Nunca entendi por que meu quarto era o de número sete. Entre tantas portas desbotadas e maçanetas gastas pelo tempo, aquela era a única que rangia antes mesmo de ser tocada. O número estava torto, pendurado por um prego solto, como se resistisse a fazer parte do resto da casa. A maçaneta enferrujada não girava fácil — exigia um pequeno empurrão com o ombro. Era como se o próprio quarto recusasse visitas, até as minhas. Não havia muito ali dentro. Uma cama de ferro batido, com um colchão torto que afundava no meio. Um armário pequeno de madeira rachada, uma cadeira que rangia e uma janela com uma trinca no canto superior direito. Quando o vento soprava, a vidraça vibrava como se estivesse prestes a gritar. O cheiro era sempre o mesmo: poeira, mofo e alguma tristeza antiga. Mas ainda assim, eu gostava daquele lugar. Era meu. No orfanato Santa Margarida, onde eu vivia desde os quatro anos, poucas coisas eram verdadeiramente nossas. Roupas eram compartilhadas. Sapatos também. Brin
Os dias no orfanato seguiam um ritmo tão repetitivo que até o tique-taque do velho relógio de parede parecia zombar da minha existência. O sol nascia, a comida era servida com pontualidade monótona, e as atividades variavam entre tarefas domésticas e aulas improvisadas com livros doados por escolas que nem queriam mais saber deles. Tudo ali cheirava a desuso — como se cada canto carregasse o peso de memórias que ninguém queria manter vivas. Eu dividia o dormitório com mais três garotos. Um deles, o Nando, era o mais velho entre nós e se autodenominava nosso "protetor". Na verdade, só queria se sentir importante. Quando não estava implicando com os menores, ficava horas olhando pela janela, como se procurasse alguma fuga que nunca vinha. Certa manhã, acordei com um ruído abafado vindo do corredor. Espiei pela fresta da porta e vi a diretora arrastando pelos braços um dos garotos mais novos, o Raul. Seus olhos estavam cheios de medo e suas pernas, trêmulas. Ele havia molhado a cama ou
Eu tinha um lugar favorito no orfanato: um banquinho de madeira azul desbotado que ficava próximo à estufa abandonada no quintal dos fundos. Ninguém se importava com aquele canto isolado, talvez porque estivesse sempre úmido e com cheiro de terra. Mas era ali que eu sentia que podia respirar. Sentava ali todas as tardes, depois das tarefas, observando o céu mudar de cor. Às vezes, inventava histórias na minha cabeça. Outras, ficava em silêncio, ouvindo o canto dos pássaros ou o barulho do vento entre as frestas da velha estufa. Era um refúgio só meu. Certa vez, encontrei uma borboleta com as asas quebradas perto do banco. Cuidei dela por dias, tentando ajudá-la a voar novamente. Ela nunca voou, mas sempre voltava ao mesmo canto. Demos um nome a ela — eu e a borboleta: Esperança. Era bobo, talvez, mas naquele tempo, qualquer migalha de sentido era um alívio. A rotina no orfanato seguia dura. Acordávamos cedo com o som do velho sino da cozinha. Café ralo, pão duro, correria para o ba
Os dias seguintes foram uma mistura de ansiedade e silêncio. Após a conversa com a diretora e o envelope em minhas mãos, uma nova pergunta se formava a cada passo: quem seria Clara Monteiro? O nome ecoava em minha mente, como se eu já o tivesse ouvido em algum canto do orfanato, sussurrado em noites de febre ou perdido entre os registros antigos. Mas nada me vinha com clareza. Com o pouco dinheiro que ganhei trabalhando em um restaurante da esquina durante as noites, comprei uma passagem para a cidade vizinha. O endereço do asilo onde ela estava internada parecia pertencer a um lugar esquecido pelo tempo. A viagem foi curta, mas os pensamentos tornaram o trajeto longo. O asilo ficava em uma rua de paralelepípedos, ladeada por árvores de folhas envelhecidas. Uma fachada simples, com janelas altas e grades pintadas de branco. Um letreiro dizia “Lar Esperança”. O nome parecia uma ironia cruel — ou talvez uma promessa. Ao entrar, fui recebido por uma senhora de voz gentil, que me pediu
Os dias que se seguiram foram uma mistura de expectativa e frustração. A cada visita ao asilo, Clara parecia estar mais distante, mergulhada em sua confusão mental, mas, de alguma forma, eu começava a acreditar que algo dentro dela reconhecia a minha presença. Eu era o filho que ela havia perdido, ou talvez aquele filho nunca tenha sido perdido para ela. Mas a verdade estava em algum lugar entre os silêncios e os fragmentos de memória que ela compartilhava, sem que soubesse realmente o que significava. Em um dos meus encontros, Helena, com sua calma peculiar, comentou enquanto olhava para Clara, que dormia pacificamente na poltrona: — Ela reconhece os sons. Às vezes, é tudo o que temos para nos lembrar do que ficou para trás. Ela vai se lembrar de você. Talvez, um dia... Eu não sabia se aquilo era esperança ou uma tentativa de consolo. No fundo, algo dentro de mim me dizia que a verdade que eu tanto procurava não viria de Clara. Ela estava perdida demais em sua própria mente para d
Após minha conversa com Isadora, algo dentro de mim mudou. Eu havia sido rejeitado mais uma vez. Minha própria irmã, aquela que poderia ser minha única ligação com o passado, me tratou como se eu fosse uma invenção, uma farsa. Mas, apesar de tudo, uma parte de mim não acreditava nas palavras dela. Algo dentro de mim me dizia que a verdade estava mais perto do que eu imaginava, e eu não podia parar agora. Não depois de tudo o que já tinha descoberto. Não depois de tudo o que ainda estava por vir. Eu voltei ao asilo naquele dia, e Helena estava lá, como sempre, pronta para me apoiar. Ao me ver, ela não precisou perguntar. O olhar triste e cansado que eu tinha já dizia tudo. Eu sabia que o encontro com Isadora não havia dado certo, mas Helena não fez questão de pressionar. Ela apenas me envolveu em um abraço apertado, oferecendo o consolo silencioso que tanto precisava. — Eu sabia que seria difícil, mas não podemos desistir. — Ela disse, com a voz suave, como se tentasse me acalmar com
O dia seguinte foi de silêncio. Um silêncio pesado que pairava no ar, como se o asilo, a cidade e o mundo inteiro estivessem aguardando algo. Após a estranha interação com Clara, eu não conseguia parar de pensar nas palavras dela. "Você... voltou para mim..." Havia algo profundamente familiar e ao mesmo tempo inquietante nessa frase. Clara não era apenas a mulher que cuidava de uma vida perdida; ela parecia carregar dentro de si uma chave para tudo o que eu precisava entender sobre mim, sobre minha história, sobre minha mãe e, especialmente, sobre meu pai, Eduardo Camargo. O amanhecer trouxe uma sensação de urgência, como se o tempo estivesse se comprimindo, apertando cada vez mais meu peito. Eu sabia que algo estava prestes a acontecer. Uma revelação, uma descoberta, uma virada de jogo. A pergunta que me martelava a mente era: por que Clara, que havia estado tão distante e distante de mim, parecia finalmente me reconhecer? No entanto, não tinha tempo para me perder em dúvidas. O ad
O relógio na parede do escritório de meu advogado parecia ecoar a cada segundo que passava. Eu estava sentado ali, com as mãos suando, sentindo que algo muito maior do que eu poderia imaginar estava prestes a ser revelado. A descoberta do exame de DNA e a confirmação de que Eduardo Camargo era meu pai haviam sido um choque. Mas a menção ao segredo no testamento, àquela cláusula que mencionava algo sobre meu nascimento, foi o que realmente me desestabilizou. Eu sabia que não podia esperar mais. A verdade que Eduardo havia escondido estava lá, em algum lugar, à espera de ser desenterrada. Mas onde eu procuraria? O que ele teria feito para garantir que ninguém descobrisse o que ele não queria que fosse revelado? O advogado me entregou uma nova pilha de documentos, mas eu estava tão absorvido em meus próprios pensamentos que não consegui me concentrar no que estava ali. Ele percebeu a distração e, sem dizer uma palavra, se levantou e se afastou. Eu estava sozinho novamente, mas não me s