Agora estou aqui. Na Tavares Arquitetura e Engenharia, cercada por projetos, reuniões e vozes que parecem sempre saber exatamente para onde estão indo. Eu, por outro lado, ainda estou tentando descobrir.
Sou Clara, 25 anos, arquiteta. E desde que ele se foi, tudo parece ter mudado de cor. O trabalho, que antes me preenchia, agora exige esforço. Concentrar-se virou um exercício de resistência. Mas estou tentando. Um dia de cada vez.
Hoje, recebi um novo projeto. Um cliente que deseja transformar sua casa em um espaço que o represente. Um lar com alma.
O nome na ficha me fez parar: Gabriel Tavares.
Ator, 30 anos, famoso, cercado por holofotes e mistério. Nunca o conheci pessoalmente, mas sabia o suficiente — o sobrenome, a influência, a proximidade com Júlia.
E foi aí que senti. Como se o destino tivesse começado a se mover por conta própria. Eu não precisei enviar propostas, nem articular contatos. Ele veio até mim.
Gabriel pode ser a chave. E eu estava prestes a girá-la.
Enquanto organizo os materiais sobre a mesa, tentando parecer profissional, flashes do passado me atravessam como relâmpagos. A manhã do telefonema. O olhar perdido do meu pai. O silêncio da minha mãe. E eu, com o coração disparado, já sabendo — antes mesmo de ouvir qualquer palavra — que algo estava errado.
Pedro e eu sempre tivemos essa conexão silenciosa, quase inexplicável. Gêmeos. Dois lados da mesma moeda. Quando ele ria, eu sentia vontade de rir também. Quando ele chorava, mesmo sem saber o motivo, eu chorava junto. Naquela manhã, antes do telefone tocar, uma angústia me tomou de repente. Um aperto no peito, como se algo tivesse sido arrancado de mim.
A gente sempre dizia que se amava. Era natural, como respirar. Não havia vergonha, nem cerimônia. Era só verdade. Mas mesmo assim, mesmo com todas as vezes que eu disse “eu te amo”, o que me dilacera é não ter podido dizer uma última vez. Não ter segurado sua mão. Não ter olhado nos olhos dele e dito com calma, com carinho, com a força que só o fim exige: “Vai em paz, Pedro. Eu te amo.”
Gabriel não sabe disso. Não sabe que, para mim, ele é mais do que um cliente. É uma ponte. Um elo. Uma chance de chegar até Júlia. E talvez, enfim, entender o que aconteceu.
— Clara?
A voz de Marta, sempre precisa, me desperta do redemoinho de pensamentos. Ela surge à porta com sua postura impecável e um leve sorriso nos lábios.
— O Sr. Monteiro chegou. Está na sala de reuniões. Disse que veio conhecer seu trabalho pessoalmente.
Assinto, tentando manter a compostura. O nome dele já havia circulado entre os corredores da empresa nos últimos dias. Gabriel Monteiro. Ator conhecido, agora interessado em transformar a casa onde ficará por um tempo. E, por algum motivo, escolheu a Tavares Arquitetura e Engenharia. Escolheu a mim.
aminho pelo corredor com passos contidos. Luísa, minha melhor amiga, me acompanha em silêncio. Ela sabe. Sabe que esse encontro carrega mais do que um contrato. Sabe que o nome Monteiro não é neutro para mim.
Marta nos guia até a sala. A porta está entreaberta. Gabriel está de pé, observando uma maquete sobre a mesa. Veste uma camisa branca, as mangas dobradas nos antebraços. O cabelo castanho-escuro está levemente desalinhado, e os olhos azuis, intensos, percorrem o ambiente com atenção. Há algo nele que prende o olhar — talvez a forma como escuta o espaço, como se estivesse tentando decifrá-lo.
Ele se vira ao ouvir meu nome. E nossos olhos se encontram pela primeira vez.
Não digo nada. Mas dentro de mim, tudo se move.
Ajusto a postura, tentando disfarçar o turbilhão que se forma. Gabriel se aproxima com um sorriso fácil, do tipo que ilumina sem esforço. Estende a mão com naturalidade.
— Gabriel Monteiro — diz, com voz firme e gentil.
— Clara Tavares. Seja bem-vindo à nossa empresa.
Aperto sua mão. O toque é firme, quente. Um gesto simples, mas que me atravessa. O rosto dele é familiar, não pelas telas, mas pelas lembranças que carrego como cicatrizes. Ele está aqui. E está perto da irmã que destruiu o meu mundo.
— Fico feliz por ter vindo — digo, mantendo o tom profissional.
— Eu também. Tenho acompanhado seus projetos. Gosto da forma como você transforma espaços em lugares que respiram. Preciso disso agora.
— Então vamos conversar sobre o que você precisa. E sobre o que quer deixar para trás.
Ele me olha com atenção. Há silêncio entre nós, mas não é vazio. É cheio de coisas não ditas.
E eu? Eu estou aqui. Não apenas como arquiteta. Estou aqui como alguém que perdeu. E que talvez, através desse projeto, encontre respostas.
— Você foi muito bem recomendada — disse ele, virando-se para mim com naturalidade, como quem já havia me imaginado ali.
— Meu amigo e assessor pesquisou bastante antes de chegar ao seu nome. Disse que sua abordagem é sensível, mas firme. Exatamente o que quero para minha casa.
— Eu sou boa no que faço — respondi, sem hesitar. Mantive o olhar firme, mesmo sentindo o peso de estar tão perto dele. Tão perto da história que, sem saber, ele carregava comigo.
— E a sua casa ficará como quer. Só precisa de alguém que saiba escutar.
Ele assentiu, como quem concorda sem precisar de provas. Caminhou até a janela, observando a cidade que se desenhava do outro lado do vidro. O silêncio entre nós era denso, mas não desconfortável. Era como se algo antigo estivesse sendo reaberto.
— Quero que minha casa tenha o ar de aconchego. De calma. Um lugar onde se possa construir família — disse, com um tom que misturava saudade e desejo de recomeço.
— Um espaço onde eu possa receber amigos, curtir uma boa música. Um lugar vivo. Para construir histórias. Para construir uma família para mim.
Ele se virou para mim, os olhos mais suaves agora, mas ainda atentos. Havia algo vulnerável naquele olhar — como quem não está apenas pedindo um projeto, mas oferecendo um pedaço de si.
— Você tem alguma sugestão de como posso fazer isso?
A pergunta me pegou de surpresa. Não pela complexidade, mas pela confiança. Ele estava me pedindo ideias para restaurar algo íntimo. Algo que, para mim, era território em ruínas.
— Podemos começar pelas memórias — respondi, escolhendo cada palavra como quem pisa em chão instável.
— Criar espaços que convidem à permanência. Salas que abracem. Jardins que contem histórias. Talvez uma biblioteca com objetos afetivos, uma parede de fotografias em preto e branco, uma cozinha que cheire a infância. Música ambiente que mude com a luz do dia. Texturas que despertem lembranças.
— E talvez... — continuei, hesitando — um espaço para o silêncio. Um cômodo sem função definida. Um lugar para estar, apenas. Porque às vezes, o que mais precisamos é de um lugar onde não somos obrigados a ser nada.
Ele me olhou com atenção, como se estivesse tentando decifrar algo além da resposta. Como se quisesse entender o que eu não dizia.
— Gosto disso. Voltar emocionalmente — repetiu, quase num sussurro, como quem testa o peso da frase na própria boca.
— É exatamente o que quero.
E naquele instante, percebi que ele não falava apenas da casa. Falava de si. De Júlia. Do que se perdeu. E talvez, sem saber, também falava de mim.
Assenti, registrando mentalmente cada palavra, cada nuance do que ele dizia. Gabriel falava com a naturalidade de quem acredita estar começando algo novo — sem saber que, para mim, cada frase era uma escavação.
Ele parecia não fazer ideia de quem eu era. E isso, de certa forma, me colocava em vantagem. A ausência de reconhecimento me dava espaço para observar, para entender, para construir o meu próprio mapa de intenções. Mas também me feria. Porque enquanto ele falava de recomeço, eu ouvia o eco do fim.
A ansiedade que ele chamava de renovação, para mim, era o prenúncio de tudo que ainda precisava ser confrontado. O novo capítulo que ele desejava construir era, na verdade, o epílogo da minha dor. E cada tijolo que ele queria restaurar, eu queria desenterrar. Não para reconstruir — mas para entender o que foi enterrado junto com Pedro.
Ele continuava falando, gesticulando com leveza, como quem descreve um sonho. Eu o observava com atenção, mas também com cautela. Havia algo na forma como ele evitava certos termos — “família”, “história”, “passado” — que me dizia mais do que qualquer confissão. Júlia estava ali, invisível entre as palavras. E eu estava ali, tentando decifrar o que ele sabia. Ou o que escolhia não saber.
A sala estava silenciosa, exceto pelo som distante da cidade lá fora. O sol atravessava a janela com timidez, desenhando sombras sobre a mesa entre nós. E eu, sentada diante dele, não era apenas arquiteta. Era testemunha. Era sobrevivente. Era alguém que, por ironia do destino, fora chamada para redesenhar o cenário onde tudo começou a ruir.
Ele me olhou, esperando uma resposta. Eu sorri, profissional. Mas por dentro, cada gesto meu era uma escavação. E cada palavra dele, uma pista.
Marcamos um novo encontro para discutir a decoração da casa de Gabriel. Ele queria participar do processo — não apenas como cliente, mas como parte ativa do projeto. Acompanharia cada etapa, cada escolha. E eu também. Trabalhar juntos seria uma oportunidade valiosa, não apenas para transformar aquele espaço, mas para me aproximar dele. Para observar. Para entender.
Quando ele sorriu, algo dentro de mim se desfez. Era um sorriso bonito, aberto, quase gentil demais. Um sorriso que parecia não carregar culpa. Fiquei encantada. E irritada. Irritada comigo mesma por deixar que um rosto e um sorriso mexessem tanto com meu coração.
Como ele não me reconheceu?
Irmã de Pedro. Com o mesmo sobrenome. Tavares.
Será que há tantas famílias com esse nome em Florianópolis? Será que ele nunca ouviu falar de mim? Ou será que simplesmente escolheu não lembrar?
Essas perguntas me atravessavam enquanto ele falava sobre paletas de cores, sobre texturas que evocassem calma. Eu assentia, anotava, respondia com profissionalismo. Mas por dentro, cada palavra dele era uma provocação.
Será que ele não viu meu nome nos documentos? Clara Tavares. Será que não fez a conexão? Ou será que fez — e está fingindo?
Talvez ele tenha aprendido a sorrir assim. Com leveza. Com controle. Talvez seja um talento de ator. Talvez seja defesa.
— Gosto da ideia de usar madeira clara — disse ele, folheando uma revista de referência. — Traz uma sensação de acolhimento, não acha?
— Sim — respondi, tentando manter o tom neutro. — A madeira tem memória. Ela guarda o tempo.
Ele me olhou por um segundo, como se aquela frase tivesse tocado algo. Mas não disse nada. Apenas sorriu de novo. E aquele sorriso, mais uma vez, me desmontou.
Eu queria perguntar. Queria dizer: “Você sabe quem eu sou?” Queria gritar: “Pedro era meu irmão.” Mas não podia. Ainda não. Porque se ele não sabia, eu tinha vantagem. E se sabia, eu precisava descobrir o que ele estava escondendo.
— Clara? — ele chamou, interrompendo meus pensamentos. — Está tudo bem?
— Sim — menti, com um sorriso ensaiado. — Só estava pensando em como vamos começar.
Ele assentiu, confiante.
— Começamos pelo que precisa ser curado.
E eu, por um instante, não soube se ele falava da casa ou de nós.
No caminho de volta, enquanto cruzava as avenidas que pareciam indiferentes ao que eu sentia, Pedro se fez presente em cada pensamento. As linhas retas dos prédios, os ângulos das marquises, até os vazios entre as construções — tudo parecia carregar a assinatura invisível dele.
Passando por um grande condomínio à beira da estrada, não consegui evitar o nó na garganta. Aquele projeto tinha sido nosso. Ele como arquiteto brilhante, eu como parceira de ideias e detalhes. Éramos o encaixe perfeito: ele via o todo, eu mergulhava nos pequenos traços.
Pedro não desenhava apenas estruturas. Ele desenhava possibilidades. Cada planta que criava era uma promessa de vida, de encontros, de histórias que ainda iam acontecer.
Trabalhar com ele era como conversar sem palavras. Bastava um olhar, um esboço, e tudo fluía. Ele tinha uma forma única de pensar o espaço — como se cada parede precisasse respirar, como se cada janela fosse um convite ao mundo.
Agora, só restava o silêncio. E a cidade, que antes era palco dos nossos sonhos, virou um arquivo vivo daquilo que não voltaria.
A lembrança do que construímos juntos estava espalhada por ali — como fragmentos de uma história que ninguém mais sabia que existia.
E eu, que antes ajudava a escolher os revestimentos, os tons, os detalhes que davam alma aos projetos, agora me via tentando revestir a ausência. Tentando dar forma ao vazio.
O condomínio passou pela janela como uma maquete distante. Lembrei da primeira vez que Pedro me mostrou o conceito: “Quero que as pessoas sintam que estão entrando num lugar que foi pensado para elas.”
E era isso que ele fazia. Pensava nas pessoas. Pensava em mim.
Mas agora, tudo que resta são estruturas. E eu, tentando não desmoronar.
Chego em casa mergulhada nas lembranças que machucam. Cada passo ecoa como se a casa estivesse vazia, mesmo cheia. Não quero encontrar meus pais. Não quero ouvir vozes, nem sentir olhares que tentam me alcançar. Eles me observam com cuidado, como quem pisa em vidro. Mas não há palavras que me toquem agora.
Subo direto para o meu quarto, mas ao passar pela porta do quarto do Pedro, não resisto. A mão toca a maçaneta como se tivesse vontade própria. Como se o corpo soubesse o que a mente tenta evitar.
Abro devagar. Entro.
Tudo está da mesma forma. Como ele deixou naquela noite, antes de sair. A cama arrumada, os livros empilhados na escrivaninha, o tênis jogado no canto. Um leve cheiro de madeira e perfume ainda paira no ar, como se o tempo tivesse parado ali, respeitando sua ausência.
Me sento no chão, encostada na parede, e fico olhando nossas fotos — a última viagem, os sorrisos, os planos. Comemorávamos a vida e os projetos que estávamos desenvolvendo juntos na Tavares Arquitetura e Engenharia. Tudo parecia tão certo. Tão sólido.
Naquela noite, ele saiu sem dizer muito. Um “até amanhã” distraído, um olhar rápido, como quem guarda algo que não quer mostrar. E eu, ocupada demais com os prazos, não percebi.
Sua sala continua trancada. Ninguém teve coragem de entrar. Ninguém quer encarar suas últimas lembranças. Nem os croquis espalhados, nem os papéis rabiscados com ideias que só ele entendia.
Às vezes imagino o que ele teria deixado ali. Um projeto inacabado? Um bilhete? Um traço que revelasse o que ele sentia nos últimos dias?
Reparo num caderno de capa preta, meio escondido sob a escrivaninha. Pego com cuidado. É um dos cadernos de esboços. As páginas estão cheias de linhas, formas, ideias. Mas entre elas, há frases. Pequenas anotações.
“Clara entende o espaço como ninguém.” “Projeto da casa no campo — quero que ela escolha as janelas.” “Não esquecer de dizer que ela é minha melhor parceria.”
Fecho os olhos. Seguro o caderno contra o peito.
— Você disse, Pedro. Só não com palavras.
Ali, sentada no chão do quarto dele, tudo parece mais real. A ausência tem forma, tem cheiro, tem textura. E pela primeira vez desde que ele se foi, sinto que estou dentro de algo que ele construiu para mim. Um espaço de memória. Um abrigo invisível.
Adormeço ali, na penumbra da noite, sem perceber. Acordo com dores pelo corpo, sem saber a hora que apaguei. O chão duro, o silêncio denso, tudo parece ter me engolido por algumas horas.
Vou direto para meu quarto, tomo um banho rápido e desço para o café. Meus pais já estão ali. Presentes, mas quebrados. Sofrem em silêncio, mas sofrem. E eu vejo isso. Mesmo quando fingem que não.
Laura e Carlos trocam olhares antes de falar comigo. Há receio na voz deles, como se pisassem em vidro.
— A Luísa indicou um psicólogo — diz meu pai, com cuidado. — Talvez seja bom pra você conversar com alguém.
— Ela já foi? — respondo, sem disfarçar a irritação. — Por que todo mundo está focado na minha dor? Por que cada um não cuida da sua e me deixa sentir a minha?
Minha mãe tenta manter a firmeza, mas a voz dela vacila.
— Porque você é a única que se prende a ela.
Silêncio.
— Não. É porque todos vocês fingem que nada mudou. Mas tudo mudou. Meu irmão morreu. E está todo mundo sorrindo para o mundo. A Júlia está por aí, o Rafael tentando sair da prisão... e o Pedro? O Pedro está morto. E ninguém parece lembrar disso.
Mas não é só dor. É confusão. É o peso de tantas camadas que ainda não consegui organizar.
Luísa é minha amiga. Minha melhor amiga. Desde sempre. Crescemos juntas, estudamos juntas, e quando Pedro começou a desenhar os primeiros projetos da Tavares Arquitetura e Engenharia, ela estava lá — como parceira, como alguém que acreditava tanto quanto nós.
Ela conhecia cada cláusula, cada contrato, cada risco. Mas também conhecia Pedro. Talvez melhor do que qualquer outra pessoa, além de mim.
Ela sempre foi próxima de Pedro. Os três éramos inseparáveis. Mas com o tempo, ficou claro que Luísa sentia algo mais.
Ela o amava.
Ela nunca disse com todas as letras, mas eu sabia. Via nos gestos, nas pausas, nos olhares que duravam um pouco mais.
E Pedro... Pedro era um universo à parte.
Meu irmão. Meu melhor amigo. Meu parceiro de ideias.
Brilhante, intenso, generoso. Mas também imprevisível.
Pedro, por sua vez, dizia que estava esperando o amor da sua vida se declarar.
— “Ela sabe quem é,” — ele me disse uma vez, com aquele sorriso meio torto. — “Mas ainda não teve coragem.”
Luísa nunca soube se ele falava dela. E eu também não. Ou era o que eu pensava.
Porque então veio Júlia. Jovem, imatura...
E Pedro, que sempre foi encantador, se deixou levar. Pedro não falou dela comigo. E isso, vindo dele, era estranho.
Até hoje, depois de dois meses, ainda não entendo como Pedro se envolveu naquela história que não era dele. Como alguém tão íntegro, tão nosso, foi parar no meio de algo tão sujo. É essa a resposta que me move.
Agora, tudo isso parece um quebra-cabeça com peças faltando.
E eu, sentada à mesa com meus pais, tentando tomar café como se fosse só mais um dia, sei que não é.
Porque o nome de Pedro ainda ecoa em cada canto da casa. Porque a empresa ainda carrega o peso do que ele construiu.
E porque, no fundo, todos nós estamos tentando viver com a dor — por inteiro.
Não há manual para isso. Não há fórmula que ensine como se convive com o vazio. A dor não é algo que se supera. É algo que se acomoda. Que aprende a dividir espaço com o cotidiano, com o trabalho, com os sorrisos que voltam aos poucos, mesmo quando não deveriam.
Cada um de nós carrega a ausência de Pedro de um jeito. Meus pais, em silêncio. Luísa, em lembranças que ela não compartilha. E eu, em cada projeto, em cada linha traçada, como se ele ainda estivesse ao meu lado, corrigindo, sugerindo, sorrindo.
A dor é como um segundo coração. B**e junto, mas fora do ritmo.
Ela está na sala trancada que ninguém ousa abrir. Está no caderno de esboços que ainda tem o cheiro dele. Está nas conversas interrompidas, nos planos que ficaram pela metade.
E está, sobretudo, na tentativa de seguir em frente sem apagar o que foi.
Porque viver com a dor — por inteiro — é aceitar que ela faz parte de quem somos agora.
É por isso que eu quero descobrir. É por isso que eu quero vingar.
Porque, no fundo, cada pergunta que faço, cada silêncio que enfrento é pensando no momento em que irei olhar nos olhos da Júlia e decifrar o que ela esconde, o que ela sente por ter levado meu irmão à morte.
Tudo isso carrega a esperança de que entender o que aconteceu possa, de algum modo, aliviar essa dor que não me deixa respirar.
Eu não quero vingança no sentido cruel da palavra. Eu quero sentido.
Quero saber até onde ela é culpada, até onde tudo poderia ter sido evitado.
Porque, se a dor não pode ser apagada, que ao menos seja compreendida.
E, quem sabe, assim, eu consiga viver com ela sem me afogar.
Saio de casa com passos decididos. Ou, pelo menos, tento parecer decidida. Por dentro, tudo ainda treme — como se cada célula do meu corpo estivesse em alerta, esperando por algo que nunca chega.
O caminho até o escritório é automático. Já fiz esse trajeto tantas vezes que meus pés sabem para onde ir, mesmo quando minha mente está em outro lugar. A fachada da Tavares Arquitetura e Engenharia surge diante de mim como um velho conhecido. E, ao mesmo tempo, como um fantasma.
Ali dentro, tudo tem a marca do Pedro. A mesa onde ele deixava os esboços espalhados, como se o caos fosse parte do processo criativo. A cafeteira que ele insistia em usar, mesmo sabendo que o café era ruim. O jeito como ele cumprimentava cada funcionário, com aquele sorriso que parecia dizer: “Você importa.”
— Está tudo igual. — penso, ao empurrar a porta de vidro. Mas não está. Nada está.
Estar ali é como andar por dentro de uma memória viva. Mas preciso estar ali. Preciso seguir meus pensamentos, mesmo que eles me levem por caminhos tortos. Mesmo que, às vezes, eu não saiba se estou buscando justiça ou apenas tentando dar forma à minha dor.
Preciso seguir em frente — não por superação, mas por justiça. É essa busca que me dá força para levantar da cama. É ela que me impede de afundar.
Luísa não entende isso. Ela acha que estou me destruindo. Que o preço da vingança é o coração.
— Você está se perdendo, Clara. — ela disse ontem, com os olhos marejados. Mas eu não consigo ser como ela. Ela escolheu o silêncio, a tentativa de paz. Eu escolhi o confronto.
Não dá para seguir em frente quando tudo dentro de mim ainda está preso ao passado. Quando cada passo que dou parece uma tentativa desesperada de trazer Pedro de volta, nem que seja por meio da verdade.
E se essa verdade estiver escondida atrás dos olhos da Júlia, então é lá que eu vou olhar. Mesmo que doa. Mesmo que me quebre.
Porque às vezes, quebrar é a única forma de reconstruir.
Na verdade, eu nem sei se Luísa seguiu em frente. Ela parece inteira por fora — fala pouco, trabalha muito, sorri quando precisa. Mas há algo nos olhos dela que não voltou a brilhar desde que Pedro se foi.
Sei que ela e Pedro tinham uma amizade daquelas raras, de toda a vida. Eles se conheciam como ninguém. Sabiam o que o outro pensava antes mesmo de dizer. Compartilhavam silêncios como quem compartilha abrigo.
E, mesmo que nunca tenham dito em voz alta, eu sei que se amavam. — Eram o amor um do outro. — penso, com uma dor que não sei nomear.
Talvez por isso, mais ainda, eu não entenda como Pedro chegou até Júlia. Não como uma escolha. Mas como um desvio. Como alguém que, ao tentar salvar outro, acaba se perdendo no processo.
Pedro sempre teve esse coração grande demais. Esse impulso de cuidar, de proteger, de enxergar o melhor nas pessoas — mesmo quando o melhor estava escondido demais. E Júlia sabia disso. Ela sabia como tocar esse lado dele. Como despertar o homem que queria consertar o mundo.
— Ele não a amava. — penso. Mas talvez tenha sentido que ela precisava dele. E Pedro nunca soube dizer não a quem precisava.
É esse vazio que me consome. Não é só a ausência de Pedro. É a ausência de respostas. De lógica. De sentido.
E é nesse vazio que eu procuro. Como quem tateia no escuro por uma porta que talvez nem exista. Mas eu preciso tentar. Porque enquanto eu não entender como tudo se desfez, não consigo começar a juntar os pedaços.