Capítulo 1

Seguir em frente parece uma ideia distante. Quase uma afronta. Como se o mundo exigisse movimento quando tudo dentro de mim parou.

Desde que Pedro se foi, a vida perdeu a cor. Os dias são cinzas, arrastados, e até o sol parece mais frio. A casa dos meus pais, onde ainda moro, virou um santuário de lembranças — cada canto guarda um pedaço dele, cada fotografia é um espelho quebrado, cada silêncio grita o nome que não será mais chamado.

Pedro era mais que meu irmão. Era meu parceiro de vida. Meu equilíbrio. Meu abrigo. E agora, é como se metade de mim tivesse sido arrancada com as mãos, sem anestesia, sem aviso.

Nada preenche. Nada distrai. Tudo dói.

Acordo cedo, mas não por vontade. O sono virou refúgio — e mesmo ele anda falhando. Mamãe b**e na porta do quarto com delicadeza, como se tivesse medo de me quebrar. Às vezes, acho que já quebrei mesmo. E sigo juntando os cacos sem saber se algum dia voltam a formar quem eu era.

Minha melhor amiga, Luíza, tem sido meu fio de sustentação. Ela aparece quase todos os dias, trazendo café, palavras doces e uma paciência que parece infinita. Só ela consegue me fazer rir, mesmo que por segundos. Só ela entende que não é questão de superar — é questão de aprender a respirar com esse buraco no peito. Esse vazio que não se preenche, mas que precisa coexistir com o resto de mim.

— Clara, abre a porta, por favor… — a voz da minha mãe atravessa a madeira com uma ternura que me corta por dentro.

Mas eu não consigo. Não é por falta de amor. É por excesso de dor. Ver o rosto dela, ouvir os passos do meu pai no corredor, sentir o cheiro do café que Pedro adorava… tudo me lembra que ele não está mais aqui.

Ela b**e mais uma vez. Espera. E depois se afasta. O silêncio volta, pesado, como sempre — como se a casa inteira segurasse a respiração.

Me levanto devagar, como quem carrega o mundo nas costas. O quarto, o mesmo desde a infância, virou um altar de ausências. A camiseta do Pedro jogada na cadeira, o livro que ele me emprestou e que nunca devolvi, a foto de nós dois no porta-retrato. Cada objeto é uma ferida aberta. Cada lembrança, uma âncora.

Tudo me prende aqui. Tudo me machuca. Até o ar parece doer.

Me aproximo da cadeira e pego a camiseta. Ainda tem o cheiro dele. Um cheiro que o tempo insiste em apagar, mas que minha memória se recusa a deixar ir. Aperto o tecido contra o rosto, como se pudesse trazer Pedro de volta por alguns segundos.

Sento na beirada da cama, o livro entre as mãos. “Lê logo, você vai amar”, ele disse. Nunca li. Agora, cada página parece um território sagrado, como se abrir o livro fosse abrir uma ferida nova.

Lá fora, ouço Luíza chegando. O portão range, os passos leves no corredor. Ela não b**e — entra direto, como sempre fez. E isso, por algum motivo, me acalma. Ela aparece na porta do quarto com um sorriso tímido e uma xícara de café.

— Trouxe reforço — diz, estendendo a xícara. — E não precisa dizer nada. Só respira.

Respiro. Pela primeira vez no dia, respiro de verdade.

                                                                    💞

Os dias passam como se fossem todos iguais. O tempo não cura — ele apenas arrasta. Cada manhã é uma repetição da anterior: o mesmo quarto, o mesmo silêncio, o mesmo peso no peito. Fugir do mundo virou rotina. Fugir de mim mesma, impossível.

A dor não diminui. Ela muda de forma. Às vezes é um nó na garganta, outras vezes um grito engasgado que ameaça explodir. Há dias em que ela se disfarça de cansaço, outros em que se veste de raiva. E o ódio… esse cresce. Silencioso, persistente. Cresce como erva daninha, se enraizando em cada pensamento, sufocando qualquer tentativa de paz.

Não sei se quero gritar ou desaparecer. Só sei que sinto uma dor, um ódio... 

Ódio. Ódio por quem arrancou o Pedro da minha vida. Ódio por quem continua respirando, sorrindo, vivendo — como se nada tivesse acontecido.

Júlia invade meus pensamentos com frequência. Ela se aproximou dele por razões que ainda não consigo entender. Talvez nunca entenda. Pedro era bom demais para aquele mundo, para aquela gente. E, mesmo assim, foi puxado para dentro de uma história que não era dele. Uma história suja, egoísta, cruel.

No fim, essa história tirou sua vida.

E o que me corrói é saber que ele confiou. Que ele entrou de olhos abertos, sem imaginar que o chão desapareceria sob seus pés. Que alguém como ela — alguém tão vazia — pudesse causar tanto estrago.

Parte de mim quer culpá-la. Gritar, apontar o dedo, exigir respostas. Outra parte só quer entender. Mas entender exige força — e eu ainda sou só cacos espalhados no chão.

Pedro enxergou nela uma moça doce, frágil, alguém que precisava de cuidado. E Pedro cuidava. Era o que ele fazia. Era quem ele era. Mas Júlia não era só isso. Ela trazia bagagens que ele nunca viu. Histórias mal resolvidas, amores doentios, um passado que ela escondeu atrás de olhos tristes e sorrisos quebrados.

Ela não contou. Não avisou. Não o protegeu.

E Pedro entrou de peito aberto, sem saber que estava pisando num terreno minado.

E por isso, ele se foi.

Repito essa frase todos os dias. Como um mantra amargo. Como uma sentença sem apelação. Como se, ao repetir, eu pudesse mudar o desfecho — mas não muda. Nunca muda.

Pedro morreu por causa de Júlia. Por causa do ex dela. Por causa de um jogo emocional que ele nunca quis jogar, mas foi arrastado para dentro sem aviso, sem escolha.

O ódio que sinto por Júlia é como febre que não cede. Arde em silêncio, consome por dentro. Quero respostas. Quero saber o que ela fez, o que deixou de fazer, o que escondeu atrás daquele olhar de vítima.

Mas mais do que isso — quero que ela sinta. Que ela sofra. Que ela carregue o mesmo peso que agora vive nos ombros de quem ficou. Que cada passo dela ecoe com a ausência de Pedro. Que o nome dele a persiga nos sonhos, nos silêncios, nos dias em que o mundo parece normal demais.

Porque nada mais é normal. Não desde que ele se foi.

— Você vai pagar por isso — sussurro para mim mesma, encarando o teto como se fosse um tribunal silencioso, impassível, onde só a dor tem voz.

Não sei como. Ainda não. Mas sei que vai. Porque há feridas que não cicatrizam. Há perdas que não se aceitam. E há promessas que só se cumprem com vingança.

Dois meses. Sessenta dias desde que o mundo desabou. Desde que o nome dele virou ausência. Desde que o silêncio da casa passou a gritar.

Me pego pesquisando sobre ela. Júlia Andrade. Digito com os dedos trêmulos, o coração em disparada, como se cada letra fosse uma chave para entender o que nunca fez sentido.

Júlia Andrade. O nome pulsa na tela como uma sentença. Como se bastasse encontrá-la para que tudo se encaixasse — ou explodisse de vez.

A tela se enche de manchetes. Algumas antigas, outras recentes. Todas carregadas de escândalo, tragédia e silêncio.

“Após o acidente que abalou a cidade, Júlia Andrade permanece reclusa. A família evita comentários, mas fontes próximas afirmam que ela está em tratamento psicológico. A jovem, envolvida com o empresário Pedro Tavares, foi apontada como figura central em um conflito que culminou em morte. Seu ex-namorado, Rafael Duarte, está preso, acusado de perseguição e  homicídio. Júlia não foi vista desde então.”

“Ainda assim, não há confirmação oficial sobre seu estado. Há quem diga que o suposto tratamento é apenas uma desculpa conveniente. Júlia sempre foi conhecida por seu temperamento mimado e por agir sem medir consequências.”

“A família de Pedro Tavares não se pronunciou. Nenhuma entrevista foi concedida. O silêncio permanece absoluto.”

As palavras piscam na tela como farpas. Cada linha é uma ferida reaberta. Cada parágrafo, um lembrete cruel de tudo que foi perdido — e de tudo que ainda está encoberto.

Júlia Andrade. O nome dela agora carrega peso, mistério, e uma ausência que grita. E eu continuo aqui, lendo, relendo, tentando juntar os cacos de uma história que nunca deveria ter sido escrita.

Ela sumiu. Como se pudesse apagar tudo. Como se o silêncio bastasse para enterrar o que fez.

Fecho o navegador com raiva. A imagem dela, mesmo ausente, me persegue como um fantasma insolente.

— Ela não pode simplesmente desaparecer — murmuro, encarando a tela preta do computador, como se ela pudesse me devolver alguma resposta.

— Ela precisa ouvir. Ela precisa sentir.

Luíza entra no quarto devagar, como quem pisa em território minado. Me observa em silêncio, os olhos carregando aquela mistura de preocupação e carinho que só ela sabe ter.

— Você ainda está procurando por ela?

— Eu vou encontrá-la — respondo, sem hesitar. — Nem que seja no inferno. Ela vai me ouvir. Vai saber o que fez. Vai carregar essa dor como eu carrego.

Luíza se aproxima, senta na beirada da cama. A voz dela vem baixa, mas firme:

— Clara… às vezes, a justiça que a gente quer não é a que a vida entrega.

— Então eu vou buscar a minha — digo, com a voz cortante. — Do jeito que for.

Pedro não era só meu irmão. Era meu melhor amigo. Meu confidente. Meu ponto de equilíbrio num mundo que sempre pareceu instável demais.

Desde que ele se foi, tudo desmoronou. Minha vida profissional, que eu ergui com tanto esforço — tijolo por tijolo, projeto por projeto — virou ruína silenciosa. A arquitetura, que antes me dava sentido, agora é só um eco distante. Não consigo me concentrar. Não consigo fingir que a vida continua. Porque ela não continua. Ela congelou no instante em que Pedro morreu.

Desde então, tudo parece fora de lugar. Como se o mundo tivesse perdido a simetria. Como se cada parede que eu desenhei estivesse prestes a cair.

— Ele era minha outra metade — digo a Luíza, sem tirar os olhos da xícara de café entre suas mãos. — Como se vive com metade do coração enterrado?

Ela não responde. Apenas segura minha mão com força, como se quisesse impedir que eu afundasse mais.

— Eu vou conhecer Gabriel Andrade — continuo, com a voz firme, quase cortante. — Ele está voltando ao Brasil. Li numa matéria que é ator, mora fora há anos, mas vem apoiar a irmã. Ele sabe onde Júlia está.

Luíza arregala os olhos, surpresa e assustada.

— Você vai se aproximar dele?

— Sim. — Ele é a chave. Ele vai me levar até ela. E eu vou descobrir. Tudo. — Nem que eu tenha que arrancar a verdade com as mãos.

Luíza respira fundo, como se quisesse dizer algo, mas se cala. Ela sabe que, naquele momento, não há espaço para conselhos. Só para promessas.

— Clara… você acha mesmo que ele não vai te reconhecer? Que não vai perceber quem você é?

— Não saiu foto minha em lugar nenhum. Meu pai fez questão disso. Em meio à tragédia, ele tentou proteger o que sobrou de nós. Gabriel não faz ideia de quem eu sou. E mesmo que soubesse… eu atravessaria qualquer linha para chegar até ela.

Luíza respira fundo. Como quem procura palavras num lugar onde só há silêncio.

— Isso é perigoso.

— A dor também é — respondo, sem hesitar. — E eu já estou vivendo com ela todos os dias. — A diferença é que ela me consome em silêncio. — Agora, eu quero que ela grite.

Eu ainda não consigo aceitar. Pedro se foi — e eu não tive tempo. Não houve despedida, nem abraço final. Não pude dizer o quanto ele era importante. Não disse que o amava.

Essas palavras ficaram presas. Engasgadas. Como se esperassem um momento que nunca chegou. Como se o tempo tivesse nos traído.

E agora, o que mais dói não é só a ausência dele. É o eco do que não foi dito. O silêncio das palavras que ficaram no peito, sufocadas. O amor que não virou som. A saudade que não teve chance de se despedir.

Lembro do último abraço. Foi no dia da festa. O aniversário de nós dois — como sempre, comemorado juntos, como se o mundo girasse só ao nosso redor por algumas horas. Pedro estava radiante. Tinha aquele sorriso fácil, aquele jeito de fazer todo mundo se sentir em casa. Eu o abracei forte, desejei feliz aniversário, e ele riu, dizendo que aquele ano seria diferente. Que tudo ia mudar.

E mudou. Mas não do jeito que ele imaginava.

Aquele abraço foi o último. A última vez que senti o calor dele, o cheiro familiar, a segurança de tê-lo por perto. Naquela noite, Pedro desapareceu. E eu nunca mais o vi o brlho do seu olhar e seu sorriso que me fazia sorrir...

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