A última coisa que Céline se lembrava era o som dos próprios passos na rua deserta. Os saltos batendo no asfalto molhado, o vento frio cortando o casaco leve que insistiu em usar. Não tinha noção de que alguém a seguia. Nenhuma sombra, nenhum ruído. Apenas uma mão firme, um lenço encharcado com um cheiro doce e enjoativo. Depois, escuridão.
Quando abriu os olhos, o teto alto e luxuoso acima dela parecia parte de um pesadelo suntuoso. O quarto era espaçoso, paredes de pedra clara e detalhes entalhados em madeira escura. Cortinas pesadas bloqueavam qualquer vestígio de luz natural. Uma lareira acesa exalava calor suave, contrastando com o arrepio que subia pela espinha dela. O colchão macio afundava sob seu corpo. Estava deitada sobre lençóis caros demais para alguém que morava em um apartamento minúsculo no centro da cidade. Ao seu redor, silêncio. Silêncio e a certeza incômoda de que estava sendo observada, mesmo sem ver ninguém. Céline se sentou, o coração batendo tão rápido que parecia querer saltar pela garganta. O corpo ainda estava vestido, mas suas roupas haviam sido trocadas: em vez da calça jeans e da blusa fina, agora vestia uma camisola de seda branca que marcava cada curva. Debaixo dela, a pele nua a fazia sentir-se ainda mais vulnerável. Ela se levantou de um salto, cambaleando um pouco. As pernas, dormentes pelo tempo que passara desacordada, reclamaram do movimento brusco. Ainda assim, ela caminhou até a porta. Trancada. O trinco nem sequer se movia quando forçou, e a madeira maciça parecia zombar da sua força. Respirou fundo e olhou ao redor. Uma poltrona elegante perto da lareira, uma mesa com uma jarra de água e copos de cristal, um espelho antigo pendurado na parede. Cada detalhe era rico, belo e… opressivo. Ela bateu na porta com força. — Ei! Tem alguém aí? — gritou, a voz saindo rouca, mas firme. — Abram essa porta! Agora! Nada. Nenhuma resposta. Nenhum som. A raiva começou a borbulhar no peito, queimando mais forte que o medo. Ela se virou, chutou a poltrona, empurrou a mesa — um gesto inútil, mas que lhe trouxe um alívio momentâneo. Céline nunca fora de aceitar ordens, e agora, num lugar onde claramente a queriam submissa, cada fibra do seu corpo se recusava a ceder. Ela tentou abrir as cortinas. Nenhuma janela. Apenas um mural pintado de forma tão realista que, por um instante, enganou seus olhos. Um truque cruel: ilusão de liberdade. O som de uma chave girando na fechadura a fez girar nos calcanhares. A porta se abriu lentamente, e dois homens enormes apareceram, vestidos com roupas pretas simples, sem qualquer expressão no rosto. Guarda-costas, ou algo pior. Um deles segurava uma bandeja com uma tigela de sopa fumegante e um copo de água. — Senhorita, — disse o homem mais alto, a voz baixa e sem emoção — precisa comer. Ela ergueu o queixo, desafiadora. — Onde eu estou? — exigiu. — Quem me trouxe até aqui? O homem não respondeu. Apenas caminhou até a mesa e colocou a bandeja, recuando em seguida para a porta. Céline bufou. — Vocês acham que vão me amolecer com uma tigela de sopa? — Ela avançou um passo, os punhos cerrados. — Eu não sou um animal pra ficar presa aqui, entendeu? O homem trocou um olhar rápido com o companheiro, mas não disse nada. A porta se fechou atrás deles, e novamente Céline ficou sozinha, com a sopa esfriando diante dela. Ela se sentou na poltrona, respirando fundo para manter o controle. Olhou para o copo de água. Não confiava, mas a sede era real. Deu um gole pequeno. A água estava fresca, cristalina — e despertou ainda mais sua fome e raiva. O tempo parecia escorrer como mel quente. Minutos, talvez horas, Céline não tinha como saber. O calor da lareira contrastava com o frio que sentia por dentro. E então, finalmente, a porta se abriu outra vez. Desta vez, uma mulher entrou. Jovem, cabelos loiros presos num coque apertado, usando um uniforme branco que lembrava enfermeiras antigas. O olhar dela era frio, mas não cruel. — Senhorita, precisamos examiná-la. Por favor, venha comigo. Céline se levantou devagar. — Examinar? Eu não sou um projeto de pesquisa. — É necessário — disse a mulher, com calma profissional. — Para o bem-estar do harém. A palavra “harém” a fez gelar. Ela segurou o braço da mulher, apertando com força. — Harém? Que tipo de lugar é esse? Eu não sou uma escrava! A mulher ergueu uma sobrancelha, impassível. — Aqui, todas as mulheres são cuidadas. Alimentadas. E escolhidas. Seu ciclo fértil será monitorado. Se recusar, será… complicado. O estômago de Céline se revirou. Mas ela não recuou. — Eu não vou cooperar com essa loucura. A mulher suspirou. — Então, terá de ser contida. Mas saiba: ninguém a machucará enquanto seguir as regras. Céline soltou o braço dela. Não confiava, mas a necessidade de informação era maior que o orgulho. Seguiu a mulher pelos corredores silenciosos e opulentos. Tapetes grossos abafavam seus passos, e as tochas acesas nas paredes criavam sombras dançantes, como se as paredes estivessem vivas. Chegaram a uma sala de exames: balcões de aço, instrumentos limpos, cheiro de antisséptico. Dois médicos — um homem de meia-idade e uma mulher mais jovem — a esperavam. — Sente-se — disse o médico, indicando uma cadeira alta. — Vou colaborar até certo ponto, — disse Céline, a voz baixa e controlada. — Mas não vou ser parte de nenhum ritual doentio. — Não precisa se preocupar. Ainda não — respondeu o médico, ajustando as luvas. — Queremos apenas ter certeza de que está saudável. E… fértil. A palavra fez cada músculo dela enrijecer. Céline manteve o queixo erguido, enquanto eles a examinavam: pressão, temperatura, batimentos. Tiraram sangue, anotaram dados. Tudo meticuloso, científico — e profundamente invasivo. Quando terminaram, a mulher de uniforme branco voltou para escoltá-la de volta ao quarto. — Vista-se — disse, entregando um vestido leve, azul-claro, que deixava seus ombros expostos. — O Alfa a verá hoje à noite. O Alfa. Céline não sabia o nome dele, mas sentiu o impacto do título. O líder. O dono desse harém. Ela vestiu o vestido como se fosse uma armadura. Não ia ceder, não importava o que ele quisesse dela. De volta ao quarto, sozinha, Céline olhou o próprio reflexo no espelho. Os cabelos escuros emolduravam o rosto sério, a mandíbula firme. Seus olhos, apesar do medo, não vacilavam. > Eu sou humana, pensou. Eu não sou fraca. Um som novo a fez virar o rosto. Um toque suave na porta, como uma batida de aviso. Lentamente, a maçaneta girou. E então ele entrou. Auren. O Alfa. Ele preencheu o espaço assim que apareceu: alto, ombros largos, cabelos negros, como uma noite sem lua. Os olhos dele — intensos, de um âmbar quase sobrenatural — fitaram os dela como se pudessem ver além de cada camada de defesa. Ele não sorriu. Não disse uma palavra ao entrar. Apenas caminhou até o centro do quarto, os passos deliberados, silenciosos. Cada movimento exalava domínio. Poder. Céline respirou fundo, recusando-se a dar um passo para trás. — Então é você, — disse ela, a voz firme apesar do tremor em suas mãos. — O homem que pensa que pode comprar um harém. Ele ergueu uma sobrancelha, estudando-a. — Comprar? Não. Eu tomo o que é meu por direito. A voz dele era um trovão baixo, vibrando no peito dela. — Eu não sou sua, — retrucou Céline. Um sorriso lento apareceu nos lábios dele. — Ainda não — disse, a voz suave, perigosa. E então ele se aproximou, o cheiro de musgo e terra molhada que exalava enchendo o ar entre eles. Céline sentiu o corpo estremecer, mas não recuou. Não ia dar a ele o prazer de vê-la ceder. Ele ergueu a mão, apenas para tocar uma mecha de cabelo que caía sobre o ombro dela. Um toque leve, mas que a fez arfar. — Você vai aprender que a força real não está em resistir — disse ele, num sussurro grave. — Está em saber quando se render. Ela o olhou nos olhos, desafiadora. — Eu não sou uma das suas — disse, a voz cortante. Ele sorriu outra vez, um brilho de interesse escuro nos olhos. — Eu gosto de caçar, Céline. — Auren deu um passo para trás, apenas para provar que posso. — E você… vai ser a minha caça favorita. Sem mais uma palavra, ele se virou e saiu, deixando-a sozinha, com a promessa do que viria ecoando no quarto silencioso. Céline respirou fundo, as pernas tremendo. Ela sabia que o jogo tinha começado. E não ia se render sem lutar.