Capítulo 2

Agora estou aqui. Na Tavares Arquitetura e Engenharia, cercada por projetos, reuniões e vozes que parecem sempre saber exatamente para onde estão indo. Eu, por outro lado, ainda estou tentando lembrar como se caminha.

Desde que Pedro se foi, tudo mudou de cor. O trabalho, que antes me preenchia, agora exige esforço. Concentrar-se virou um exercício de resistência — como segurar o ar por tempo demais. Mas estou tentando. Um dia de cada vez. Às vezes, uma hora de cada vez.

Hoje, recebi um novo projeto. Um cliente quer transformar sua casa em um espaço que o represente. Um lar com alma, ele disse. E essa frase ficou comigo. Porque desde que perdi Pedro, minha própria casa parece ter perdido a alma. Talvez, ao desenhar a dele, eu encontre um traço do que ainda vive em mim.

Quando abri a ficha do novo cliente, algo me fez parar. Gabriel Andrade.

O nome ecoou como uma nota dissonante no meio da rotina. Ator. Trinta anos. Famoso. Cercado por holofotes, entrevistas calculadas e uma névoa de mistério que parecia parte do figurino. Nunca o conheci pessoalmente, mas sabia o suficiente — o sobrenome, a influência, a proximidade com Júlia.

Foi como se o destino tivesse decidido sair do silêncio. Eu não precisei enviar propostas, nem acionar contatos. Ele veio até mim.

E naquele instante, algo se deslocou dentro de mim. Gabriel pode ser a chave. E eu estava prestes a girá-la.

Enquanto organizo os materiais sobre a mesa, tentando parecer profissional, flashes do dia em que tudo se foi me atravessam como relâmpagos.

O olhar perdido do meu pai, como se buscasse respostas num lugar onde já não havia perguntas. O silêncio da minha mãe, denso, quase sagrado, como se qualquer palavra pudesse quebrar o que restava. E eu, com o coração disparado, sentindo — sem precisar ouvir — que o mundo havia mudado de forma.

Foi o dia em que o chão deixou de ser firme. Em que o tempo parou, mas a vida continuou, exigindo de mim uma força que eu ainda não sabia se tinha.

Pedro e eu sempre tivemos essa conexão silenciosa, quase inexplicável. Dois lados da mesma moeda, girando juntos no mesmo eixo. Quando ele ria, algo em mim se iluminava. Quando ele chorava, mesmo sem saber o motivo, eu chorava junto — como se nossas almas compartilhassem o mesmo espaço.

A gente sempre dizia que se amava. Era natural, como respirar. Sem vergonha, sem cerimônia — só verdade. E mesmo com todas as vezes que eu disse “eu te amo”, o que me dilacera é não ter dito uma última vez. Não ter segurado sua mão. Não ter olhado nos olhos dele e dito com calma, com carinho, com aquela força que só o fim exige: " Pedro. Eu te amo.”

Gabriel não sabe disso. Não sabe que, para mim, ele é mais do que um cliente. É uma ponte. Um elo. Uma chance de chegar até Júlia. E talvez, enfim, entender o que aconteceu. Dar nome ao silêncio. E quem sabe, encontrar um jeito de seguir.

— Senhorita Clara?

A voz de Marta, sempre precisa, me arranca do redemoinho de pensamentos. Ela surge à porta com sua postura impecável e um leve sorriso nos lábios — aquele tipo de sorriso que parece saber mais do que diz.

— O Senhor. Andrade chegou. Está na sala de reuniões. Disse que veio conhecer seu trabalho pessoalmente.

Assinto, tentando recompor a expressão, alinhar a respiração, vestir a compostura. O nome dele já havia circulado pelos corredores da empresa nos últimos dias. Gabriel Andrade. Ator conhecido, presença constante nas telas e nos bastidores. Agora, interessado em transformar a casa onde ficará por um tempo. E, por algum motivo que ainda não compreendo, escolheu a Tavares Arquitetura e Engenharia. Escolheu a mim.

Caminho pelo corredor com passos contidos, como quem tenta não acordar algo dentro de si. Luíza, minha melhor amiga, me acompanha em silêncio. Ela sabe. Sabe que esse encontro carrega mais do que um contrato. Sabe que o nome Andrade não é neutro para mim. Que há histórias por trás dele. E que, talvez, hoje seja o início de algo que vai muito além de um projeto.

A porta está entreaberta. Gabriel está de pé, observando uma maquete sobre a mesa. Veste uma camisa branca, as mangas dobradas nos antebraços, revelando uma informalidade elegante. O cabelo castanho-escuro está levemente desalinhado, como se tivesse acabado de sair de uma cena — ou de um pensamento profundo. Os olhos azuis, intensos, percorrem o ambiente com atenção. Há algo nele que prende o olhar — talvez a forma como escuta o espaço, como se estivesse tentando decifrá-lo com os sentidos, não apenas com os olhos.

Ele se vira ao ouvir meu nome. E então, nossos olhos se encontram pela primeira vez.

Não digo nada. Mas dentro de mim, tudo se move — como se algo antigo tivesse sido despertado, como se o tempo tivesse mudado de ritmo.

Ajusto a postura, tentando disfarçar o turbilhão que se forma. Gabriel se aproxima com um sorriso fácil, do tipo que ilumina sem esforço, como quem já está acostumado a ser bem-vindo. Estende a mão com naturalidade, sem pressa, como se o gesto carregasse mais do que uma apresentação.

— Gabriel Andrade — diz ele, com a voz firme, mas gentil, como quem sabe exatamente o peso que seu nome carrega.

— Clara Tavares — respondo, estendendo a mão com elegância contida. — Seja bem-vindo à Tavares Arquitetura e Engenharia.

Aperto sua mão. O toque é firme, quente. Um gesto simples — banal, até — mas que me atravessa como uma lâmina silenciosa. O rosto dele me é familiar. Não das telas, não dos jornais. É familiar como uma memória que nunca pediu para existir. Ele está aqui. Tão perto. E ao lado da irmã que virou minha vida do avesso.

— Fico feliz por ter vindo — digo, mantendo o tom profissional, como quem ergue uma ponte sobre águas turbulentas.

— Eu também. Tenho acompanhado seus projetos. Gosto da forma como você transforma espaços em lugares que respiram. E eu... preciso disso agora.

— Então vamos conversar sobre o que você precisa. E sobre o que quer deixar para trás.

Ele me olha. Não com pressa, nem com desconfiança. Apenas olha. O silêncio entre nós não é vazio — é denso, quase palpável. Cheio de memórias que não foram ditas, de histórias que ainda não sabem se querem existir.

E eu? Eu estou aqui. Não apenas como arquiteta. Estou aqui como quem perdeu. E que talvez, entre plantas e paredes, encontre alguma resposta. Ou pelo menos, um lugar onde a dor possa respirar diferente.

— Você foi muito bem recomendada — disse ele, virando-se para mim com naturalidade, como quem já havia me imaginado ali, naquele exato lugar.

— Meu amigo e assessor pesquisou bastante antes de chegar ao seu nome. Disse que sua abordagem é sensível, mas firme. Exatamente o que quero para minha casa.

— Eu sou boa no que faço — respondi, sem hesitar. Mantive o olhar firme, mesmo sentindo o peso invisível de estar tão perto dele. Tão perto da história que, sem saber, ele carregava comigo.

— E a sua casa ficará como quer — acrescentei, com a voz mais baixa, mas segura. — Só precisa de alguém que saiba escutar.

Ele assentiu — com a tranquilidade de quem não precisa de provas, apenas presença. Caminhou até a janela, os passos lentos, quase meditativos. Do outro lado do vidro, a cidade se desenhava em traços difusos, como se também estivesse tentando lembrar de algo esquecido. O silêncio entre nós era espesso, mas não incômodo. Era como abrir uma porta antiga, sabendo que o que está atrás dela não é exatamente esquecimento — é apenas o que ficou esperando.

— Quero que minha casa tenha o ar de aconchego. De calma. Um lugar onde se possa construir família — disse ele, com um tom que misturava saudade e o desejo silencioso de recomeçar.

— Um espaço onde eu possa receber amigos, curtir uma boa música. Um lugar vivo. Para construir histórias. Para construir uma família para mim.

Ele se virou, os olhos mais suaves agora, mas ainda atentos. Havia algo vulnerável naquele olhar — como quem não está apenas encomendando um projeto, mas oferecendo um pedaço de si. Como quem, sem dizer, confessa: “a minha casa é também o que sobrou de mim.”

— Você tem alguma sugestão de como posso fazer isso?

A pergunta me atravessou. Não pela complexidade, mas pela confiança. Ele estava me pedindo ideias para restaurar algo íntimo. Algo que, para mim, ainda era território em ruínas.

— Podemos começar pelas memórias — respondi, escolhendo cada palavra como quem pisa em chão instável. Como quem sabe que, às vezes, reconstruir exige mais do que tijolos. Exige coragem para lembrar.

— Criar espaços que convidem à permanência — comecei, deixando as palavras fluírem com cuidado. Salas que abracem. Jardins que contem histórias. Talvez uma biblioteca com objetos afetivos, uma parede de fotografias em preto e branco, uma cozinha que cheire a infância. Música ambiente que mude com a luz do dia. Texturas que despertem lembranças — como se o espaço pudesse tocar a alma sem dizer uma palavra.

— E talvez... — continuei, hesitando — um espaço para o silêncio. Um cômodo sem função definida. Um lugar para estar, apenas. Porque às vezes, o que mais precisamos é de um lugar onde não somos obrigados a ser nada.

Ele me olhou com atenção. Não era apenas escuta — era tentativa de decifrar. Como se procurasse, nas entrelinhas, o que eu não dizia. Como se soubesse que, por trás da proposta, havia uma história que também pedia reconstrução.

— Gosto disso. Voltar emocionalmente — repetiu, quase num sussurro, como quem testa o peso da frase na própria boca.

— É exatamente o que quero.

E naquele instante, entendi: ele não falava apenas da casa. Falava de si. De Júlia. Do que se perdeu — e do que talvez ainda tenta encontrar. E, sem saber, falava também de mim.

Assenti, silenciosa. Gravei cada palavra, cada nuance, como quem recolhe fragmentos de algo antigo. Gabriel falava com a naturalidade de quem acredita estar começando algo novo. Sem perceber que, para mim, cada frase era uma escavação. Cada gesto, uma escuta do que ficou soterrado.

Ele parecia não ter a menor ideia de quem eu era. E isso, curiosamente, me dava vantagem. A ausência de reconhecimento me oferecia espaço — para observar, para decifrar, para desenhar meu próprio mapa de intenções. Mas também doía. Porque enquanto ele falava de recomeço, eu ouvia o eco do fim.

A ansiedade que ele chamava de renovação, para mim, era o prenúncio do que ainda precisava ser desenterrado. O novo capítulo que ele desejava escrever era, na verdade, o epílogo da minha dor. E cada tijolo que ele queria restaurar, eu queria escavar. Não para reconstruir — mas para entender o que foi enterrado junto com Pedro. O que ficou sob os escombros. O que ainda pulsa, mesmo soterrado.

Ele continuava falando, gesticulando com leveza, como quem descreve um sonho que ainda não sabe se quer acordar. Eu o observava com atenção — e com cautela. Havia algo na forma como ele evitava certos termos — “família”, “história”, “passado” — que dizia mais do que qualquer confissão. Júlia estava ali. Não dita, mas presente. Invisível entre as palavras, como uma sombra que ele não sabia se queria nomear.

E eu estava ali também. Tentando decifrar o que ele sabia. Ou o que escolhia não saber.

A sala permanecia em silêncio, exceto pelo som distante da cidade lá fora — um ruído que parecia vir de outro tempo. O sol atravessava a janela com timidez, desenhando sombras sobre a mesa entre nós, como se também tentasse entender o que estava sendo dito.

E eu, sentada diante dele, não era apenas arquiteta. Era testemunha. Era sobrevivente. Era alguém que, por ironia do destino, fora chamada para redesenhar o cenário onde tudo começou a ruir.

Ele me olhou, esperando uma resposta. Eu sorri — profissional, contida. Mas por dentro, cada gesto meu era uma escavação. E cada palavra dele, uma pista enterrada sob camadas de silêncio.

Como ele não me reconheceu?

Irmã de Pedro. O mesmo sobrenome. Tavares.

Será que há tantas famílias com esse nome em Florianópolis? Será que ele nunca ouviu falar de mim? Ou será que simplesmente escolheu não lembrar?

Essas perguntas me atravessavam enquanto ele falava sobre paletas de cores, sobre texturas que evocassem calma. Eu assentia, anotava, respondia com profissionalismo. Mas por dentro, cada palavra dele era uma provocação. Cada escolha estética, uma ironia.

Será que ele não viu meu nome nos documentos? Clara Tavares. Será que não fez a conexão? Ou será que fez — e está fingindo?

Talvez ele tenha aprendido a sorrir assim. Com leveza. Com controle. Como quem domina o próprio rosto. Talvez seja talento. Talvez seja defesa. Talvez seja o modo como ele aprendeu a sobreviver — apagando rostos, nomes, histórias.

— Gosto da ideia de usar madeira clara — disse ele, folheando uma revista de referência. — Traz uma sensação de acolhimento, não acha?

— Sim — respondi, mantendo o tom neutro. — A madeira tem memória. Ela guarda o tempo.

Ele me olhou por um segundo. Um segundo longo demais. Como se aquela frase tivesse tocado algo que ele não queria nomear. Mas não disse nada. Apenas sorriu. De novo. E aquele sorriso, mais uma vez, me desmontou.

Eu queria perguntar. Queria dizer: “Você sabe quem eu sou?” Queria gritar: “Pedro era meu irmão.” Mas não podia. Ainda não.

Porque se ele não sabia, eu tinha vantagem. E se sabia, eu precisava descobrir o que estava escondendo. O que havia por trás daquele sorriso bonito demais. Leve demais. Controlado demais.

— Clara? — ele chamou, interrompendo meus pensamentos. — Está tudo bem?

— Sim — menti, com um sorriso ensaiado. — Só estava pensando em como vamos começar.

Ele assentiu, com a segurança de quem acredita ter a resposta certa.

— Começamos pelo que precisa ser curado.

E eu, por um instante, não soube se ele falava da casa. Ou de nós. Ou de algo ainda mais antigo, mais fundo, que nenhum projeto poderia restaurar.

Marcamos um novo encontro para discutir a decoração da casa. Gabriel queria estar presente — não apenas como cliente, mas como parte viva do projeto. Acompanharia cada etapa, cada escolha. E eu também. Trabalhar juntos seria mais do que transformar um espaço. Seria uma chance de me aproximar. De observar. De entender o que ele dizia — e o que deixava escapar.

Quando ele sorriu, algo em mim se desfez. Era um sorriso bonito, aberto, quase gentil demais. Um sorriso que parecia não carregar culpa. E isso me encantou. E me irritou. Irritou-me profundamente perceber que um rosto e um sorriso ainda tinham esse poder sobre mim. Como se meu coração não tivesse aprendido nada com o que veio antes.

No caminho de volta, enquanto cruzava avenidas que pareciam indiferentes ao que eu sentia, Pedro se fez presente em cada pensamento. As linhas retas dos prédios, os ângulos das marquises, até os vazios entre as construções — tudo parecia carregar sua assinatura invisível. Como se a cidade, sem saber, ainda o desenhasse.

Ao passar por um grande condomínio à beira da estrada, o nó na garganta veio sem aviso. Aquele projeto tinha sido nosso. Ele, com o olhar amplo de arquiteto brilhante. Eu, com a obsessão pelos detalhes. Éramos o encaixe perfeito: Ele via o todo. Eu mergulhava nos pequenos traços. Juntos, dávamos forma ao que ainda não existia.

Agora, tudo existia sem ele. E eu, sem saber, continuava procurando por suas linhas no concreto da cidade.

Pedro não desenhava apenas estruturas. Desenhava possibilidades. Cada planta que criava era uma promessa: De vida. De encontros. De histórias ainda por acontecer.

Trabalhar com ele era conversar sem palavras. Bastava um olhar, um esboço — e tudo fluía. Ele pensava o espaço como quem pensa o corpo: Cada parede precisava respirar. Cada janela era um convite ao mundo.

Agora, só restava o silêncio. E a cidade, que antes era palco dos nossos sonhos, virou um arquivo vivo daquilo que não voltaria. Como se cada rua, cada fachada, cada sombra guardasse o eco de um futuro que ficou suspenso.

A lembrança do que construímos juntos estava espalhada por ali — como fragmentos de uma história que ninguém mais sabia que existia. Vestígios invisíveis, impressos no concreto, nas linhas, nos vãos. Como se a cidade ainda carregasse, sem saber, o eco de nós dois.

E eu, que antes ajudava a escolher os revestimentos, os tons, os detalhes que davam alma aos projetos, agora me via tentando revestir a ausência. Tentando dar forma ao vazio. Como se fosse possível decorar o luto.

O condomínio passou pela janela como uma maquete distante. Lembrei da primeira vez que Pedro me mostrou o conceito: "Quero que as pessoas sintam que estão entrando num lugar que foi pensado para elas."

E agora, ali estava ele — o lugar. Mas sem Pedro. Sem nós. Pensado para outros. Vivido por estranhos. E eu, do lado de fora, tentando lembrar como era estar dentro.

Era isso que ele fazia. Pensava nas pessoas. Pensava em mim.

Agora, tudo que resta são estruturas. E eu, tentando não desmoronar.

Chego em casa mergulhada nas lembranças que machucam. Cada passo ecoa como se a casa estivesse vazia, mesmo cheia. Não quero encontrar meus pais. Não quero ouvir vozes, nem sentir olhares que tentam me alcançar. Eles me observam com cuidado — como quem pisa em vidro. Mas não há palavras que me toquem agora. Nada atravessa.

Subo direto para o meu quarto. Mas ao passar pela porta do quarto do Pedro, não resisto. A mão toca a maçaneta como se tivesse vontade própria. Como se o corpo soubesse o que a mente tenta evitar.

Abro devagar. Entro. E o silêncio ali dentro não é ausência. É presença. É ele, ainda ocupando o espaço com tudo que deixou. Como se o tempo tivesse parado só ali.

Tudo está exatamente como ele deixou naquela noite. A cama arrumada com precisão. Os livros empilhados na escrivaninha, como se aguardassem por mais uma leitura. O tênis jogado no canto, distraído, como se fosse voltar a qualquer momento. Um leve cheiro de madeira e perfume ainda paira no ar — como se o tempo tivesse parado ali, respeitando sua ausência. Como se o quarto soubesse que ele não voltaria, mas ainda assim esperasse.

Me sento no chão, encostada na parede, e fico olhando nossas fotos. A última viagem. Os sorrisos. Os planos. Comemorávamos a vida e os projetos que estávamos desenvolvendo juntos na Tavares Arquitetura e Engenharia. Tudo parecia tão certo. Tão sólido. Como se o futuro tivesse sido desenhado com régua e compasso. Mas ninguém nos ensinou a calcular o impacto da ausência. Nem a projetar o vazio.

Naquela noite, a noite da festa — onde tudo aconteceu — ele saiu sem dizer muito.

Não vi o silêncio por trás do gesto. Não vi o adeus disfarçado de rotina. Não vi que, enquanto todos brindavam o futuro, ele já estava se despedindo.

Agora, cada lembrança daquela noite parece iluminada por uma luz diferente. Como se tudo tivesse sido dito sem palavras. E eu, sem saber, deixei que ele partisse sem escuta.

A sala dele na empresa continua trancada. Ninguém teve coragem de entrar. Ninguém quer encarar suas últimas lembranças. Nem os croquis espalhados. Nem os papéis rabiscados com ideias que só ele entendia. Como se o espaço ainda pertencesse a ele. Como se abrir a porta fosse romper um pacto com o tempo — um pacto feito de ausência e respeito.

Às vezes imagino o que ele teria deixado ali. Um projeto inacabado? Um bilhete? Um traço que revelasse o que ele sentia nos últimos dias? Algo que escapou por entre as palavras que ele não disse.

Reparo num caderno de capa preta, meio escondido sob a escrivaninha. Pego com cuidado, como quem toca uma memória viva. É um dos cadernos de esboços. As páginas estão cheias de linhas, formas, ideias. Mas entre elas, há frases. Pequenas anotações. Fragmentos de pensamento. Como se, entre um traço e outro, ele tentasse dizer o que não disse. Como se o desenho fosse o único idioma que restou.

“Clara entende o espaço como ninguém.” “Projeto da casa no campo — quero que ela escolha as janelas.” “Não esquecer de dizer que ela é minha melhor parceria.”

Fecho os olhos. Seguro o caderno contra o peito, como quem tenta segurar o tempo.

— Você disse, Pedro. Só não com palavras.

Ali, sentada no chão do quarto dele, tudo parece mais real. A ausência tem forma. Tem cheiro. Tem textura. Está nas páginas, nas frases, nos traços que ele deixou. E pela primeira vez desde que ele se foi, sinto que estou dentro de algo que ele construiu para mim. Um espaço de memória. Um abrigo invisível. Um gesto silencioso de afeto que sobreviveu ao fim.

Adormeço ali, na penumbra da noite, sem perceber. Acordo com o corpo dolorido, sem saber a hora em que apaguei. O chão duro, o silêncio denso — tudo parece ter me engolido por algumas horas. Como se o tempo tivesse suspendido sua lógica só ali.

Vou direto para meu quarto. Tomo um banho rápido, tentando lavar o peso que não sai com água. Depois desço para o café.

Meus pais já estão ali. Presentes, mas quebrados. Sofrem em silêncio — mas sofrem. E eu vejo isso. Mesmo quando fingem que não. Mesmo quando tentam sorrir com os olhos, como se o gesto pudesse costurar o que está rasgado.

Laura e Carlos trocam olhares antes de falar comigo. Há receio na voz deles. Como se pisassem em vidro. Como se qualquer palavra pudesse estilhaçar o pouco que ainda sustenta o dia.

— A Luíza indicou um psicólogo — diz meu pai, com cuidado. — Talvez seja bom pra você conversar com alguém.

— Ela já foi? — respondo, sem disfarçar a irritação. — Por que todo mundo está focado na minha dor? Por que cada um não cuida da sua e me deixa sentir a minha?

Minha mãe tenta manter a firmeza. Mas a voz dela vacila.

— Porque você é a única que se prende a ela.

Silêncio.

Um silêncio que não é ausência de som. É excesso de tudo que não foi dito. É o peso da dor que cada um carrega do seu jeito — mas que, em mim, parece ter feito morada.

— Não. É porque todos vocês fingem que nada mudou. Mas tudo mudou. Meu irmão morreu. E está todo mundo sorrindo para o mundo. A Júlia está por aí, como se nada tivesse acontecido. O Rafael tentando sair da prisão, como se ainda houvesse futuro. E o Pedro? O Pedro está morto. E ninguém parece lembrar disso.

Mas não é só dor. É confusão. É o peso de tantas camadas que ainda não consegui organizar. É como viver dentro de um projeto mal desenhado — sem eixo, sem escala, sem saída.

Luíza é minha amiga. Minha melhor amiga. Desde sempre. Crescemos juntas, estudamos juntas, e quando Pedro começou a desenhar os primeiros projetos da Tavares Arquitetura e Engenharia, ela estava lá. Como parceira. Como alguém que acreditava tanto quanto nós. Ela viu tudo nascer. Ela viu tudo ruir. E mesmo assim, agora, parece que todo mundo quer seguir em frente — menos eu.

Ela conhecia cada cláusula, cada contrato, cada risco. Mas também conhecia Pedro. Talvez melhor do que qualquer outra pessoa — além de mim.

Sempre foram próximos. Os três éramos inseparáveis. Mas com o tempo, ficou claro: Luísa sentia algo mais.

Ela o amava.

Nunca disse com todas as letras. Mas eu sabia. Via nos gestos. Nas pausas. Nos olhares que duravam um pouco mais do que deviam. Nos silêncios que diziam o que as palavras não ousavam.

E Pedro... Pedro era um universo à parte. Meu irmão. Meu melhor amigo. Meu parceiro de ideias.

Brilhante. Intenso. Generoso. Mas também imprevisível — como quem vive sempre à beira de um novo traço.

Pedro, por sua vez, dizia que estava esperando o amor da sua vida se declarar.

“Ela sabe quem é,” — ele me disse uma vez, com aquele sorriso meio torto. — “Mas ainda não teve coragem.”

Eu nunca soube se Pedro falava de Luiza. Ou achava que não sabia.

Luíza nunca disse nada. Nunca se colocou no meio. Mas também nunca se afastou. E isso me deixava inquieta.

Eu não sabia se havia algo ali — ou se era só a minha cabeça tentando encontrar sentido onde não havia. Mas o silêncio deles me dizia mais do que qualquer explicação. E eu, no fundo, sempre soube que havia alguma coisa. Mesmo que ninguém tivesse coragem de nomear.

Porque às vezes, no meio de uma conversa qualquer, ele dizia coisas que não pareciam para mim. Frases soltas, olhares desviados. E eu fingia que não via. Fingir era mais fácil do que perguntar.

E então veio Júlia. Jovem. Imatura. Uma presença inesperada, quase deslocada. Como se tivesse entrado pela porta errada e, ainda assim, decidido ficar.

E Pedro, que sempre foi encantador, se deixou levar. Pedro, que sabia ler meus silêncios, que conhecia cada dobra da minha rotina. Não falou dela comigo. E isso, vindo dele, foi estranho. Inquietante. Como se, pela primeira vez, ele tivesse construído algo fora do nosso traçado. Algo que eu não podia alcançar.

Até hoje, dois meses depois, ainda não entendo como Pedro se envolveu naquela história que não era dele. Como alguém tão íntegro, tão nosso, foi parar no meio de algo tão sujo. É essa a resposta que me move. Não é a dor — é a dúvida. O descompasso entre quem ele era e onde ele terminou. Entre o que eu sabia e o que nunca foi dito.

Agora, tudo isso parece um quebra-cabeça com peças faltando. Fragmentos que não se encaixam. Silêncios que não explicam. E eu, sentada à mesa com meus pais, tentando tomar café como se fosse só mais um dia, sei que não é.

Porque o nome de Pedro ainda ecoa em cada canto da casa. Porque a empresa ainda carrega o peso do que ele construiu — e do que deixou inacabado. Porque, no fundo, todos nós estamos tentando viver com a dor. Não em partes. Mas por inteiro.

Não há manual para isso. Nenhuma fórmula que ensine como se convive com o vazio. A dor não é algo que se supera. É algo que se acomoda. Que aprende a dividir espaço com o cotidiano, com o trabalho, com os sorrisos que voltam aos poucos — mesmo quando não deveriam.

Cada um de nós carrega a ausência de Pedro de um jeito. Meus pais, em silêncio. Luíza, em lembranças que ela guarda só pra ela. E eu... Eu carrego Pedro em cada projeto, em cada linha traçada, como se ele ainda estivesse ao meu lado. Corrigindo. Sugerindo. Sorrindo.

Às vezes, esqueço que ele não está. E é nesse esquecimento que a saudade se instala com mais força. Como se o tempo não tivesse passado. Como se ele fosse entrar pela porta a qualquer momento e dizer que tudo isso foi um mal-entendido.

Mas não foi. E é por isso que a dor não vai embora. Ela só aprende a ficar.

A dor é como um segundo coração. B**e junto, mas fora do ritmo. Não pulsa — pesa.

Ela está na sala trancada que ninguém ousa abrir. Está no caderno de esboços que ainda tem o cheiro dele. Está nas conversas interrompidas, nos planos que ficaram pela metade. Está no que não foi dito. No que nunca será.

Mas, sobretudo, está na tentativa de seguir em frente sem apagar o que foi. Porque viver com a dor — por inteiro — é aceitar que ela agora faz parte de quem somos. Parte do corpo. Parte da memória. Parte da arquitetura da vida.

É por isso que eu quero descobrir. É por isso que eu quero vingar.

Não no sentido cruel da palavra. Não com raiva. Mas com precisão. Com verdade.

Porque, no fundo, cada pergunta que faço, cada silêncio que enfrento, é pensando no momento em que irei olhar nos olhos da Júlia. E decifrar o que ela esconde. O que ela sente por ter levado meu irmão à morte. Ou por ter estado perto demais quando tudo desabou.

Tudo isso carrega uma esperança — a de que entender o que aconteceu possa, de algum modo, aliviar essa dor que não me deixa respirar.

Eu não quero vingança. Quero sentido. Quero saber até onde ela é culpada. Até onde tudo poderia ter sido evitado.

Porque, se a dor não pode ser apagada, que ao menos seja compreendida. E, quem sabe, assim, eu consiga viver com ela sem me afogar.

Saio de casa com passos decididos. Ou, pelo menos, tento parecer decidida. Por dentro, tudo ainda treme — como se cada célula do meu corpo estivesse em alerta, à espera de algo que nunca chega.

O caminho até o escritório é automático. Já percorri esse trajeto tantas vezes que meus pés sabem para onde ir, mesmo quando minha mente está em outro lugar.

A fachada da Tavares Arquitetura e Engenharia surge diante de mim como um velho conhecido. E, ao mesmo tempo, como um fantasma.

Ali dentro, tudo carrega a marca do Pedro. A mesa onde ele deixava os esboços espalhados, como se o caos fosse parte do processo criativo. A cafeteira que ele insistia em usar, mesmo sabendo que o café era ruim. O jeito como cumprimentava cada funcionário, com aquele sorriso que parecia dizer: “Você importa.”

— Está tudo igual — penso, ao empurrar a porta de vidro. Mas não está. Nada está.

Estar ali é como andar por dentro de uma memória viva. Mas preciso estar ali. Preciso seguir meus pensamentos, mesmo que me levem por caminhos tortos. Mesmo que, às vezes, eu não saiba se estou buscando justiça ou apenas tentando dar forma à minha dor.

Preciso seguir em frente — não por superação, mas por justiça. É essa busca que me dá força para levantar da cama. É ela que me impede de afundar.

Luíza não entende isso. Ela acha que estou me destruindo. Que o preço da vingança é o coração.

— Você está se perdendo, Clara — ela disse ontem, com os olhos marejados. Mas eu não consigo ser como ela. Ela escolheu o silêncio, a tentativa de paz. Eu escolhi o confronto.

Não dá para seguir em frente quando tudo dentro de mim ainda está preso ao passado. Quando cada passo que dou parece uma tentativa desesperada de trazer Pedro de volta — nem que seja por meio da verdade.

E se essa verdade estiver escondida atrás dos olhos da Júlia, então é lá que eu vou olhar. Mesmo que doa. Mesmo que me quebre.

Porque, às vezes, quebrar é a única forma de reconstruir.

Na verdade, eu nem sei se Luíza seguiu em frente. Ela parece inteira por fora — fala pouco, trabalha muito, sorri quando precisa. Mas há algo nos olhos dela que não voltou a brilhar desde que Pedro se foi.

Sei que ela e Pedro tinham uma amizade daquelas raras, de toda a vida. Eles se conheciam como ninguém. Sabiam o que o outro pensava antes mesmo de dizer. Compartilhavam silêncios como quem compartilha abrigo.

E, mesmo que nunca tenham dito em voz alta, eu sei que se amavam. Eram o amor um do outro — penso, com uma dor que não sei nomear.

Talvez por isso, mais ainda, eu não entenda como Pedro chegou até Júlia. Não como uma escolha. Mas como um desvio. Como alguém que, ao tentar salvar outro, acaba se perdendo no processo.

Pedro sempre teve esse coração grande demais. Esse impulso de cuidar, de proteger, de enxergar o melhor nas pessoas — mesmo quando o melhor estava escondido demais. E Júlia sabia disso. Ela sabia como tocar esse lado dele. Como despertar o homem que queria consertar o mundo.

— Ele não a amava — penso. Mas talvez tenha sentido que ela precisava dele. E Pedro nunca soube dizer não a quem precisava.

É esse vazio que me consome. Não é só a ausência de Pedro. É a ausência de respostas. De lógica. De sentido.

E é nesse vazio que eu procuro. Como quem tateia no escuro por uma porta que talvez nem exista. Mas eu preciso tentar. Porque, enquanto eu não entender como tudo se desfez, não consigo começar a juntar os pedaços.

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