observando o horizonte. O sol mergulhava lentamente no mar, tingindo o céu de cobre e violeta.
Nenhum deles falou por um tempo. O silêncio bastava.
Até que Adrian quebrou a calma com uma voz quase sussurrada:
— É estranho, não é? Estar tão perto e, ao mesmo tempo, parecer que há um abismo entre nós.Havenna respirou fundo.
— Talvez seja melhor assim. — Será? — ele olhou para ela, os olhos carregando algo que misturava saudade e rendição. — Nem sempre o que parece certo é o que a alma quer.Ela desviou o olhar para o mar.
— E nem sempre o que a alma quer é o que a vida permite.A brisa fria soprou entre eles, carregando o peso das palavras não ditas.
Adrian deu um meio sorriso triste, assentiu e se afastou.
— Boa sorte com a casa. Acho que ela combina com você. E se foi, deixando atrás de si o som do vento e o eco de tudo o que ainda não havia acabado.Havenna ficou ali, parada, observando o mar escurecer.
Sabia que não havia mais inocência em nenhum reencontro, e que, por mais que tentasse, o passado e o que ainda existia entre eles, estava apenas começando a despertar novamente.






