Três dias depois do nosso primeiro encontro, fui até a casa do Gabriel.
O sol filtrava-se pelas árvores, desenhando sombras suaves no caminho de pedras. A luz parecia brincar com o chão, como se anunciasse algo novo. A casa, imponente mas acolhedora, se revelava aos poucos — como alguém que não tem pressa de ser compreendido.
Gabriel me esperava na entrada, com aquele sorriso contido e o olhar curioso que eu já começava a reconhecer. Havia algo nele que misturava leveza com expectativa, como quem abre a porta não apenas de uma casa, mas de uma história.
— Pronta para conhecer cada canto da minha casa? — ele perguntou, estendendo a mão como quem me convidava a entrar num mundo só dele.
Assenti com um leve sorriso, e caminhamos juntos pelos corredores, jardins e salas que pareciam coisa de cinema — ainda que precisassem de alma. A estrutura era impecável, mas faltava vida. Faltava história.
Ele me contava sobre cada espaço, sobre tudo que queria colocar, decorar, mudar. E eu absorvia tudo com olhos atentos, como quem escuta uma música pela primeira vez e já começa a imaginar os arranjos.
Na sala principal, com pé-direito alto e janelas amplas, imaginei cortinas leves, tecidos naturais, uma paleta que misturasse tons terrosos com azuis suaves. Um sofá em L, uma estante com livros e objetos afetivos, talvez uma lareira moderna — algo que convidasse ao encontro.
No jardim dos fundos, onde o sol tocava as folhas com delicadeza, pensei em criar um espaço de permanência: bancos de madeira, iluminação indireta, plantas aromáticas. Um lugar para respirar.
Na cozinha, ele falava sobre jantares e noites de música. Imaginei uma ilha central, luminárias pendentes, uma parede de azulejos artesanais que contassem uma história. Um espaço que cheirasse a memória.
A cada passo, ideias surgiam como faíscas. Tirei meu caderno do bolso e comecei a rabiscar — linhas soltas, esboços, possibilidades. Era como se cada canto da casa falasse comigo. Como se, de alguma forma, ela estivesse sendo decorada para mim.
— Você tem um jeito de olhar que transforma tudo — ele disse, enquanto eu desenhava.
— Eu escuto os espaços — respondi, sem pensar. — Eles sempre têm algo a dizer.
Ele sorriu, e por um instante, o silêncio entre nós foi confortável. Como se ali, entre paredes ainda nuas, começasse a nascer algo que nenhum de nós sabia nomear.
A reforma começou com o som ritmado dos primeiros martelos, como se a casa do Gabriel despertasse de um longo silêncio. Ele acompanhava cada etapa com precisão quase obsessiva — atento aos prazos, aos materiais, às decisões que antes pareciam distantes. Era como se, ao transformar os espaços, ele tentasse reorganizar algo dentro de si.
Eu, como arquiteta, mergulhava nos traços. A curva de uma escada que precisava parecer leve, o tom exato de uma parede que deveria acolher, a luz que atravessava uma janela antiga e desenhava silêncios no chão. Estava sempre ali. A casa já fazia parte de mim — não como lar, mas como território. Um lugar onde eu precisava estar para ver, ouvir, sentir.
— Você vive aqui agora? — ele brincou, me encontrando pela terceira vez naquela semana, com aquele sorriso contido e o olhar curioso que eu já começava a reconhecer.
Sorri, sem tirar os olhos do projeto aberto sobre a bancada improvisada.
— Eu assino esse trabalho. Preciso estar aqui para garantir que tudo saia como imaginei. Cada traço importa.
— E você imagina com precisão cirúrgica — ele comentou, se inclinando para observar os esboços. — Nunca vi alguém tão atento à luz de uma janela.
Ele me olhou de um jeito diferente naquele momento. Como se enxergasse algo além dos papéis e das plantas. Como se, por um instante, esquecesse que eu estava ali como profissional.
— Vai ficar incrível. Seu olhar transforma tudo.
Agradeci com um aceno, tentando disfarçar o calor que subiu ao rosto. Mas aquela frase ficou reverberando em mim. Seu olhar transforma tudo. Talvez ele tivesse razão. Talvez eu tivesse mesmo esse impulso de buscar o que está por trás, o que ainda não foi revelado. Mas não da forma como ele imaginava.
Eu não estava ali apenas para transformar a casa do Gabriel. Estava ali para chegar até Julia. Para entender o que aconteceu na noite em que Pedro morreu. A reforma era só o caminho. O contrato, uma desculpa. Eu poderia ter recusado. Tinha outros projetos em andamento, outras prioridades. Mas não o fiz. Aceitei porque queria me aproximar de Gabriel. Porque ele era a peça que faltava — ou talvez a chave que abriria a porta certa.
A casa era um labirinto de memórias, e eu precisava decifrá-las. Cada traço, cada escolha arquitetônica, cada silêncio entre uma conversa e outra. Tudo podia dizer algo. E Gabriel, com sua gentileza e seus olhos atentos, talvez dissesse mais do que queria.
Mais tarde, enquanto revisávamos juntos o cronograma da obra, ele fez uma pausa. O dia estava longo, e a poeira da reforma parecia se acumular até nos pensamentos.
— Aceita um café? Só para espairecer um pouco.
Ri, ajeitando os papéis sobre a mesa de madeira que ainda cheirava a verniz fresco.
— Se eu parar agora, perco o ritmo. Mas obrigada.
Ele não desistiu. Percebi que queria mais tempo comigo, longe dos papéis e das paredes em reforma. Havia uma inquietação nele — como se quisesse entender o que nos aproximava tanto, tão rápido.
— E... jantar? Você tem a noite livre?
Fiquei surpresa. Não por ele perguntar, mas por finalmente acontecer. Eu esperava por esse momento. Não para flertar — ou talvez sim — mas para entender. Saber quem era Gabriel, de onde vinha, e por que esse projeto parecia nos unir de forma tão inesperada.
Mas hesitei. O vínculo profissional ainda era forte, e eu sabia o risco de cruzar essa linha. Além disso, havia outra camada: eu não podia me deixar envolver demais. Não ainda.
— Gabriel... — comecei, escolhendo as palavras com cuidado. — A gente está trabalhando juntos. E esse projeto é importante pra você. Pra mim também.
— Justamente por isso — ele disse, com suavidade. — Porque é importante. E porque você já está aqui, todos os dias. Um jantar não muda isso. Só... amplia.
— Amplia — repeti, como quem testa o peso da palavra.
Ele sorriu, esperando minha resposta. E eu, por um instante, quis aceitar. Quis esquecer o motivo real de estar ali. Quis apenas ser Clara, arquiteta, diante de um homem que me olhava como se eu fosse parte do projeto mais íntimo da vida dele.
— Tá bom — disse, por fim. — Mas só se for num lugar onde eu não fique analisando a iluminação e o mobiliário.
— Prometo escolher um lugar sem personalidade nenhuma. Assim você relaxa.
— Impossível. Eu sempre vejo o que poderia ser melhor.
Ele riu, e eu também. Mas por dentro, o alerta seguia aceso. Porque por trás de cada gesto, cada conversa, havia uma busca. E eu ainda não sabia onde ela ia me levar.
— Gabriel combinou o horário. Falou que pegaria meu contato no projeto e mandaria o endereço do restaurante.
Assenti com um aceno discreto, tentando manter a naturalidade. Quando ele se afastou, sorri sozinha, olhando para os traços que fiz naquele dia. Linhas soltas, mas cheias de intenção. Como tudo que eu vinha desenhando desde que entrei naquela casa.
— Será que ele realmente não me conhece? Não conhece minha família? — pensei, observando o papel à minha frente. — E se for isso mesmo... o destino entrelaçando nossas histórias, como linhas invisíveis num projeto maior?
O restante do dia passou como um borrão. Após Gabriel se despedir e prometer enviar o endereço do restaurante, mergulhei no trabalho com intensidade. A decoração da casa exigia atenção aos detalhes, e eu me entreguei a cada linha, cada textura, cada escolha de cor como se fosse uma extensão da minha própria casa. Ou da minha própria história.
Escolhi tecidos que evocavam memória, móveis que sugeriam permanência, iluminação que mudava com o humor do dia. Era como se, ao transformar aquele espaço, eu tentasse organizar o caos dentro de mim.
Quando finalmente olhei o relógio, percebi que o tempo havia escapado por entre os dedos — e junto dele, quase o horário marcado por Gabriel.
Foi só então que vi a mensagem. Ele havia enviado o endereço e o horário com precisão. Meu coração acelerou. Já estava atrasada.
Corri para casa, subindo as escadas com pressa e ansiedade. Por mais que tentasse disfarçar, havia um frio na barriga que não me deixava em paz. Eu sabia que tinha um propósito ao me aproximar de Gabriel, mas não era cega. Ele era lindo, encantador, simpático — o tipo de homem que faria qualquer mulher se perder.
— Eu não posso me perder — murmurei, abrindo o guarda-roupa com pressa. — Isso é trabalho. Isso é investigação. Isso é justiça.
Mas nenhuma dessas frases impediu que eu escolhesse um vestido que me fazia sentir bonita. Nem que eu passasse um batom com mais cuidado do que o habitual. Nem que eu prendesse o cabelo com um toque de leveza, como quem espera ser vista.
Enquanto me arrumava, pensei nele. No jeito como ele falava comigo. No olhar atento, nas pausas entre as frases, na forma como parecia querer entender mais do que eu dizia.
— Será que ele sabe? — pensei, encarando meu reflexo no espelho. — Será que ele sente que há algo por trás dos meus traços, dos meus silêncios?
Peguei minha bolsa, conferi o endereço mais uma vez e respirei fundo. O jantar não era apenas um encontro. Era uma etapa. Uma peça do quebra-cabeça.
Mas também era um risco. Porque, por mais que eu tentasse manter o foco, havia algo em Gabriel que me desarmava. E eu não podia me dar ao luxo de ser desarmada.
Já havia passado mais de uma hora do horário combinado. Ao descer as escadas, encontrei meus pais na sala. Eles se surpreenderam ao me ver assim — arrumada, com um brilho nos olhos que há muito tempo não aparecia.
— Para onde vai, filha? — perguntou minha mãe, com um sorriso contido, como quem não queria parecer curiosa demais.
— Jantar fora — respondi, tentando soar casual. — Não precisam me esperar.
Meu pai levantou os olhos do jornal, observando-me com atenção. Eles trocaram olhares silenciosos, felizes por me ver sair, sem imaginar com quem eu estaria. Mas eu sabia que não podia me deixar levar por encontros casuais. Havia um propósito maior. E era por ele que eu estava ali.
Pouco tempo depois, cheguei ao restaurante. Ficava na beira-mar norte, com vista para a baía iluminada. O nome — Solar das Águas — já sugeria sofisticação. Fachada de vidro, jardins suspensos, e um aroma sutil de lavanda misturado ao sal do mar. Um dos mais luxuosos de Florianópolis, frequentado pela elite — como Gabriel, como eu, mesmo que eu tentasse esquecer disso.
O garçom me recebeu com discrição, como se já soubesse quem eu era. Antes mesmo que ele me conduzisse à mesa, avistei Gabriel ao longe. Estava sentado em uma mesa discreta, próxima à janela, onde a luz do entardecer tocava seu rosto com delicadeza. Vestia uma camisa azul-marinho, impecável, e um relógio que parecia mais uma peça de arte do que um acessório. Sua postura era serena, mas havia algo nos olhos — uma intensidade silenciosa, como quem observa o mundo com paciência e estratégia.
Caminhei até ele com calma, tentando disfarçar a admiração que crescia em mim. Não podia permitir que ele percebesse meu interesse. Não podia me perder naquilo que ainda era vingança.
Ao me ver, ele sorriu. Um sorriso que, por um instante, fez o mundo desacelerar.
— Achei que você não viria — disse ele, com um tom leve, mas carregado de expectativa.
— O trânsito estava caótico — menti, sentando-me à sua frente. — Mas eu não costumo faltar aos meus compromissos.
— Ainda bem — respondeu, inclinando-se levemente. — Este lugar perde metade do charme sem você.
Sorri de volta, vestindo minha máscara de naturalidade. O garçom se aproximou com discrição, oferecendo o cardápio. Gabriel recusou com um gesto sutil.
— Já pedi para nós dois. Espero que goste de frutos do mar.
— Gosto — respondi, surpresa por ele saber. Ou por ter arriscado certo.
— Florianópolis tem os melhores camarões do país — disse ele, olhando pela janela. — E as melhores vistas também. Mas hoje, acho que estou com sorte dupla.
A conversa fluiu com facilidade, como se fôssemos velhos conhecidos. Ele falava sobre a vida de ator, sobre viagens, sobre o projeto da casa — sempre com aquele tom envolvente, como quem sabe exatamente o que dizer para manter o outro interessado.
Mas eu observava mais do que ouvia. Cada gesto, cada pausa, cada escolha de palavra. Gabriel era encantador, sim. Mas também era calculista. E eu precisava lembrar disso.
— Você parece diferente hoje — comentou ele, após um gole de vinho. — Mais... leve.
— Talvez seja o vestido — brinquei, desviando o olhar. — Ou talvez eu esteja apenas cansada de carregar pesos invisíveis.
Ele me olhou com atenção, como se tentasse decifrar o que havia por trás da frase.
— Todos carregamos algo — disse ele, por fim. — A diferença é que alguns sabem esconder melhor.
Gabriel me olhava com um sorriso que não deixava dúvidas. Havia algo ali — admiração, ternura, interesse. Um charme sutil, mas presente, que se revelava no modo como seus olhos azuis me percorriam, como se tentassem decifrar cada camada minha. Era um olhar sedutor, envolvente, que poderia facilmente me fazer esquecer por que estava ali.
— Você tem um jeito curioso de estar presente — ele disse, com a voz baixa, quase íntima. — Parece que está aqui... e em outro lugar ao mesmo tempo.
Sorri, tentando manter o controle.
— É o hábito de observar. Arquitetos fazem isso. A gente aprende a ver o que os outros não veem.
— E o que você vê agora? — ele perguntou, inclinando-se levemente, com aquele tom que misturava provocação e curiosidade genuína.
— Um homem que sabe usar o silêncio a seu favor — respondi, sem hesitar. — E que tem consciência do próprio charme.
Ele riu, um riso contido, elegante.
— Culpa dos meus pais. Me deram bons genes e uma educação para parecer interessante.
— E conseguiu — admiti, antes de me dar conta. — Controle-se, Clara. Você não pode pôr tudo a perder.
Respirei fundo. Não podia me deixar levar pelo encanto de Gabriel. Não podia sucumbir aos seus olhos claros, nem ao corpo que parecia esculpido para provocar inveja em muitos homens. Ele parecia saído de uma capa de revista — bonito demais para ser real.
Mas não era só beleza. Era o jeito como ele falava. Como escutava. Como deixava espaços entre as palavras, como quem espera que o outro se revele.
— Você está tensa — ele disse, observando meu gesto ao ajeitar o guardanapo. — Posso perguntar por quê?
— Não é tensão — menti. — É concentração. Tenho muitos projetos em andamento.
— E eu sou um deles?
— Você é o mais recente — respondi, mantendo o tom neutro. — E talvez o mais desafiador.
Ele sorriu, satisfeito com a resposta.
— Gosto de ser desafiador. Me faz sentir vivo.
— E você gosta de provocar — acrescentei, encarando-o com firmeza.
— Só quando vale a pena — ele disse, sem desviar o olhar.
O garçom trouxe o prato principal, interrompendo o momento. Mas a tensão pairava no ar, como uma linha invisível entre nós. Eu sabia que estava jogando com fogo. Mas também sabia que precisava manter o foco.
Porque por trás daquele sorriso encantador, havia perguntas sem resposta. E eu estava ali para encontrá-las.
— Gabriel — comecei, mantendo o tom neutro —, por que decidiu decorar sua casa? Quero dizer, observei alguns problemas estruturais, mas nada que justificasse uma reforma completa. Poderia ter resolvido com ajustes pontuais.
Ele me olhou com atenção, como se ponderasse a profundidade da pergunta. Seu olhar demorou um segundo a mais do que o necessário, como se estivesse escolhendo com cuidado o que revelar.
— É mais do que estrutura — respondeu, com calma. — Aquela casa é um sonho pessoal. E, de certa forma, quero realizar esse sonho. Não apenas pensando em sua estrutura, mas construir vínculos. Dar novo propósito ao que ficou esquecido enquanto construía minha carreira internacional.
Havia algo na forma como ele dizia “vínculos” que me fez prender a respiração por um instante. Assenti, mas não me dei por satisfeita. Precisava ir além.
— E quanto à escolha da equipe? — perguntei, fingindo desinteresse. — Fui contratada por recomendação, claro, mas às vezes me pergunto se houve outros motivos. Você me procurou por ser uma profissional experiente... ou também queria me ter por perto?
Gabriel sorriu, sem pressa. Um sorriso que não era apenas resposta — era provocação.
— Talvez um pouco dos dois — disse, com honestidade. — Mas o talento sempre vem primeiro.
Sorri de volta, mantendo o controle. Eu precisava dessas respostas. Precisava entender se ele também estava jogando — como eu.
Gabriel recostou-se levemente na cadeira, com o olhar voltado para a taça à sua frente, como se buscasse ali a memória de algo distante.
— Retornei ao Brasil recentemente — disse, com voz serena. — Passei muitos anos fora, trabalhando, atuando, minha vida é agitada, construindo minha própria trajetória. Foi um período intenso, mas necessário. Agora, reformar a casa é mais do que um projeto arquitetônico. É um passo para me reconectar com minhas raízes e sonhos.
Assenti, observando cada palavra, cada pausa. Havia sinceridade no que ele dizia, mas também havia lacunas. E eu precisava entender onde elas estavam.
— E o que exatamente no meu trabalho chamou sua atenção? — perguntei, mantendo o tom profissional, embora curiosa. — Houve algo específico que o fez pensar em mim para a sua casa, quero dizer esse projeto tão pessoal?
Ele sorriu, aquele sorriso que parecia iluminar o ambiente com naturalidade.
— Além do talento, confesso que me apaixonei pelo seu trabalho. Pelo seu toque. Mesmo sem conhecê-la pessoalmente, havia algo nas suas criações que me chamou atenção. Era como se houvesse alma em cada detalhe.
Engoli em seco. Era difícil ouvir aquilo e não se deixar afetar. Mas eu precisava manter o foco.
— Então foram os seus sonhos que o trouxeram de volta?
Gabriel balançou a cabeça, com um leve suspiro.
— Não apenas. Decidi retornar por questões pessoais também. Coisas que aconteceram com minha família. Situações que exigiram minha presença.
Ele não mencionou o acidente. Não citou Júlia. E eu sabia que estava pisando em território delicado.
Respirei fundo, tentando manter a compostura.
— Li algumas reportagens na internet... — disse, com cautela. — Sinto muito por tudo.
As palavras saíram com esforço. Eu as disse por educação, por estratégia. Mas por dentro, a dor me rasgava. Sinto muito? Sim, mas pela minha família. Pelo meu irmão. Por Pedro, que teve sua vida interrompida. Tive vontade de chorar ali mesmo, de deixar que a dor transbordasse. Mas não podia. Não naquele jantar. Não diante dele.
Ele assentiu, mas não agradeceu. Seu olhar se perdeu por um instante, como se estivesse em outro tempo.
— A imprensa gosta de preencher os vazios com suposições — disse, por fim. — Mas há coisas que não cabem em manchetes. Coisas que só fazem sentido quando você está dentro delas.
Silêncio. Um silêncio que não era desconfortável, mas carregado.
Gabriel mexeu lentamente na taça, como se buscasse coragem para tocar no assunto que até então evitara. O gesto era contido, quase ritualístico, como se o vinho pudesse lhe oferecer as palavras certas.
— Júlia sempre teve dificuldade em lidar com limites. A vida inteira agiu como se tudo estivesse ao alcance das mãos, sem considerar as consequências. E quando se trata de afeto...
Fez uma pausa longa, os olhos fixos em algum ponto distante, como se revivesse algo que preferia esquecer.
— Ela nunca soube cuidar de ninguém. Nem de si mesma.
Mantive-me em silêncio, permitindo que suas palavras ecoassem entre nós. Não havia comentário que coubesse ali — e, sinceramente, não sei se eu teria vontade de oferecê-lo. Júlia não despertava em mim compaixão. Como poderia? Quando tudo que restou da minha família foi o vazio? Quando Pedro partiu, levando consigo a parte mais viva de mim?
— Nossas brigas eram constantes — continuou Gabriel, com um tom mais distante. — Eu tentava fazê-la enxergar que precisava amadurecer, assumir responsabilidade pelas próprias escolhas. Mas ela sempre escapava, como se crescer fosse uma ameaça à liberdade que tanto prezava.
Enquanto Gabriel falava, minha mente se afastou por um instante. Lembrei do artigo que li dias atrás, quando comecei a buscar informações sobre Júlia Monteiro.
Vinte e cinco anos. Modelo em ascensão. Milhões de seguidores. Mimada, egocêntrica, habituada a ter o mundo girando ao seu redor. Modelo em início de carreira, ainda pouco conhecida por seu trabalho, mas constantemente presente na mídia — não por mérito, mas por escândalo. A fortuna da família, os relacionamentos breves e polêmicos, as festas luxuosas, as aparições em eventos com roupas provocativas e frases vazias. Tudo nela parecia feito para chamar atenção. Mas não havia profundidade. Apenas ruído.
E foi nesse ruído que Pedro se perdeu. Meu irmão. Meu melhor amigo. A parte mais viva de mim.
A dor apertou no peito, como uma mão invisível que não me deixava respirar. Mas eu a engoli. Não podia demonstrar. Não ali. Vesti novamente minha máscara — aquela que me permite continuar sem desmoronar.
Gabriel ainda falava, mas agora com menos firmeza. Como se as palavras tivessem se esgotado. O silêncio voltou a se instalar, denso, quase sólido.
— Você conhecia Pedro? — perguntei, quebrando o silêncio com suavidade.
Gabriel ergueu os olhos, surpreso. A pergunta pareceu deslocada, como se ele não esperasse que aquele nome surgisse ali, entre taças e lembranças veladas.
— Não... — respondeu, após uma pausa breve. — Quando ouvi falar dele, já tinha acontecido. O acidente. A morte.
Ele disse “acidente” com naturalidade. Como quem repete o que ouviu. Como quem nunca questionou.
Mas eu questionei. Desde o primeiro dia. Porque não foi acidente. Não foi.
Gabriel me olhava, tentando entender. Não o que eu dizia — mas o que eu sentia. Ele não sabia. Não fazia ideia de que sua irmã era o epicentro da dor que me corroía.
Júlia Monteiro. A mulher que todos viam como deslumbrante, magnética, intocável. Mas eu a via como ela realmente era. E Pedro também viu. E por isso... ele se foi.
— E você... conhecia o Pedro? — perguntou, com a testa levemente franzida, como quem tenta conectar peças que ainda não se encaixam.
Por um instante, meu corpo congelou. A pergunta veio com naturalidade, mas o impacto foi profundo. Se ele soubesse... Se descobrisse que Pedro era meu irmão, tudo ruiria. O projeto. A aproximação. A vingança.
— Não — respondi, firme, sem hesitar. — Ouvi falar dele, claro. Mas nunca nos encontramos.
Gabriel assentiu, aliviado, como quem aceita a resposta sem suspeitar. Ele não podia imaginar. Não podia saber que a mulher sentada à sua frente carregava a dor que sua irmã causou. Que cada traço que eu desenhava em sua casa era, na verdade, parte de um plano maior. Um plano que exigia silêncio, estratégia e sangue frio.
— Ele parecia ser alguém intenso — comentou Gabriel, voltando o olhar para a taça. — Júlia falava dele com admiração. Mas também com... confusão. Como se não soubesse lidar com o que ele despertava nela.
Engoli em seco. Admiração? Confusão? Era isso que ela chamava de manipulação? De destruição?
— Imagino que ele tenha deixado marcas — murmurei, mantendo o tom neutro.
— Sim — respondeu Gabriel, pensativo. — Algumas pessoas passam pela nossa vida e mudam tudo. Mesmo sem ficar.
Sorri, discreta. Mas por dentro, a frase reverberava com outra força. Pedro não passou. Pedro foi arrancado. E Júlia estava no centro disso.
Mas Gabriel não sabia. E eu precisava manter assim.
Por enquanto.
Observei Gabriel por alguns segundos, tentando decifrar suas intenções. Ele parecia tranquilo, quase casual, mas havia algo em sua postura que me deixava em alerta. A forma como me olhava, como se soubesse mais do que dizia. Como se estivesse jogando um jogo silencioso — e eu ainda não tivesse lido todas as regras.
— Entendo que tenha interesse na Tavares Arquitetura e Engenharia — comecei, mantendo o tom firme, o olhar direto. — Mas o que exatamente estamos fazendo aqui? Como sabia que eu aceitaria esse jantar?
Ele sorriu. Aquele sorriso que parecia sempre esconder algo. Um charme calculado, mas nunca forçado.
— Não estamos fazendo nada demais, Clara. Apenas jantando — respondeu, com naturalidade, como quem tenta dissipar a tensão com simplicidade.
Mas eu sabia que ele percebia meu olhar. Sabia que eu o observava com atenção, como quem testa os limites de um terreno desconhecido.
— E sobre você aceitar... — ele continuou, inclinando-se levemente para frente, os cotovelos apoiados com elegância — tenho meus segredos para convencer. Pesquisei sobre você. Além disso, gosto de arriscar.
Apreensão tomou conta de mim. Será que ele sabia quem eu era? Será que havia descoberto minha ligação com Pedro? Com Júlia?
— Por que esse jantar, Gabriel? — perguntei, tentando manter a compostura. — O que realmente o trouxe até mim?
Ele pousou os talheres com calma, como se estivesse prestes a revelar algo importante. O gesto foi lento, quase cerimonial.
— Quando meu melhor amigo me disse que a Tavares era a melhor empresa do ramo, e que a arquiteta responsável era jovem, talentosa e inteligente... confesso que fiquei intrigado. Interessado.
— Interessado no meu talento? — questionei, com um leve tom de ironia, tentando manter o escudo.
Ele me olhou com mais profundidade, e por um instante, o silêncio entre nós pareceu pesar. Como se o ar ao redor tivesse mudado de densidade.
— Não apenas. Na verdade... talvez eu devesse ter mais cuidado.
Minhas mãos estavam frias, e o coração acelerado. A forma como Gabriel me olhava, como se enxergasse além da superfície, despertava em mim um receio que eu não conseguia ignorar.
Será que ele sabia? Será que havia descoberto algo sobre minha família? Sobre mim? Me perguntei novamente, tentando manter o rosto impassível.
— O que quis dizer com “deveria ter mais cuidado”? — perguntei, tentando manter a voz firme, mesmo com a inquietação crescendo por dentro.
Ele me olhou com serenidade, mas havia intensidade em seu olhar. Como se cada palavra que viria fosse medida, pesada, escolhida com precisão.
— Porque você é linda, elegante, inteligente, educada... atenta. Alguém que pode ter um homem aos seus pés, quando e como quiser...
Fez uma pausa. Longa. Como se pesasse cada palavra antes de soltá-la.
— E porque tudo isso me preocupa. O que você desperta em mim... me balança. Me tira do eixo. Me faz ser esse homem que não planeja, que não calcula. E eu sempre fui alguém que calcula tudo.
Fiquei em silêncio. Não por falta de resposta, mas porque aquela confissão me atingiu de um jeito inesperado. Eu não queria balançá-lo. Não queria ser vista. Queria apenas observar, decifrar, desmontar.
Mas ali, diante daquele olhar que me despia sem tocar, percebi que talvez eu estivesse sendo desmontada também.
E isso... isso me assustava.
Fiquei em silêncio, absorvendo o impacto daquelas palavras. Gabriel continuou, com uma sinceridade que me desconcertou.
— Meu retorno ao Brasil não teve nada a ver comigo — disse, com os olhos fixos nos meus. — Voltei por minha família. Por minha irmã. Mas conhecer você... foi inesperado. E, mesmo sabendo que não deveria insistir, não consigo me afastar. Há algo em você que me atrai. Uma conexão que não sei explicar, mas que desejo entender. Desejo viver.
Engoli em seco, desviando o olhar por um instante. A intensidade daquelas palavras me atingia como uma onda inesperada, e eu precisava de um segundo para não me deixar levar.
— Isso tudo... parece bonito demais para ser real — murmurei, tentando manter a racionalidade. — Não sou do tipo que acredita em encantamentos imediatos. Essas coisas... não acontecem assim, de repente.
Gabriel inclinou levemente a cabeça, como se estudasse cada reação minha. Seu olhar era firme, mas não invasivo. Era como se ele estivesse esperando que eu deixasse uma fresta aberta.
— Talvez não aconteçam com frequência — disse ele, com a voz baixa, quase como uma confidência. — Mas quando acontecem, não se pode simplesmente ignorar. Você nunca pensou que algo forte pudesse surgir sem aviso?
— As pessoas não se apaixonam assim — respondi, mantendo o olhar firme. — Não basta cruzar os olhos com alguém e decidir que há algo profundo. É preciso tempo. Conversa. Conhecimento. E nós... mal nos conhecemos.
Gabriel não respondeu de imediato. Apenas me observou, como se tentasse decifrar o que havia por trás da minha resistência. Levei a taça de vinho aos lábios, tentando disfarçar o incômodo que crescia em mim. O restaurante era belíssimo, discreto, e o jantar impecável — mas nada disso conseguia silenciar o turbilhão que se formava dentro de mim.
— Você está fugindo — ele disse, com suavidade. — E tudo bem. Eu não quero invadir nada. Só quero entender o que está acontecendo entre nós. Porque, Clara... eu sinto. E não é comum eu sentir.
— Sentir o quê? — perguntei, quase num sussurro.
— Que você está aqui, mas não está. Que há algo em você que se esconde atrás de cada resposta calculada. E que, mesmo assim, eu quero descobrir. Quero saber quem você é quando não está se protegendo.
Meu coração acelerou. Não por desejo. Mas por medo. Porque ele estava chegando perto demais. E se descobrisse quem eu era — o que eu estava fazendo ali — tudo desmoronaria.
Talvez por perceber minha inquietação, ele mudou de assunto.
— E quando não está mergulhada no mundo da arquitetura... o que gosta de fazer?
A pergunta me pegou de surpresa, mas agradeci internamente pela mudança de direção. Respirei fundo, tentando recuperar o equilíbrio.
— Gosto de estar com minha amiga Luísa — respondi, buscando leveza na voz. — Ler clássicos da literatura, ouvir música, dançar... Às vezes, apenas observar o mundo em silêncio.
Gabriel inclinou levemente a cabeça, interessado.
— Qual foi o último livro que leu?
Sorri com uma ponta de nostalgia.
— Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Há algo de irônico e profundo naquele narrador defunto que me prende. Amo viajar pelas emoções literárias... É como se cada página me arrancasse da realidade.
— E há quanto tempo leu?
A pergunta me atingiu com uma força inesperada. Pensei em tudo que havia acontecido. O acidente. Pedro. O luto que ainda me envolvia como uma névoa.
— Faz muito tempo — respondi, com um tom mais seco do que gostaria. — Há meses não tenho tempo para mim. Para livros, para música... para nada que não seja sobreviver ao dia.
Gabriel me observou em silêncio. Eu sabia que ele percebia a mudança. O peso nas palavras. A dor que escorria pelas entrelinhas. E, por um instante, senti que ele tentava me alcançar — não com perguntas, mas com presença.
— Sobreviver ao dia — repetiu ele, como se saboreasse a frase. — Isso soa mais profundo do que parece. Você perdeu alguém?
A pergunta veio como um golpe inesperado. Meu corpo reagiu antes da mente. Um leve tremor percorreu minhas mãos, e a taça de vinho quase escorregou.
— Eu... — comecei, hesitando. A resposta estava na ponta da língua. Quase disse: “Gostava de estar com meu irmão Pedro.” Mas a frase morreu antes de nascer. Gabriel não podia saber. Não ainda. Não assim.
— Gosto de estar com pessoas que me fazem sentir viva — corrigi, desviando o olhar. — Que me lembram que há beleza, mesmo quando tudo parece desmoronar.
Ele assentiu devagar, como se respeitasse o limite que eu havia imposto.
— E você, Gabriel? — perguntei, tentando retomar o controle.
— E quando não está atuando... o que gosta de fazer?
A pergunta saiu com naturalidade, mas por dentro eu observava cada nuance da resposta. Não era uma curiosidade inocente. Eu já sabia. Pesquisei sobre ele antes mesmo de ele aparecer na minha empresa. Sabia que estava voltando ao Brasil, que havia se afastado dos palcos por um tempo. Foi a partir disso que tracei meu plano — me aproximar, encontrar uma brecha, chegar até Júlia. Mas ele apareceu antes que eu pudesse me mover. Como se o destino tivesse encurtado o caminho.
Gabriel pareceu notar algo na minha pergunta — talvez o tom, talvez o olhar. Mas respondeu com leveza, como se não desconfiasse de nada.
— Gosto de caminhar, principalmente em lugares antigos. Há algo nas construções que contam histórias silenciosas... Também gosto de fotografia, de observar detalhes que passam despercebidos. E tenho alguns bons amigos, embora a rotina nos afaste às vezes.
— Fotografar histórias silenciosas... — repeti, pensativa. — Isso diz muito sobre você.
— E o que diz?
— Que você vê além do óbvio. Que não se contenta com superfícies. Que talvez... esteja tentando capturar o que não pode ser dito.
Ele me olhou com intensidade. Por um momento, o mundo pareceu se calar ao redor.
— E você, Clara? — disse ele, com a voz baixa. — O que está tentando esconder?
— Acho que todos escondem alguma coisa — murmurei, desviando o olhar. — Às vezes, até de si mesmos.
— Você fala como quem já viveu isso — ele disse, com suavidade. — Como quem conhece bem o silêncio.
— Silêncio pode ser abrigo — retruquei. — Ou prisão.
— E no seu caso?
— Depende do dia.
Gabriel sorriu, mas havia algo de melancólico em seu sorriso.
— Você me intriga, Clara. Não por mistério. Mas por verdade. Você parece carregar uma história que não quer ser contada.
— E você — rebati, encarando-o — parece viver histórias que não são suas.
— É o risco de ser ator — ele disse, com um brilho nos olhos. — Às vezes, a gente se perde nos papéis. Mas às vezes... a gente se encontra neles também.
O silêncio que se seguiu não foi desconfortável. Foi denso. Cheio de significados que nenhum dos dois ousou decifrar.
— E como decidiu ser ator? — continuei, tentando fugir da sua análise, da sua pergunta. Precisava recuperar o controle da conversa, respirar fora da tensão que ele havia criado.
— Foi algo que sempre quis?
— Na verdade, não — ele respondeu, apoiando os cotovelos na mesa com delicadeza. — Quando era criança, queria ser músico. Meu pai é empresário do ramo de hotelaria — dono de uma rede de hotéis. Minha mãe, modelo. Cresci entre lobbies luxuosos e passarelas. A profissão surgiu como uma ponte entre esses dois mundos. Um lugar onde eu podia criar, mas também construir. Comecei com pequenos testes, comerciais, depois vieram os papéis secundários... Mesmo tendo uma base familiar, precisei construir minha própria carreira. E foi aí que descobri que atuar não era só performance — era escuta, entrega, presença.
— Que bonito isso — murmurei, tocada pela imagem. — E quais são suas inspirações?
Ele pensou por um instante, depois respondeu com calma:
— Pessoas que enxergam além da forma. Gosto de artistas que não têm medo de se despir emocionalmente. Me inspiro em Al Pacino, Viola Davis, Caetano Veloso, Clarice Lispector... Mas também em artistas plásticos, em escritores, em músicos de rua. Até em conversas como esta. Tudo pode ser arte, se você souber olhar.
Sorri, sentindo que, aos poucos, a noite ganhava outra textura. Menos dor, mais presença. E, naquele instante, percebi que talvez conhecer alguém fosse mesmo isso: Escutar com atenção. Permitir que o outro se revele aos poucos, como uma construção delicada.
— Mas me diga uma coisa — continuei, inclinando-me levemente. — A vida de ator é tudo isso que parece? O que a gente vê na TV, nas redes sociais... Presentes, eventos, muito dinheiro, glamour, festas, romances que duram pouco?
Gabriel riu, mas havia um peso por trás do riso.
— É tudo isso. E também não é. A fama é uma lente distorcida. Você aparece sorrindo em uma campanha, e as pessoas acham que sua vida é leve. Mas não veem os bastidores. Não veem os dias de exaustão, os roteiros que você lê até de madrugada, os testes que não passam, os papéis que você perde por não se encaixar na imagem que esperam.
— E a privacidade? — perguntei, curiosa.
— Quase inexistente — ele respondeu, sem hesitar. — A mídia te persegue. Te inventa. Te molda. Já li coisas sobre mim que nunca aconteceram. Relacionamentos que nunca existiram. Brigas que nunca tive. E você precisa aprender a respirar dentro disso. A não se perder.
— Mas você ama o que faz?
— Amo — ele disse, com firmeza. — Amo profundamente. Mas amar não significa não sofrer. É cansativo. Mesmo quando tudo dá certo. Você está sempre exposto. Sempre sendo observado. E às vezes... tudo o que você quer é silêncio.
Fiquei em silêncio, absorvendo cada palavra. Ele não falava como um astro. Falava como um homem. E isso me desarmava.
— E quando quer silêncio... para onde vai?
Ele me olhou com ternura.
— Para lugares onde ninguém me conhece. Para ruas sem nome. Para cafés pequenos, onde posso ser só mais um. Ou para dentro de mim — quando consigo.
— E agora... está conseguindo?
Gabriel sorriu, com um brilho contido nos olhos.
— Agora... estou tentando.
Gabriel era discreto. Não daquele tipo que se esconde por timidez, mas por necessidade. Aprendeu a ser assim. A fama cobra silêncio. A exposição exige estratégia. Ele não podia simplesmente existir — precisava calcular cada passo, cada palavra, cada gesto. A perseguição da mídia, os boatos, os olhares que tentam decifrar até o que não foi dito... Tudo isso o ensinou a se proteger. A guardar partes de si como quem esconde um tesouro. E, ali, diante de mim, ele parecia abrir uma dessas partes. Com cuidado. Com intenção.
— E as mulheres com quem você se relaciona? — perguntei, sem conseguir evitar. — Elas não se incomodam com essa vida? Com a fama, com as cenas, com os beijos que não são delas?
Ele riu. Um riso baixo, quase resignado.
— Algumas se incomodam — ele disse. — Outras entendem. Mas para se relacionar com alguém que vive sob os holofotes... é preciso confiança. É preciso maturidade. A pessoa precisa saber separar o que é arte do que é afeto. Ela vai me ver beijar outras bocas, protagonizar cenas quentes, às vezes até intensas... Mas isso não é traição. É trabalho. É criação. Assim como você desenha... eu atuo. É arte.
— Mas eu não faço sexo com meus desenhos — rebati, sentindo o calor subir pelo meu rosto. — Não encosto minha pele em outra pele. Não beijo bocas que não são minhas. Como pode garantir que não é real?
Gabriel me olhou com calma. Havia firmeza em sua voz, mas também uma ternura que me desarmava.
— Porque não é — ele disse. — É ensaiado. Pensado. Criado. Cada cena tem marcação, tem direção, tem luz, tem corte. Não há espontaneidade ali. Há técnica. Há ficção.
— Eu não sei se entenderia — murmurei, mais para mim do que para ele. — Não consigo imaginar meu namorado beijando outras bocas. Tendo cenas quentes com outras pessoas. Eu quero que ele seja só meu.
O silêncio se instalou por um instante. E foi então que percebi. Gabriel estava olhando para minha boca. Não de forma vulgar. Mas como quem observa algo que não deveria, mas não consegue evitar. Seus olhos se fixaram ali, e por um momento, o tempo pareceu suspenso. Como se tudo ao redor tivesse se calado. Como se só existíssemos nós dois.
Meu coração acelerou. E eu não sabia se era medo, desejo ou confusão.
Talvez tudo ao mesmo tempo.
— Se você amasse seu namorado, entenderia — Gabriel disse, com a voz mais firme. — Confiaria. Porque existe respeito. Eu não estou flertando com ninguém nas cenas. Não importa o que as pessoas falam, pensam ou inventam. O que importa é o que é real. E o real... é que há limites. Há ética. Há cuidado.
Senti o peso das palavras. E percebi, no instante seguinte, que ele havia se chateado. Mesmo tentando disfarçar. Mesmo mantendo o tom sereno.
— Me desculpa — falei, quase num sussurro. — Não quis te ofender. Foi só... difícil de imaginar.
Ele balançou a cabeça, com um sorriso leve.
— Não fiquei chateado — mentiu. Mas seus olhos diziam outra coisa. Algo mais profundo. Algo que ele não queria mostrar.
Por um segundo, pensei em Luísa. Na conversa que tivemos. Na sua voz dizendo que eu estava me aproximando de Gabriel por vingança. Por dor. E que isso poderia me machucar ainda mais.
Talvez ela tivesse razão. Talvez eu estivesse mesmo me jogando em algo que não sabia como sair. Mas o pensamento passou rápido. Como uma brisa incômoda. E voltei a olhar para Gabriel, que agora me observava com atenção.
— E você? — ele perguntou, inclinando-se levemente. — Por que escolheu ser arquiteta?
A pergunta me pegou de surpresa. Não pela curiosidade, mas pela forma como ele a fez. Como se quisesse me ver por dentro. Como se quisesse entender o que me movia.
Respirei fundo. E deixei que a resposta viesse, sem filtros.
— Minha mãe é arquiteta — respondi, com um sorriso que veio fácil. — Sempre me inspirei nela. Ela é... o máximo. Desde pequena, eu ficava fascinada vendo seus desenhos, seus projetos, as obras que ela acompanhava. Quando ela estava planejando, arquitetando... parecia que o mundo parava. E eu queria estar ali, dentro daquele universo.
Gabriel me ouvia com atenção, os olhos fixos nos meus.
— Eu vivia imitando os desenhos dela — continuei, rindo com a lembrança. — Pegava papel vegetal, régua, tentava copiar as linhas, os traços. Achava incrível que ela tivesse desenhado a planta da casa onde moramos. Com a ajuda do meu pai, que é engenheiro. Eles construíram tudo juntos. E eu cresci dentro dessa criação.
Suspirei, sentindo o calor da memória.
— Eu adorava viver atrás dela, acompanhando os projetos. Mas o que eu mais amava era quando ela me pedia opinião. Quando me chamava pra ajudar. E, às vezes, ela acatava minhas ideias. Me fazia sentir parte. Como se eu também estivesse construindo algo. Ela foi — e ainda é — minha principal influência. Minha inspiração.
Gabriel sorriu, com uma expressão suave.
— É bonito ver essa relação com sua família — ele disse. — Dá pra sentir o carinho, o cuidado. Nem todo mundo tem isso.
— Minha família é tudo pra mim — falei, com sinceridade. — Somos muito unidos. Cuidadosos uns com os outros.
Parei por um instante. As palavras seguintes quase escaparam. Quase disse: “Mas falta Pedro.” Mas me contive.
Não podia falar dele. Não ali. Não com Gabriel. Porque Júlia é irmã de Pedro. E se ele soubesse... Se descobrisse quem eu sou, o que estou fazendo ali... Tudo desmoronaria.
Então calei. Mas dentro de mim, a ausência dele gritava. A dor silenciosa de não tê-lo completando a felicidade da nossa família. O buraco que ninguém vê, mas que está sempre ali. Um silêncio que não se preenche.
Gabriel não disse nada de imediato. Apenas me olhou com uma delicadeza que me tocou.
— Relações assim são raras — ele disse, por fim. — Mas é bonito de ver. É bonito.
Assenti, sentindo os olhos arderem. Mas não chorei. Porque, naquele momento, havia algo mais forte do que a tristeza. Havia presença. E Gabriel estava ali. Me ouvindo. Me vendo.
Sem saber o que eu escondia. Sem imaginar o nome que eu não podia dizer.
— E você? — perguntei, tentando manter o tom leve. — Como é sua família?
Gabriel sorriu, como se a pergunta o levasse a um lugar confortável.
— Como todas, eu acho — disse. — Temos nossos problemas, nossas brigas... Mas no fim das contas, nos amamos. Nos protegemos.
“Nos protegemos.” Essa frase ficou ecoando em mim.
Observei Gabriel enquanto ele falava. Ele parecia sincero. Orgulhoso, até. Mas me perguntei: até onde ele iria para proteger sua irmã?
Ele mesmo dissera que Júlia era egoísta. Que não protegia ninguém. Nem a si mesma.
Então como todos poderiam se proteger, se uma das peças do quebra-cabeça não se encaixava? Talvez fosse isso. Eles a protegiam. Mas Júlia não se importava em protegê-los.
Ela vivia envolvida em escândalos. E, claro, no acidente. No acidente que matou meu irmão.
Será que eles sentem a mesma dor que eu? Será que pensam na família que foi quebrada por causa das irresponsabilidades da filha mimada e egocêntrica que achava que o mundo girava ao redor dela?
Gabriel continuava falando. Contava detalhes da infância, das viagens, das tradições familiares. E eu escutava tudo com atenção. Não só porque era interessante. Mas porque cada palavra me ajudava a entender como chegar até Júlia. Como confrontá-la.
Quando ele finalmente parou, me olhou com um sorriso suave.
— Falei demais, né?
— Não — respondi, com um sorriso que escondia tudo. — Eu adoro ouvir histórias de família. Mas me diga uma coisa...
Ele arqueou a sobrancelha, curioso.
— Você não tem medo de que eu passe todas essas informações para as revistas e sites de fofoca mais badalados do mundo?
Gabriel me olhou com aquele sorriso tranquilo, quase desarmado.
— Não tenho medo — disse, com firmeza. — Eu confio em você. Se quiser saber alguma coisa, pergunte direto pra mim. Não vou deixar de viver ou de confiar nas pessoas só porque tudo pode acabar nas páginas de fofocas sensacionalistas.
Ele fez uma pausa, os olhos fixos nos meus.
— Sou maduro o suficiente pra lidar com isso. E espero que a pessoa que estiver comigo também seja. Que saiba respeitar. Que saiba separar o que é verdadeiro do que é ruído.
Aquelas palavras me atingiram de um jeito estranho. Porque ele falava de respeito, de maturidade, de confiança... E eu estava ali, escondendo quem eu era. Escondendo o motivo real de estar tão perto.
A conversa fluía com naturalidade, como se fôssemos velhos conhecidos. Mas havia perguntas que eu precisava fazer — não apenas por curiosidade, mas por estratégia.
Cada resposta dele era uma peça. Cada detalhe, uma pista. E eu estava montando o quebra-cabeça que me levaria até Júlia.
Até a verdade.
Até o confronto.
Enquanto tomava um copo d’água, ainda sentada à mesa do restaurante, observei Gabriel.
Ele falava com leveza, com aquele jeito encantador que parecia natural. E era. Ele era bonito. Gentil. Autêntico.
Mas eu não podia me deixar levar.
Enquanto ele falava, eu me perguntava: Até onde eu teria coragem de ir? Até onde eu poderia ir?
Será que eu queria mesmo magoá-lo?
A resposta não era simples. Mas também não era não.
Porque, mergulhada na dor, eu já tinha decidido. Ele podia ser tudo isso — lindo, bacana, confiável. Mas por causa dos meus planos, da minha dor... Não havia limites.
Eu seguiria em frente.
Não via a hora de chegar o momento. O momento de ficar cara a cara com Júlia. De olhar nos olhos dela e perguntar:
— Você tem pesadelos, Júlia? — Quando fecha os olhos, você vê o Pedro? — Como eu vejo?
Será que ela sabe? Será que tem noção da dor que é perder um irmão? Um filho? Um amigo?
Será que ela entende o que causou?
Eu queria ver o sofrimento dela. Queria ver se havia arrependimento. Se havia qualquer sombra de culpa.
Eu jurei isso. Jurei que veria.
E nada — nem Gabriel, nem seus olhos sinceros, nem sua confiança — nada ia me impedir.
Quando o encontro acabou, segui para casa. Já era tarde. O tempo havia passado rápido demais — como se tivesse escorrido entre os dedos.
Entrei em silêncio, sem acender muitas luzes. Fui direto para o banho. A água quente escorria pelo corpo, mas não levava embora o peso que eu carregava. Era como se a noite tivesse deixado marcas invisíveis na pele.
Depois de um tempo, deitei na cama. Fechei os olhos. E vi Pedro.
Seu corpo sem cor. Seus olhos fechados, apagados. A imagem que me assombra todas as noites.
O que será que Júlia disse a ele? O que fez? O que provocou?
E Rafael Duarte... O ex — ou atual, não sei — namorado dela. O homem que jogou o carro do meu irmão na ribanceira.
Pedro implorou? Implorou para que ele parasse, para que deixasse de perseguir?
Será que ele sentiu medo? Será que ele chorou? Ou apenas aceitou, como quem aceita que é o fim?
Lágrimas escorrem dos meus olhos. A angústia me consome. Me força a pegar no sono. Mas os pensamentos não deixam.
Eles giram. Rodam. Me sufocam.
E eu só queria uma resposta. Uma verdade. Um nome que confessasse: “Foi culpa minha.”
Mas tudo o que tenho é silêncio. E a imagem de Pedro, imóvel, sem cor. Como se o mundo tivesse apagado a parte mais viva de mim.