O sangue escorria da mão de Elyan como um fio teimoso de verdade.
Estávamos no banheiro da suíte principal. A lâmpada piscava, refletindo nos azulejos brancos como a luz de um interrogatório. Eu enfaixava a ferida dele com firmeza, mas meus olhos não estavam na mão.
Estavam no rosto dele.
Tão próximo. Tão calado.— Por que você não atirou para matar? — perguntei.
— Porque matar virou a solução fácil. E eu não sou mais um homem fácil.
— Mas você era.
— E você era uma sombra que obedecia. Agora estamos aqui... sujos demais para voltar, mas vivos demais para parar.
Fiquei em silêncio. O ar entre nós estava denso, feito mel. Tóxico e doce.
Ele ergueu a cabeça devagar. Nossos olhos se encontraram.E foi ali, sem aviso, que aconteceu.
O beijo.
Não foi romântico. Não foi suave.
Foi cruel, urgente, errado.Como se nossos passados tentassem se engolir através dos lábios.
Beijei-o com raiva. Ele retribuiu com sede.
Minhas unhas marcaram as costas dele. Os dedos dele puxaram meu cabelo. Havia dor. Havia desejo. Havia culpa demais para caber em dois corpos.Mas naquele instante, fomos só pele.
Sem passado. Sem armas. Sem ninguém para vigiar.Até que...
— Tocante. Romântico, até. Pena que estão ambos condenados.
A voz surgiu do interfone da parede.Congelamos.
Eu corri até ele. Estava desligado. Mas ainda assim, falava.
— Quem é? — gritei.
— Sou aquele que vocês esqueceram.
Aquele que vocês traíram. Aquele que está voltando.O sinal cortou.
Elyan correu para o sistema central. Tentou acessar o rastreamento da linha. Nada.
Bloqueado. Hackeado.A casa havia sido violada de dentro.
— Quem você acha que é? — perguntei, tentando esconder o tremor na voz.
— Alguém que conhece a gente melhor do que deveríamos permitir.
— Ou pior... — Alguém que estava conosco desde o início. ---Naquela noite, dormi no mesmo quarto que ele.
Não por desejo. Por estratégia.Do lado da cama, uma pistola carregada. No criado-mudo, um bilhete escrito por mim:
"Se eu morrer, procure por Abel Marek. Ele sabe."
Elyan leu em silêncio. Depois olhou para mim, com olhos de soldado cansado.
— Abel Marek está morto, Isabella.
— E se não estiver?
— Então não é mais o mesmo.
— Nem eu sou.
— E nem nós somos.
Ele deitou-se, de costas para mim. Mas o silêncio entre nós estava tão acordado quanto eu.
---Na manhã seguinte, recebi uma caixa preta, deixada na entrada principal.
Sem nome. Sem rastros.Abri com cautela.
Dentro, havia um colar.
O colar que minha irmã usava quando desapareceu.
Ela tinha morrido num acidente há cinco anos. Ou assim me disseram.
Mas aquele colar... Eu mesma enterrei junto com ela. Eu vi no caixão.Tremi.
Na parte de trás, havia uma gravação:
“Vocês enterraram uma mentira. Agora desenterrem a verdade.”Corri para Elyan. Mostrei o colar. Ele ficou em choque.
— Isso... isso é um sinal.
— De quê?
— De que alguém quer nos quebrar. Peça por peça.
Antes de atacar... quer que a gente se destrua.— E quem poderia ter o colar?
— Ou alguém que roubou o corpo.
Ou alguém que nunca esteve morto. ---Passamos o dia revirando arquivos antigos. Fotos de operações, nomes de agentes, traidores.
Encontramos uma pista: Operação Umbra. Um projeto oculto, cancelado por razões “éticos-políticas”.Mas havia uma foto.
Uma criança de olhos azuis, sendo levada por soldados. Na ficha: Nome: Iris Marek. Classificação: experimental. Destino: desconhecido.Minha irmã.
Não morreu. Foi levada.— Isso muda tudo — sussurrei. — Eu fui usada para encobrir o experimento.
— E você foi comprado para me silenciar.Elyan me encarou com um nó na garganta.
— E se formos apenas peões num tabuleiro maior?
— Então é hora de virar a mesa.
---Naquela madrugada, invadimos o antigo laboratório abandonado da Aphelion.
Elyan sabia o caminho. Eu lembrava os códigos.Mas o que encontramos lá embaixo...
não era ruína.Era atividade.
Computadores ligados. Telas mostrando rostos. Um deles era o meu.
Outro, o dele. E o terceiro…Iris.
Mais velha. Olhos frios. Vestida como oficial. Viva.— Ela está viva... — sussurrei, tremendo.
— E está nos vigiando.
— Mas por quê?
— Porque talvez ela nunca tenha sido vítima.
— Talvez ela seja a arma final.
---Saímos dali com cópias de todos os dados.
E naquela mesma noite, pela primeira vez, senti medo verdadeiro.
Medo não de morrer. Mas de ter vivido uma mentira inteira. ---Antes de dormir, Elyan me segurou pela cintura. Seus olhos estavam mais calmos que os meus.
— Se tudo isso desmoronar... — disse ele — …e formos só dois sobreviventes no fim do mundo…
…me prometa uma coisa.— O quê?
— Que você não vai fugir de mim de novo.
Demorei a responder.
Mas respondi.
— Só se você não for embora primeiro.
Nos beijamos outra vez.
Dessa vez, mais humanos. Menos monstros.Mas já era tarde.
O jogo tinha começado.
E não havia mais peças. Só sobreviventes.